A afeição dos estranhos

Foi o gole extra de café que tomei na lanchonete. Certeza absoluta. Foram apenas cinco ou seis ou até mesmo dois segundos a mais em uma rotina construída para me proteger do ataque do acaso, mas foram os segundos que mudaram a minha vida. Sei que acabei de escrever uma banalidade. No entanto, não sou escritor, poeta ou sequer jornalista. Sou apenas mais um que resolveu tomar um gole extra de café na hora errada.

Tentarei voltar um pouco atrás, antes do café, antes da minha entrada na lanchonete, antes de sentar no banco de couro sujo e pedir o prato que como sempre às oito e meia da manhã. Acordei às sete – o rádio tocava um trecho de Kindertotenlieder, de Mahler, um trecho que, aliás, conhecia de cor e salteado -, fiz a barba, tomei um banho, me vesti com uma camisa branca, uma calça cinza listrada, sapatos e meias pretas. Desci a escada do prédio de três andares onde moro e fui para a lanchonete. Pedi o prato habitual, peguei o jornal abandonado ao lado e li a seção de cotidiano. Apenas uma coisa que me chamou a atenção foi uma das manchetes: Carro cai em buraco gigante.

O prato chegou. Café, misto quente, suco de laranja. Comi o misto, tomei o suco de laranja em um único gole – e daí fui para o café. Em dois bons goles que queimaram a minha garganta, acreditei que terminara a xícara. Estava errado: quando me preparava para ir embora, notei o fundo ainda coberto com a borra negra. Olhei para o caixa, os clientes e o homem que me atendia como se estivesse prestes a cometer um crime hediondo. Num movimento que acreditei ser rápido e preciso, tomei a xícara e bebi o último gole. Não durou mais de cinco segundos até que a minha garganta voltasse ao normal. Mas tenho certeza – quase absoluta – que foram esses cinco segundos que me fizeram de tolo.

Saí da lanchonete pronto para enfrentar mais um dia na universidade onde ensinava a tediosa matéria de história comparada – restos de um antigo fascínio pela filosofia. Contudo, por uma dessas ironias, são desses restos que me sustento e toco a minha existência. Para mim, a história não era apenas um pesadelo; era somente mais um ítem de tédio, mais um delírio de um bando de loucos que acreditavam em um sentido que deixava muito a desejar. Mas aceitava este absurdo porque é assim que vejo as coisas – como um fluxo sem sentido para um fim claro e definido. Sou um clichê ambulante, mas não se preocupem: não tinha como prever o que aconteceria, após aquele gole de café.

Como cravar o minuto exato em que a história realmente começou? Lembro-me que saí da lanchonete, voltei para casa, peguei minha pasta com as anotações das aulas e fui andando pelas ruas e avenidas, prestes a entrar ne estação mais próxima e pegar o metrô rumo à universidade. Acredito que tinha umas três horas de folga até minha aula. Anotei mentalmente que seria interessante pesquisar alguma coisa na biblioteca pública, mas então reparei que não havia assunto a ser pesquisado. Eu sabia tudo sobre a minha disciplina, sabia tudo sobre minha rotina – ou pelo menos acreditava que sabia tudo isso. A única obrigação é empurrar a barriga, sem se importar com a sensibilidade dos outros, e esperar por uma morte medíocre num hospital de aposentados.

Era isso o que pensava enquanto caminhava rumo ao metrô. Mas foi nessa brecha de reflexão – sobre como seria a minha morte em um reduto de inúteis e sobre qual linha de metrô deveria tomar – que a moça de vestido curto e preto resolveu aparecer, esbarrando em mim num cutucão que me deixou desorientado. Até hoje, não sei como era o seu verdadeiro rosto – tive somente a percepção de uma silhueta nas fotos que caíram da sua bolsa no momento do impacto. A primeira lembrança deste instante foi segurar imediatamente a minha pasta de anotações. Vi o envelope amarelo com as fotos espalhadas na calçada acinzentada. Eram fotografias da moça com uma menina, provavelmente sua irmã caçula ou sua filha. Seu rosto era oval, o nariz tinha um aspecto formoso que combinava com os lábios delicados e os olhos azuis e gélidos. O que me leva a acrescentar mais uma impressão nesta história, em relação ao motivo de ter ido até o fim – o meu fim. O motivo não foi apenas aqueles cinco segundos gastos no gole extra de café que me levaram ao que iria ver: foram os olhos azuis e gélidos da moça.

Com aquelas fotos na mão tomei a decisão razoável: devolvê-las. Corri pela rua vazia atrás da moça, mas não consegui encontrá-la. Onde estaria? Ninguém some tão rápido. Vi-a dirigindo um carro, saindo de um estacionamento, bastante afobada. Parecia que estava atrasada para algum compromisso. O veículo estava a dois metros a frente de um semáforo. Como acabara de dar o sinal vermelho, achei que daria tempo de correr, alcançá-la e entregar as fotos. Mas, de novo, o acaso influiu – e quando repito que o acaso tem um papel preponderante nesta história, faço isso porque não tenho outra palavra para tentar tirar algum sentido dos minutos seguintes. É mais confortável para mim imaginar que existe algum acaso. Dessa maneira, posso catalogar o meu inimigo, descrevê-lo como se tivesse uma face e uma personalidade.

O semáforo estava no sinal vermelho e a moça deveria estar muito preocupada com o horário, porque ela pressionava o carro para ultrapassar o trânsito. Os cadarços dos meus sapatos desamarrados impossibilitavam uma corrida ágil e segura. Resolvi parar e amarrá-los. Esta decisão deve ter sido fundamental para as conseqüências posteriores – o que me leva a deduzir que posso ter alguma culpa no caso, algo assustador na arbitrariedade dos fatos a seguir. Ao mesmo tempo, entretanto, me enche de carinho pensar que esbarrei naquela moça por algum motivo. Deveria haver algum motivo para aquilo acontecer. Deveria, mas também sei que não há como existir um motivo.

Reconheço inclusive que estou travando a história – e de propósito. Não pensem que é uma técnica esperta para aumentar o “suspense”. Não há qualquer “suspense”. Somente o choque – e depois uma amorfa sensação de estar fora dos eixos. A sensação de que algo lhe foi tirado, você não sabe o que é e nunca saberá porque, talvez, ela nunca existiu. Só existiu como uma ilusão de esperança, a vontade de ter alguma ordem, o desejo de se ajeitar em um porto seguro.

Aquele dia estava quente – era o fim do verão, a temperatura deveria estar entre 32 a 34 graus. Assim, fica compreensível porque corri meio atrapalhado, o suor já brotando dos meus poros e encharcando minha camisa. O sinal vermelho piscava, prestes a se tornar verde, a moça pressionava o tráfego, e eu quase alcançando-a, se o vermelho não passasse para o verde naquela famosa questão de segundos. Rapidamente, a moça atravessou o cruzamento, os pneus fazendo marcas consistentes no asfalto. Com apenas um gesto, chamei um táxi – e no momento em que entrei, joguei minha pasta de anotações no assento aveludado, fechei a porta violentamente (e quase decepei meus dedos), disse ao motorista para seguir o carro e olhei meu rosto no retrovisor, soube que minhas três horas de espera por uma aula que nem sei porque iria dar estavam perdidas no vácuo de um acontecimento que teria suas raízes somente no horror, nunca na beleza.

O motorista fez o que pedi – talvez com a intenção de ganhar uma boa gorjeta (ele ficaria desapontado mas, no fim, compartilharíamos o mesmo estado de choque). Contornou os outros carros, atravessou sinais e cruzamentos, ofendeu motoristas e pedestres, mostrou o dedo aos guardas de trânsito, tudo isso seguindo o veículo de uma moça muito apressada por um ansioso cliente que queria apenas entregar algumas fotos (pelo menos era o que eu acreditava). Foi num cruzamento não transgredido que a perdemos de vista. Olhamos para os quatro lados, para cima e para baixo – “Ela se foi, senhor”, repetiu várias vezes o taxista. Tudo bem, tudo bem, disse para mim mesmo. Ligo para a fotótica, eles vão saber o telefone dela e entregam as fotos. Não sei porque entrei nesse absurdo.

Concluí que o táxi poderia me deixar no próximo quarteirão; pegaria o metrô e ainda sobrava duas horas para a minha visita à biblioteca pública. Enquanto raciocinava qual a melhor maneira de dizer ao taxista que desistira daquela perseguição, escutei um estrondo. As obras desta cidade estão a todo vapor, pensei. Pena que elas atrapalham o trânsito e, logicamente, a minha vida. Disse ao motorista para me deixar no próximo cruzamento; ele assentiu, um pouco aborrecido – sua sonhada gorgeta não seria comigo. O táxi andou lentamente, já que a rua estava apinhada de carros, motos, ônibus e passantes, todos quase sobrepostos. Uma nuvem de pó surgiu de repente e preencheu minha visão. O que teria acontecido? Parece um acidente, respondeu o taxista em um tom entediado.

As sirenes da polícia surgiram e os carros tiveram de dar passagem. Sem hesitar, peguei as fotos e a pasta de anotações, paguei o motorista conforme o táximetro (e nada além disso), saí do veículo e caminhei rumo à nuvem de pó. Percebi que estava no meio de uma grande avenida – talvez a quarta ou a sexta, paralelas à principal – e uma multidão de pessoas fugia, ao invés de se aproximarem para verem o acidente ou sequer ajudar qualquer vítima. Uma bomba! Uma bomba!, gritavam. Escutei a voz condenada de uma mulher – Filho! Filho! Onde está você, filho! Preciso de você! Não me deixe, por favor!

Encontrei esta mulher minutos depois, estirada na porta de uma loja despedaçada, as lágrimas já transformadas em setas de ódio, dirigidas a qualquer um que tenha sobrevivido. Outras vozes surgiram – o pó cobria tudo como a areia do deserto agasalha seus mortos de sede quando fracassam em suas peregrinações ambiciosas – e depois o
que vi nitidamente foi a pilha de carros e concreto, era ali que começava a nuvem de pó, parecia surgir do subterrâneo, um aviso do mundo oculto que todos nós evitamos. Foi também a partir desse momento que aconteceu algo estranho e, ao mesmo tempo, assustadoramente comum: comecei a me ver como alguém que participava e observava da ação, uma espécie de ator, diretor e dramaturgo que executava a própria peça, fazia suas auto-críticas, mas, no final, não podia mudar o fim porque este já estava dado e não havia mais nada a fazer.

A fusão de personalidades em um único sujeito persistia. Meu primeiro pensamento era: tenho de saber o que realmente está acontecendo aqui. Ou seja, encontre um sentido – faça de tudo para encontrar um sentido e assim você pode continuar com sua vida. Eu só queria manter a minha vida. Mas a ferida já devia estar aberta há algum tempo pois as minhas pernas fizeram o contrário: elas me levaram perto da montanha de ferro, onde o cheiro da despedida era um sal amargo na pele e na boca de qualquer um que ousasse olhar direto para aquela obra de destruição. Os carros pareciam estar entrelaçados em seus metais, numa espiral de poeira que não saía do chão. Onde estariam os corpos? Por algum motivo, queria ver qualquer corpo para que a visão do sangue começasse a me agradar. Não sairia dali se não visse um corpo – sabia que um corpo, um cadáver, um morto me daria toda a razão que precisava, porque ver a morte após o término de seu implacável trabalho era uma maneira de me afirmar para a vida e seguir em frente, sempre em frente. Antes eles do que eu, era isso o que queria concluir.

O que eu não sabia era que dois minutos e trinta segundos depois veria o carro da moça, jogado para baixo, os pneus estourados, as portas viradas pelo avesso. Aproximei-me e notei que não havia nenhuma presença humana, nem mesmo o fio de um cabelo. Um bafo quente surgido da cratera aberta no asfalto arrepiou minha nuca. Olhei para trás e tive uma visão completa do problema: a avenida era um mar dividido ao meio por um buraco que expelia água, fogo e cimento, sugando todos e tudo para o seu centro, a boca carnuda de uma sereia, pronta para nos agrilhoar em seu feitiço.

Caminhei para a cratera e meus olhos puderam contemplar alguns vultos caídos nas brechas de uma linha de metrô. Os bombeiros e os policiais desciam com a ajuda de cabos e cordas e gritavam que somente havia fumaça. O vermelho das ambulâncias era refletido nas vitrinas das lojas, os manequins sem cabeça ou perna, uma pobre imitação dos originais de carne, ossos e sangue que cuspiam ao redor dos meus instintos e sentidos. Minhas pernas começavam a bambear e uma pontada aguda percorria meu braço esquerdo. Nunca tive problemas cardíacos, mas não hesitei em pensar que um enfarte ali seria o mais provável. Encostei-me numa parede e, somente depois de alguns minutos com os olhos servindo como cortinas negras para o palco que tinha à minha frente, percebi que me apoiava numa massa grossa e oleosa – amostras do cerébro perdido de alguém que não teria muito o que pensar. Não havia como lavar as mãos, apesar de toda a água suja que espirrava do buraco, inundando aos poucos a avenida, molhando as carcaças humanas, caídas como espantalhos de feno.

Como se tanta água não bastasse, escutei o estrondo de um trovão, o céu se tornou de um cinza-amargo e uma chuva nada providencial começou, dificultando o trabalho de resgate. Meus pés ficaram encharcados e decidi que deveria cair fora dali o mais rápido possível, se eu não tivesse escutado a seguinte voz:

– Moço, por favor, onde está a minha filha?… Onde está a minha filha, moço?…

Será que ela conseguira encontrar a filha? Como? Foi antes ou depois do cruzamento em que a perdi de vista? Ali estava ela, a moça que esbarrara comigo na rua, deixara cair um pacote de fotos – fotos que eu devo ter deixado cair em alguma parte daquela avenida, pois nada mais levava nas mãos, inclusive a minha pasta de anotações, inclusive as minhas três horas de folga, inclusive o meu dia inteiro, e aquelas fotos que me levaram a caçar os olhos azuis acompanhados de pequeninos olhos castanhos, a moça que me levou a esta avenida onde eu a reencontro depois de ter acreditado que estava perdida, perdida no meio de seu vestido preto retalhado, as pernas se arrastando pelo asfalto, o braço direito mole, o esquerdo com o osso saindo direto pelo cotovelo e a cabeça coberta por um manto de sangue que brotava entre os delicados e loiros fios de cabelos, transformando o azul de suas íris no rubro da agonia sem volta.

– Moço, me ajude a encontrar a minha filha…

Ela se aproximava de mim e a primeira coisa que fez foi tocar o meu rosto e a minha boca. Seu dedo era salgado. Caiu nos meus braços e eu a segurei imediatamente. O bico de seu seio esquerdo roçou a palma da minha mão direita.

– Minha filha…

A chuva nos pesava sobre os ombros e sobre nossos esqueletos. Meus ossos me encaravam com desprezo e indicavam que explodiriam a qualquer momento. Queria ver essa menina tanto quanto a mãe. Perguntei:

– Qual o nome dela? Qual o nome de sua filha?

Ela balbuciou palavras inaudíveis.

– Qual o nome de sua filha? Qual é o seu nome?

Voltou a falar algo incompreensível, cuspiu uma bola de sangue e apontou para um lado indeterminado. Era a sua filha, andando calmamente, os braços soltos entre o vento e a chuva, a cabeça completamente torta, presa no tronco do pescoço por um fiapo de osso. As duas desabaram no meu colo. A mãe acolheu a filha em seu peito e o que restava de vida ela gastou acariciando o crânio também aberto em uma única e precisa ferida. Fiquei segurando as duas nos meus braços e veio até mim, como um soco, uma massa de ar sólido que fechou minha garganta. Ajeitei as duas no meu colo e minhas mãos, imundas do sangue que escorria de ambos os crânios, se transformaram na colo insólito, porém reconfortante, que resolvi manter pelas duas. Era algo raro e que nunca senti porque ninguém poderia ter manifestado por mim e para mim. E lá estavam elas, deitadas no mar de concreto, no mar de sal onde os outros feridos não tinham uma chance sequer de ter esse privilégio.

Mas não houve nenhum privilégio. Houve somente o terror em ver duas almas partirem sem mais, nem menos. A moça olhou para mim, e seus olhos não estavam tão azuis como nas fotos; a filha foi a primeira a caminhar pela travessia indesejada e sua mãe tratou logo de acompanhá-la. A garganta ainda me arrancava do torpor, e ela só abriu trégua quando passei a palma da minha mão esquerda nas pálpebras de cada uma. Elas fecharam imediatamente. Meu pescoço continuava travado por completo. Notei que também tinha uma ferida, mas era dentro de mim, dentro de meu corpo, além da minha alma. Talvez ela fosse a minha própria alma. Perguntava-me e me via fazendo esta pergunta inúmeras vezes, seguindo aquela lógica de ator-dramaturgo que me invadia de cinco em cinco segundos: Por que eu estava ali, no meio daquela destruição, no meio daquela cicatriz exposta a céu aberto, sem a salvação de um mero pus ou de um mero curativo?

Escolhi ficar ali, a mãe e a filha dentro de mim – uma perfeita família. Deixei a chuva me agasalhar, tirar o último pingo de sofrimento. Mas a ferida na garganta permanecia. Deitei meu corpo no chão molhado e violentado. Vi as nuvens e o céu e a ausência de qualquer sol me avisando que um dia eu seria o próximo. Assobiei a melodia que escutara logo pela manhã e enquanto tentava acompanhar os compassos que travavam a minha língua, obedeci a esta ordem e assim meu corpo ficou à mercê da desolação, meus membros estendidos no correr da água e da boca que me beijava entre aqueles afogados.

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