A batalha naval amanhã

Quando dizemos algo sobre o futuro, podemos estar dizendo a verdade ou, ainda, mentindo? Em outros termos: sentenças com verbos no futuro podem receber os valores “verdadeiro” ou “falso”? Vamos pensar num exemplo. Olho em minha agenda e vejo que amanhã tenho um compromisso com o dentista às 18:00. Neste preciso momento estaria eu autorizado a dizer

(1) irei ao dentista amanhã às 18:00

e saber que essa afirmação é verdadeira ou falsa? Ou ainda, do ponto de vista ontológico, tê-la ‘fixada’ como um fato verdadeiro ou falso?

Aristóteles, em seu De interpretatione (nome latino da obra que entre nós é chamada às vezes “Sobre a interpretação”), enfrentou esse problema e apontou um aparente paradoxo que não me parece difícil de se enxergar. Alguns pensam inclusive que sua resposta foi no sentido do determinismo. Pensando no exemplo acima: tomamos a frase (1) e esperamos o dia seguinte. Se eu acabo por ir ao dentista, a frase “se torna” verdadeira. Se resolvo não ir, a frase “se torna” falsa. Um olhar situado no exterior, todavia, mas que possa vislumbrar a linha temporal dos acontecimentos, certamente estaria em condições de, vendo o desfecho positivo da minha ação, situar-se no dia anterior e dizer:

(2) x irá ao dentista amanhã às 18:00,

ou vice-versa, mutatis mutandis. Esse observador, portanto, pode fixar o valor de verdade da sentença (2). Fantasiosamente, poderia inclusive comunicar-me o fato, dizendo:

(3) você irá ao dentista amanhã às 18:00.

A situação pode piorar, porque alguém poderia dizer que esse observador é Deus — e alguns acreditam nele e no seu costumeiro atributo (a onisciência, que inclui o passado e o futuro numa “posse simultânea”, para falar quase como Boécio), embora Arthur Prior tenha sustentado, com muita argúcia, que nem Deus poderia saber o que eu decidirei antes que a decisão tenha lugar (!).

Eu pergunto: minha ação, minha decisão já está, portanto, determinada? O problema pode ser formulado tecnicamente como o valor de verdade de sentenças no futuro. Alguns dizem, como antecipei, que essa é a opinião de Aristóteles. A verdade de afirmações como (1), (2) ou (3), que aliás levantam outro problema que não enfrentarei aqui (o da relevância ou não do sujeito em sentenças/proposições semelhantes), argumenta Aristóteles, implica a necessidade metafísica. Se (1) é verdadeira, (1) é desde já necessária. Porque, afinal, ela é ou verdadeira ou falsa — terceiro excluído. Se é verdadeira, é necessariamente verdadeira; se é falsa, é necessariamente falsa. E para ser exato, é justamente a adoção do princípio da bivalência ou do terceiro excluído (axioma p ou não-p) que levará à necessidade de afirmações como (1). Se (1) é verdadeira, “it is meant to be” e não pode mudar de valor; e qualquer decisão da parte de x (ou da minha parte) será inútil. Mas o próprio Aristóteles argumenta, com maior ou menor sutileza: o fato de que qualquer deliberação é inútil não parece ser verdade, uma vez que agimos como se deliberações sobre o futuro imediato fossem possíveis, dentro do que depende de nós. Além disso, a afirmação de que verdade implica necessidade implica, por sua vez, a inexistência de eventos contingentes (ou seja, tudo é necessário); o que parece igualmente absurdo, embora haja respostas importantes a essa conclusão já na Antiguidade, com Crisipo.

Um comentarista de Aristóteles, Amônio, propôs uma tese diferente. Para ele, o filósofo teria sustentado que sentenças singulares sobre o futuro têm valor de verdade, mas não de necessidade. Aristóteles inclusive faz um estudo estatístico, propondo diferentes probabilidades para casos típicos. (O que nos leva a pensar em valores de verdade probabilísticos para sentenças no futuro.)

O clássico livro de Pier Luigi Donini, Ethos: Aristotele e il determinismo (1989) procura retomar a tese de Amônio, indo mais longe no tema das ações futuras como consequência do caráter dos indivíduos, tendo em conta a questão: um indivíduo justo tende a ser sempre justo, e vice-versa? A nova tradução inglesa da monografia de Donini — Aristotle and Determinism, Peeters, 2010, 225 páginas –, resenhada pelo Prof. Marco Zingano na Bryn Mawr Classical Review (2012), é certamente uma grande contribuição para esse tema clássico e, ao que parece, inesgotável. Mas eu sinceramente não sei dizer ainda se a sentença

(4) o tema dos futuros contingentes nunca será esgotado

é verdadeira ou falsa.

Eu diria que sentenças como essa precisam recorrer a ‘uma lógica’ que ou aceite um terceiro valor de verdade (verdadeiro, falso, “pendente de definição” — e isso foi muito bem formulado por Kleene em Introduction to Metamathematics, e para esse preciso fim por  Jan Łukasiewicz nos anos 20 do século passado) ou possa lidar com múltiplos valores de verdade, como na probabilística. É uma imposição da realidade, que vem de fora para dentro: se o princípio da bivalência causa alguma violência, é preciso ver onde está o erro. O futuro, até novo aviso, não está determinado. Ao menos assim funciona o nosso sistema operacional. Prevemos as coisas, mas não as determinamos de antemão — especialmente quando não dependem de nós. E Deus certamente não nos fica a perturbar com premonições paradoxais ou com trailers de “De Volta para o Futuro”, esculhambando a sua própria onisciência.

Um esporte perigoso para o determinismo era um que praticava quando pequeno: o da “sabotagem do futuro”. Muitos de vocês já devem ter brincado com a ideia. Era muito simples: quando tudo indicava que eu fosse fazer a, eu fazia b. Isso muitas vezes era estúpido ou penoso; mas ao menos servia para mostrar “quem manda aqui”. (Eu ou o homenzinho determinista?)

O problema do determinismo já foi assunto das páginas da Dicta; em nosso primeiro número, Joel Pinheiro escreveu um ensaio sobre o tema. Sua preocupação não era nem a conciliação entre onisciência divina e liberdade humana e nem o valor de verdade dos contingentes futuros, mas encontrar alguma base para nossa experiência de que, embora tenhamos agido de determinada maneira, era possível, no momento que passou, escolher outro rumo para nossas ações.

73 comentários em “A batalha naval amanhã

  1. Fiquei com uma dúvida: se afirmamos algo em relação ao futuro, não é porque temos a necessidade de vê-lo acontecer? e esta necessidade já não marcaria um fator verdadeiro? porque se tenho a necessidade de algo, isto será verdadeiro, pelo menos em meu ponto-de-vista.

    É engraçado, mas se estudamos o Vedanta, em sua última ‘descoberta’, feita por Caitanya, vemos que o princípio da não-contradição aristotélica cai por água abaixo, pelo menos referente a Deus e à metafísica, este princípio, chamado ‘acintya bhedâbheda tattva’, diz que, em aspectos metafísico-espirituais, a realidade é igual e diferente simultaneamente. Portanto, o paradoxo habita em Deus e na realidade mais profunda, porque lá uma coisa é e não-é ao mesmo tempo. Daí que muito antes de existir ‘filosofia analítica’ (como a conhecemos por aqui), ela já existia no Vedanta, e nos Vedas, já que muitos aforismos ou estrofes (lembrando que estas obras foram compostas poéticamente), possuem fórmulas, ou melhor, são formuladas matematicamente detrás das letras, não é à toa que o 0 e toda uma filosofia da matemática já estava contida no Atharva Veda, mas o zero (sunya) também quer dizer ‘nada’, o que não tem a ver com o ‘nada’ visto sob o prisma do budismo, que só vem à tona milénios depois, mas que abre um leque enorme para uma análise filosófica.

    Este assunto é muito interessante!

  2. Você sonha com a maleta de um médico, a qual você abre e vê um grande caroço branco e fibroso, como um caroço de manga. Logo, de algum lugar indefinido, vem a sugestão de que há algo maligno no seu centro. Você pode chegar no médico e dizer: Dr., vou ter câncer?

  3. Ou a proposição é feita a partir do presente – e aí ela refletiria o próprio desempenho da sua decisão em ir ou não ir ao dentista e dos fatores que possam influenciar a concretização dessa decisão, de onde essa proposição poderia mudar de segundo a segundo e, portanto, ser descritiva, e não normativa ou necessária -, ou a proposição é feita independentemente do desempenho do presente e de seus determinantes até a concretização da sua ida ou não ao dentista, de onde essa proposição seria unívoca, normativa e necessária. Como são dois tipos diferentes de proposição, resta, primeiro, interpretar qual a situação possível em que uma sentença no futuro possa adquirir real valor necessário e normativo, depois, o que Aristóteles tinha em mente exatamente quando abordava a interpretação de sentenças no futuro. Nesse sentido, a “violência” da proposição necessária, aquela que é feita independentemente do desempenho do presente, não precisa ser exatamente um erro, mas uma modalidade de proposição em que a gama de possibilidades é reduzida a uma pronta aferição da única realização que acaba sendo cumprida, o que é determinista mesmo, caso seja esse o interesse da ferramenta lógica da proposição. A ideia de um terceiro valor de verdade é interessante porque é como que uma unificação do método desses dois tipos de proposição: ou ela seria necessariamente verdadeira, ou necessariamente falsa, ou pendente de definição.

    E o comentário do meu xará Valverde traz outra contextualização pra motivação desse tipo de proposição ser feita como é feita: nós elaboramos esse tipo de sentença, obviamente, com um sentido volitivo, que é o que nos é acessível, e que é o que adquire valor de verdade pelo menos provisória ao *nosso* presente.

    Sobre o Vedanta, essa ideia de que a realidade seria igual e diferente simultaneamente lembra o princípio metafísico cristão de que Deus e o Logos seriam um e o mesmo, porque a partir disso, da mesma forma, as possibilidades de decisão do livre-arbítrio ou mesmo os efeitos de uma súplica a Deus, etc., não seriam uma margem de mudança que alteraria o próprio Deus ou o “destino”. Antes, o efeito de uma súplica atendida no máximo realizaria uma modalidade possível de atuação já inscrita por Deus desde o princípio.

  4. Ótimo texto. Enquanto lia pensei em Lc 9,22. Lógico que a narração lucana é ex-post-facto, e portanto o ensinamento teologico encerrado alo prevê que o messias só depois da paixão e morte pode ser realmente entendido como tal mas aquela fala em momento tão crucial já fez muita gente pensar num determinismo macabro, o que não tem sentido pois o “deve” ali é em sentido escriturístico e não de predição fatalista. Um exegeta (Gerard Rossé in “Luca, commento esegetico e teologico”) aponta que certamente Jesus previra sua morte violenta, mas a atestação de autenticidade no que diz respeito aos versetos com a expressão “filho do homem” é uma questão que permace aberta para boa parte da exegese moderna, no que Rossé secunda Vöeglt. Admitindo a solução dada por Julio pensei, e me corrijam se eu estiver errado, que parcialmente vera e falsa a afirmação ganha mais relevo co-agonístico, posto que dependerá sempre dos homens matar ou não matar, e o drama permanece aberto. Por isso a figura “filho do homem”, que externaliza (em termos estilísticos e teológicos) a questão, i. e., amanhã, o autor deste comentário irá ao dentista, ou melhor, é necessário que ele amanhã repense o sentido do comentário que fez hoje.

  5. Mas é importante não esquecer que o problema trazido pelo Julio em relação a essas sentenças é o de como aferir os valores de verdadeiro e falso em sentenças como esta, conjugadas no futuro enquanto ainda se referem mesmo a um futuro. Pois é na forma de futuro que essas proposições desafiam uma atribuição de valor, porque obviamente esses valores (verdadeiro ou falso) só serão definidos de verdade depois que a sentença já não se referir mais a um futuro. Parece que esse é, portanto, o verdadeiro desafio de como tratar esse tipo de sentença, e não o reconhecimento de que elas traduzem não o futuro, mas uma previsão do presente para o futuro. O que resta é: ou separar a validação da sentença da sua proposição, deixando-a pendente até a sua confirmação no tal futuro (e assim ultrapassando o futuro a que ela se refere, mas nem por isso deixando de validá-la na forma futura como ela foi proposta), ou contextualizando-a no sujeito que a emite e traduzindo-a como o veredito emitido por uma previsão e uma intenção do sujeito.

  6. Na Física, quando Aristóteles analisa os tipos de causas, ele chega ao ACASO e ao ESPONTÂNEO. Ele diz que quando vou ao mercado e encontro alguém que não esperava encontrar, obviamente o encontro por acaso. Este acaso, segundo Aristóteles, constitui uma causa, ainda que não necessária, pois partiu da minha deliberação de ir ao mercado. Já o espontâneo ocorre por exemplo, no domínio dos animais e das crianças, os quais não agem por deliberação. Ou seja, mesmo o ACASO, que é uma causa por concomitância (não necessária), não vem a ser contra a natureza (necessária), pois acontece em vista de algo. Bom, não sei exatamente se o que eu disse está diretamente ligado à discussão do texto.

  7. Prezado Júlio,
    Sine ira et studio: Você está complicando a guerra. Todo mundo sabe, quase que por instinto, que há dois tipos de afirmações sobre o futuro, as previsões e as promessas; que elas diferem porque no segundo caso o sujeito da ação futura é o mesmo que faz a afirmação presente, ao passo que no primeiro não é. Somente as primeiras podem se considerar verdadeiras ou falsas desde o instante em que são emitidas, já que pressupõem um conhecimento de linhas causais objetivas já em ação, próxima ou remota, nesse mesmo instante; ao passo que o cumprimento da promessa depende de uma força causal que só entrará em ação (ou não) no futuro, existindo, no momento, tão somente como desejo subjetivo. Em nenhum dos dois casos o problema do determinismo versus livre arbítrio interfere no mais mínimo que seja. No primeiro, porque o conhecimento de uma específica linha de causas não implica que ela esteja por sua vez determinada (ou não) pelo conjunto universal das causas desde o início dos tempos; no segundo, porque se o sujeito estivesse obrigado por causas exteriores inelutáveis a fazer determinada coisa, não faria sentido prometê-la e não haveria diferença entre promessa e previsão. A promessa subendente a ação voluntária, ou pelo menos o sentimento subjetivo de ação voluntária. Se essa ação, por sua vez, está ou não determinada por causas universais inelutáveis, isso é perfeitamente indiferente ao ato de prometer. O indivíduo que promete só se sente obrigado a cumprir a promessa por um dever moral (que subentende o sentimento de liberdade), não por uma força externa irresistível. Se o sentimento subjetivo corresponde ou não a uma liberdade metafísica real é problema completamente alheio à lógica da promessa, para a qual basta um sentimento de liberdade, seja verdadeiro ou falso objetivamente. Pode-se também, é claro, raciocinar hipoteticamente usando uma promessa como premissa de um raciocínio, tomando-a como se fosse uma previsão realizada (por exemplo: “Irei ao dentista amanhã às 16h00, portanto não estarei em casa nesse horário”), mas isso não modifica em nada o que estou dizendo.
    Qualquer que seja o caso, não vejo nesse tipo de análises nada de filosofia. Não são nem mesmo lógica. São gramática pura e simples. São coisas boas para ser ensinadas às crianças, não para levar homens adultos a acreditar que, tratando delas, estão fazendo filosofia. Sobretudo, imaginar que o problema “determinismo versus livre arbítrio” possa ser utilmente abordado mediante análises gramaticais é o mesmo que acreditar que se pode curar uma infecção estudando a bula do antibiótico. A liberdade ou o determinismo, se existem, aparecem na ação efetiva, não na sua expressão verbal.
    Recomendo que você pare de gastar o seu inegável talento com essas criancices analíticas e passe a se dedicar a questões substantivas, tratadas de maneira substantiva.

  8. Prezado Olavo,

    Como o Sr. deve saber, o problema da “batalha naval amanhã” tem mais ou menos 2.330 anos, se partimos de Aristóteles. O debate em torno de “De interpretatione” 9 é dos mais clássicos em filosofia; ele é tão complexo, que seria capaz de encher algumas dezenas de estantes de uma biblioteca (imagine isso tudo em horas de discussão e de aulas de filosofia, se tem predileção pela tradição oral), sem nenhum exagero. Um amigo começou a estudar o tema por essa pequena bibliografia aqui, que não tem praticamente nenhum filósofo analítico: http://www.ontology.co/biblio/aristotle-de-int-biblio-one.htm. São 93 obras, para começar.

    Se não posso supor a sua ignorância ou séria deficiência formativa, só posso ignorar a sua afirmação e salvar a sua boa fé. A questão é de filosofia, e não de lógica (e muito menos de gramática), embora grande parte das boas soluções ou pistas para a solução do problema tenha passado por ela, desde Aristóteles e seus comentadores, de Amônio a Alberto Magno e Tomás, até a filosofia do século XX. Se é verdade que sempre foi uma questão de teologia e metafísica, mesmo no século XX, alguns autores, como o filósofo polonês citado, a trataram como uma questão de filosofia da lógica. No impasse em questão, por exemplo, Tomás de Aquino adotou a posição de Amônio, a mesma de Donini, cuja monografia eu apresentei no texto acima. Em Comment. in De interpretatione 17ª 23-17ª 25, o Comentador, por exemplo, nos deixou a clássica definição de afirmação como “enunciação de algo a respeito de algo” (ou seja, uma ligação entre um sujeito e um predicado) e de negação como “enunciação de algo como separado de algo” (uma separação entre um sujeito e um predicado), o que é feito com a cópula [verbo ‘sum’]. Mas não é só isso. A questão dos futuros contingentes é central na Suma Teológica (ver STh I, 14.13, por exemplo)! Em STh II-2, 171.6, São Tomás sustenta que as proposições ou sentenças conjugadas no futuro têm valor de verdade, verdadeiro ou falso; caso contrário seria impossível falar-se em profecias verdadeiras. Como é sabido, toda a tradição aristotélica está comprometida com o princípio da bivalência.

    O Sr. se deu ao trabalho de abrir o nono capítulo de “De interpretatione” do Aristóteles? Lá verá que o assunto debatido é o valor de verdade de afirmações ou negações sobre o futuro; exatamente o tema do meu texto, que é apenas uma exposição do problema e alguns comentários. Quisesse dar alguma contribuição realmente substancial, acredite, teria reservado ao menos cinco anos da minha vida para estudar o assunto, dedicando-me a ele com a seriedade exigida. Não faço pouco dos que vieram antes de mim, que trabalharam arduamente para dar uma solução à questão.

    Lembre-se que, em certo trecho do meu texto, eu disse que as afirmações (1), (2) e (3) poderiam ser estudadas tendo em conta as diferenças de sujeito, e que não enfrentaria esse tema aqui. É bem diferente uma “previsão” a meu respeito, o que pode configurar ou não uma promessa, de uma previsão minha sobre algo que independe de mim. Há várias subdivisões importantes aí, embora usemos muitas vezes os mesmos termos (promessas e previsões). Há contratos (promessas bilaterais), promessas para si mesmo, as promessas homéricas aos deuses e até maldições — que seriam previsões negativas de terceiros, cheias de um elemento voluntário de resto ausente nas previsões, a influir no comportamento do próprio agente, que não prometeu e nem previu nada. Não é esse o ponto do meu texto. Embora tenha usado um exemplo diferente da tradição aristotélica — que está, aliás, no título: “a batalha naval amanhã” –, contei com um mínimo de sutileza de parte do leitor. Repare que a afirmação (3) é uma instância do exemplo generalizado de Aristóteles (“x fará y no futuro”, ou “x acontecerá no futuro”). O problema do sujeito não entrou na minha discussão. É muito perigoso o uso do termo “promessa” aqui, porque se trata de um fenômeno moral bastante específico, que demanda um exame em separado. Prova disso é que a promessa se revestia de enorme solenidade na Antiguidade, e era feita muito raramente.

    Eu, pessoalmente, estou convencido, na prática, da substancialidade do livre arbítrio. E vou mostrar porque o problema do determinismo versus livre arbítrio interfere diretamente, tanto (i) no caso da promessa quanto (ii) no da previsão.

    Quanto a (i), se tudo está determinado, a minha promessa será, ela mesma, fruto de uma prefiguração da “árvore” causal (Kripke preferiu usar esse termo a “linha”, porque preocupado com a questão dos ‘possibilia'; a razão me parece evidente). O mesmo quanto à execução da promessa: o fado já decidiu se vou ou não cumprir a minha promessa. Dado que há promessas cumpridas e promessas descumpridas, a visão determinista apenas as torna irrelevantes diante da inexorabilidade do destino; o que é relevante é a facilidade da previsão (um sujeito conhecido por cumprir as suas promessas tem uma probabilidade maior de as cumprir em casos concretos, etc). Se somos realmente livres, nós é que determinamos se vamos ou não cumprir, naquele exato momento, a promessa feita; mesmo alguém que conheça *todas* as causas, toda a árvore (inclusive os “possibilia”), não saberá qual a ramificação da minha ação, ou seja, se eu ou fulano cumprirá ou não a promessa. Daí a opinião de Prior, de que nem Deus pode conhecer futuríveis que envolvam decisões livres.

    Quanto a (ii), se tudo está determinado, uma ciência perfeita será capaz de conhecer o futuro, mesmo que ele inclua as decisões individuais. Se há livre arbítrio, uma ciência perfeita só poderá conhecer aquilo que independe das decisões individuais, que são imprevisíveis. A ficção da “ciência perfeita” é apenas um expediente com a finalidade de mostrar as consequências epistemológicas do debate livre arbítrio / determinismo. Pois tudo é uma questão de estarmos ou não, em nossas decisões, no mesmo patamar ou num patamar acima das demais contingências da natureza. Ou seja: se o mundo exterior (mecanicista) inclui nossas decisões em sua inexorabilidade ou se podemos pensar numa caixa preta parcial. A neurociência tem muito a dizer sobre isso.

    Como se vê, não se trata de criancice analítica. Criancice seria dissolver a questão sem fazer filosofia.

    Um abraço,
    Julio

  9. Permitam-me a anotação de, o que considero, coincidências curiosas: aparentemente a primeira discussão se concentrou em saber qual seria o papel da lógica na filosofia, se um mero instrumento — como seria, na simplificação de Carvalho, o Organon de Aristóteles –, ou se uma sua parte fundamental. Podem querer objetar que não haveria diferença alguma entre a primeira e a segunda formulação, mas há: de um lado vê-se a lógica como propedêutica, como uma preparação ao verdadeiro filosofar, do outro vê-se a lógica como parte do próprio processo filosófico. Neste último campo menciono dois exemplos: o primeiro sendo o de um mestrando da UFRGS que, inspirando-se em uma passagem de Enrico Berti visava saber se a Ética aristotélica poderia ser construída com base no método dos Segundos Analíticos e o segundo sendo o do prof. José Carlos Estêvão que defende que Aquino construiu a teologia como uma ciência aos moldes dos mesmos Analíticos Posteriores.

    A primeira coincidência consiste em que há um orientando de doutorado do prof. Marco Zingano, Hugo Tiburtino, cuja questão era, até pelo menos outro dia, se a lógica e seus livros (chamados pela posteridade e não por Aristóteles de Organon) são ou não parte de sua filosofia, se são ou não apenas propedêuticos — lembrando que o platonismo tardio tinha um caráter especulativo lógico-discursivo (Sofista), além de ético-teleológico e também psicológico (Político, República, Timeu) e de crítica do conhecimento (Teeteto), ambiente em que muitas das ideias do jovem Aristóteles teriam sido gestadas (donde também saíram o livro Lambda da Metafísica, o de Anima, o Protréptico e a Ética Eudemia, vide o famoso livro de Werner Jaeger, Aristotle: Fundamentals of the History of His Development).

    A segunda coincidência está diretamente ligada a esta discussão. Há um trabalho notável, também de um dos orientandos do prof. Zingano, sobre a questão d’A Batalha Naval Amanhã, de fato um tema clássico nos estudos aristóteles, desde os comentadores antigos até os dias atuais. O trabalho é do brilhante Paulo Tadeu Ferreira e é intitulado, Enunciado asseverativo e contingência em Aristóteles: A batalha naval amanhã em De Interpretatione 9 e se encontra disponível para download aqui: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-26082009-004315/publico/PAULO_FERNANDO_TADEU_FERREIRA.pdf .

    Lembrando que estavam na banca do prof. Paulo Ferreira (Unifesp) os também professores Luiz Henrique Lopes dos Santos e Luiz Carlos Pinheiro Dias Pereira. O primeiro, nunca mencionado por Carvalho, escreveu sua tese de doutorado sobre Frege — sob orientação de Oswaldo Porchat Pereira –, traduziu o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein e escreveu uma excelente tese de livre-docência sobre Platão, Aristóteles, Leibniz, Frege, etc., intitulada A Harmonia Essencial (Escritos sobre lógica e metafísica).

    Por que digo tudo isso? Porque Carvalho até hoje acha que a USP e a “filosofia” no Brasil se reduzem a pessoas como Marilena Chaui, Janine Ribeiro, Paulo Arantes, Vladimir Safatle, etc. Mas há todo um outro grupo que rivaliza ferozmente contra esse, quer na USP, quer em todo Brasil. Neste outro grupo há gente como Marco Zingano (USP), Luiz Henrique (USP), Oswaldo Chateaubriand (PUC-RJ), que orientou, no mestrado, Rodrigo Bacellar (USP) — o último mais tarde orientado por Kit Fine na Universidade de Londres.

    Por fim, cabe uma menção a um dos professores mais influentes deste grupo, que se dedicou às grandes questões filosóficas envolvendo lógica, metafísica, ética. Refiro-me àquele professor da UFRGS que influenciou Marco Zingano, Paulo Ferreira e toda uma geração: Balthazar Barbosa Filho. É esta eulogia que se espera que Julio Lemos se apresse em fazer.

    Em tempo: há também que se recomendar a leitura de um dos grandes desse grupo de lógica, ontologia, ética, que vai da Unicamp a UFRGS, da USP a PUC-RJ. Refiro *As Questões Disputadas de Metafísica e de Crítica do Conhecimento* do prof. Raul Landim Filho.

  10. Caro Adriano,

    Nunca esperava que alguém fosse estar tão a par de uma questão — e das coincidências envolvidas. Fico muito contente. Arrumei no seu comentário a referência à dissertação de mestrado do nosso amigo em comum Paulo Ferreira, para que os leitores a possam conhecer. Li grande parte da dissertação dele e também a considero brilhante. Aliás, foi ela a me introduzir convenientemente ao tema.

    Sobre a eulogia, aguarde. Eu e um outro colaborador estamos preparando uma série para o futuro próximo que inclui algo sobre o Prof. Balthazar. É realmente uma pena que figuras como essa e os outros professores que você mencionou com exatidão sejam praticamente ignoradas.

    Um abraço,
    Julio

  11. Novamente, você está complicando tudo. É inútil fazer uma eruditíssima apologia da importância filosófica da questão dos futuros contingentes, quando tudo o que eu disse foi que não é sábio tratar dessa questão obviamente essencial mediante análises gramaticais, ou, se quiser, lógico-gramaticais. O tempo futuro da linguagem NÃO É o tempo real em que nascemos, vivemos e morremos. Muito mais eficiente seria estudar promessas e previsões REAIS, historicamente registradas. A História, a biologia e até a grande literatura de ficção ensinam-nos mais sobre o tempo do que todas as controvérsias lógico-gramaticais do universo.
    Quanto às observações do Adriano, não me atingem de maneira alguma, pois já adverti mil vezes, oralmente e por escrito, que há mais de uma década deixei de acompanhar a produção intelectual da Filosofia-USP, e que meus julgamentos a respeito podem não ser dos mais atualizados.

  12. A própria extensão quilométrica das respostas já ilustra o vício analítico de tudo complicar. Uma escola que leva cem anos para descobrir que era possível e importante tudo o que ela havia declarado impossível e inútil, e que ademais precisa, para isso, convocar algumas dezenas de milhares de debatedores, não é, com toda a evidência, um exemplo vivo de sabedoria.

  13. Caro Olavo,

    E eu digo que uma análise lógico-filosófica ajuda muito a esclarecer a questão, juntamente com os dados das ciências (e mais a física e a neurociência do que a literatura, penso eu). A vasta bibliografia sobre os futuros contingentes no século XX o prova; basta conferi-la.

    O tempo futuro da gramática nada mais é do que uma referência direta ao tempo real. A ordem frase > sentença > proposição [conteúdo proposicional] > fato não é nenhuma maluquice analítica; ela surgiu com os filósofos antigos. Aliás, nenhum dos filósofos que enfrentaram o tema com a sutileza que ele exige — inclusive lógica –, como Prior e os aristotélicos ingleses, lidou com um fantasma. O objeto de reflexão é o mesmo: o tempo e o mundo que nós habitamos. Se aquele de Prior ou de qualquer outro filósofo (incluindo o Tomás velho de guerra, que como Aristóteles desceu aos detalhes lógicos e estruturais, como se pode ler no trecho citado do comentário a De interpretatione) não é o tempo real em que nascemos, vivemos e morremos, tampouco esse a que o Sr. se refere, usando a língua portuguesa, o é. Só é preciso um pouco de treino para vê-lo com mais clareza, não afastando de plano nenhum nível de análise. Não vou insistir mais nesse ponto.

    Um abraço,
    J.

  14. Vou dizer algo imprudente ao sr. Olavo de Carvalho e espero que eu não me arrependa, dadas possíveis consequências acadêmicas.

    Na década de 70, quando a prof.ª Marilena Chaui estava para entrar no departamento de filosofia da USP, houve uma discussão entre Porchat e Giannotti, ficando o primeiro a favor da entrada da professora de Pindorama e o segundo contra. Esse evento viria a se mostrar de uma enorme ironia quando Porchat algum tempo depois acabou por se afastar da USP, porque Chaui e seu grupo defendiam o ponto de que quem não fosse marxista lá não entraria (um princípio típico de moçada gestada em Maio de 68). Não que o prof.º Porchat fosse um anti-comunista visceral — isso eu sinceramente não sei —, mas ele sempre foi um homem decentíssimo e, por isso, opôs-se totalmente a esse preceito. Talvez o grupo de Chaui, que então se formava — para rivalizar mais tarde com os centro-esquerdistas do Cebrap (Giannotti, Terra, Nobre), associados à turma da “filosofia analítica” no Brasil* — não quisesse simplesmente “pôr um monte de comunista na universidade”. Isso é falso, mesmo porque frequentando o departamento de filosofia há seis anos nunca vi um curso sequer sobre marxismo — a queixa mais frequente do movimento estudantil, da turma do CAF, é que não se estuda Marx, mas apenas autores clássicos, sob o método estrutural de leitura, e, bem, Marx não deve ser então um autor clássico no nosso departamento, que prefere estudar Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, o que qualquer bom marxista chamaria de autores burgueses. Pois bem, talvez o ponto de Chaui e de sua trupe fosse simplesmente que a “o grupo de Miguel Reale”, os ensaístas da USP, que falam sobre tudo, não deveriam lá entrar — faltava-lhes mesmo rigor e eram cigarras mágicas. Mas a ideia de que quem não fosse marxista justamente tirou o prof.º Porchat de lá, que foi à Unicamp e fundou o CLE (Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência) em 1976. Esse evento simplesmente mudou o rumo da filosofia acadêmica no Brasil e acabou por criar uma divisão interna na USP e em outros departamentos Brasil afora entre o grupo de Chaui (ligado à filosofia e política moderna do XVII e do XVIII) e o de Giannotti — cujo Wittgenstein marxista não é bem quisto por seu próprio grupo, embora todos os lógicos-metafísicos desse grupo sejam de centro-esquerda (João Vergílio Galerani Cuter é o exemplo mais triste, não saindo do pé do jornalista de serviços Luís Nassif).

    Em suma, por que digo tudo isso? Porque Olavo de Carvalho não faz a menor ideia do que seja a USP desde pelo menos a década de 70 — talvez sua última atualização tenha sido a do concurso de João Cruz Costa, que Miguel Reale ou alguém do IBF deve lhe ter contado. Não faz ideia de quais sejam os grupos, os posicionamentos, os problemas, a disputa de poder, etc. E tudo isso faz parte de questões internas que muitas vezes envolvem posições filosóficas sim — a resposta de Porchat a Carvalho na polêmica da Folha, há uns bons anos atrás, é exemplar, porque discutir metodologia filosófica é também discutir filosofia — vide o título de livros póstumos de Martial Gueroult, publicados na década de 70, que Carvalho copiou conscientemente ou não, como os tomos da Dianoématique: Histoire de l’histoire de la philosophie e Philosophie de l’histoire de la philosophie.

    * esse epíteto é evidentemente simplificador, pois como uma vez me disse o maior scholar aristotélico do Brasil, Marco Zingano, “a filosofia analítica é uma moda”.

  15. Você tem razão, nenhum nível de análise deve ser excluído. Mas não faz sentido você afirnar que a polêmica a respeito dos futuros contingentes continua lotando muitas bibliotecas e que a análise lógica “ajudou muito”. Num debate sem fim, é impossível medir avanços e recuos. Por exemplo, não ajudou você a entender que o tempo futuro da gramática NÃO É uma “referência direta” ao tempo real e sim uma muito indireta, como o prova o fato de que há muitos sistemas verbais diversos (o do latim e o do árabe, por exemplo), denotando diferentes vivências subjetivas do tempo sem poder apreendê-lo “diretamente”. Marcel Proust escreveu duas mil páginas no esforço de fazer uma “referência direta” ao tempo. Isso seria desnecessário se o mero tempo futuro do idioma francês já fosse essa referência. Em vez das análises lógico-gramaticais, seria mais útil estudar casos reais como a profecia de Fátima ou o anúncio do fim do capitalismo por Karl Marx. Você conhece o livro do Bertrand de Jouvenel sobre a futurologia? “Ajuda” mais do que mil Priors reunidos.

  16. Há um pequeno adendo que preciso fazer sobre Vladimir Safatle — evitarei quaisquer picuinhas departamentais relacionadas ao seu concurso e a prof.ª Olgária Matos.

    Se há, grosso modo, um grupo de Chaui no departamento de filosofia da USP, Safatle faz parte dele de maneira geneticamente simétrica a da própria Chaui, pois também ele teve como orientador de mestrado o mesmo orientador de Chaui: Bento Prado Jr., outro que aparentemente se isolou da USP, na UFSCAR e eu não sei por quê.

    Mas por que é interessante saber de onde surgiu Safatle, orientado por Alain Badiou em seu doutorado na França? Porque tanto ele, como a outra grande intelectual pública da USP, Chaui foram orientandos por Bento Prado, que no grupo de estudos Marx se opunha às leituras logicistas de Giannotti.

    Pode parecer picuinha acadêmica, mas essas divisões em grupos nascem de disputas, posições e estilos filosóficos. E não ´r à toa que Safatle desponte como o novo intelectual público de nosso departamento, ele é um dos poucos do grupo da Chaui que não foi orientado por ela e por alguém que por ela foi orientado — por mais que se possa criticá-la por diversas posições, nunca deixarei de notar e ressaltar suas virtudes formativas, que existem sim e que são também elas de caráter filosófico, por mais nefandas que sejam suas posições políticas.

    Por fim, por que decidi escrever todo esse excurso à discussão principal? Para simplesmente deixar registrado o ponto aqui de que Olavo de Carvalho não faz a menor ideia do que seja o departamento de filosofia da USP, o funcionamento acadêmico da filosofia no Brasil e suas críticas nesses assuntos são quase sempre construídas de longe e sem um veraz conhecimento de causa.

    Para se criticar o departamento de filosofia da USP, para que se possa corrigir e tomar um bom prumo no futuro, é preciso primeiro conhecê-lo de perto.

    Por fim uma última nota: minha experiência lá é diferente da de Joel Pinheiro. Por muitas e muitas vezes vi o método estrutural de leitura ser posto de lado por quase todos os professores, que frequentemente verbalizam sim notas biográficas, históricas e de caráter genético — o que está em diametral oposição à suposta escola estrutural(ista) de filosofia, que — segundo Victor Goldschmidt, pseudo-discípulo de Martial Gueroult — nunca existiu.

    Geralmente os professores de Medieval dão o curso introdutório a Descartes e suas Meditações. E no ano em que a esse curso assisti, dado pelo prof. Moacyr Ayres, não só o método de Gueroult foi mencionado, como o método genético de Gilson e também o de Jean-Luc Marion — que se não me engano filia o Descartes das Regulae ao método analítico-geométrico de Aristóteles (valeria aqui uma nota sobre os métodos analítico e sintético e sua importância em Platão e Aristóteles, tendo origem na geometria grega, mas deixemos isso de lado).

  17. Prezado Adriano,
    Você pode, por favor, me informar onde está a “resposta modelar” do Porchat? A resposta que li era de uma mendacidade atroz, que desmascarei no ato (v. abaixo). Talvez você esteja se referindo a outra, que não li. Pode me dar um link ou outra via de acesso à fonte?
    Obrigado,
    Olavo de Carvalho

    Difamação ou calúnia?

    A propósito de um artigo meu publicado em Bravo! de junho de 1998, que comentava suas declarações a Livro Aberto de agosto de 1997, Oswaldo Porchat Pereira acusa-me de difamador, truculento, pérfido, e indigno de confiança. Tentando dar alguma substancialidade a estes adjetivos, acrescenta que: (1o) operei em suas palavras uma “montagem”, (2o) amputando-as do contexto, (3o) para lhes impor “uma interpretação estapafúrdia” com a finalidade de fazer parecer que “estivessem revelando um fato lamentável no que concerne ao ensino de filosofia na USP”.

    Sendo Porchat um conhecedor profundo da análise de textos, não é cabível que se enganasse tanto na interpretação de suas próprias palavras, bem como do texto jornalístico que as comentava. O problema pode portanto ser equacionado assim: ou eu alterei as palavras de Porchat para danar sua reputação, ou ele é que está mentindo de caso pensado para me atribuir um crime que não cometi. Sou eu o difamador ou Porchat o caluniador? Como diriam os escolásticos, tertium non datur: não há terceira hipótese.

    Mas será normal que um homem culto e no seu juízo perfeito, ao lançar acusações de tal porte, não faça em seguida a mais ínfima tentativa de prová-las, mas se limite a afirmá-las, a jogá-las no ar com a presunção insana de quem imagina ter o direito divino de ser crido sob palavra?

    Pois foi exatamente isso o que fez Porchat. Não digo que apresentasse provas falsas, ou débeis, ou fúteis. Nada disso: ele não apresentou nenhuma.

    Isso é tanto mais estranho porque provar aquelas acusações, se fossem verazes, teria sido bem fácil. Bastaria cotejar algumas frases da entrevista com sua transcrição espúria, e pronto: estaria demonstrada a “montagem”, a perfídia do truculento difamador.

    Se Porchat não fez isso, tendo à sua disposição quase uma página inteira da Folha para explicar-se, foi por uma única razão: porque sabia que suas palavras transcritas em Bravo! eram idênticas, na forma e no sentido, às de Livro Aberto. Não o fez porque sabia que, desse cotejo, quem sairia esmagado seria o acusador e não o acusado. Não o fez porque sabia que estava mentindo.

    Farei eu, portanto, o que ele não fez. Onde ele preferiu planar no genérico e no alusivo para espalhar discretamente veneno no ar evitando os riscos de um confronto direto, vou descer aos detalhes do texto.

    I

    “Montagem” é desmembrar as partes de um texto para arranjá-las numa nova ordem que pode, eventualmente, alterar o sentido do conjunto. As frases de Oswaldo Porchat citadas no meu artigo foram as seguintes:

    Primeira: “Nenhum estímulo é dado [no departamento de Filosofia da USP] para a reflexão pessoal e original – mais do que isso: desaconselha-se vivamente qualquer veleidade de proceder a uma elaboração crítica do próprio pensamento”.

    Segunda: “Exerci uma influência certamente nefasta sobre meus alunos na USP, na medida em que eu defendia essa proposta.”

    As frases são duas e apenas duas. Ora, entre duas frases, como aliás entre dois elementos quaisquer, só pode haver duas e não mais de duas ordens: da primeira para a segunda e da segunda para a primeira. E as duas frases de Porchat, seja numa ordem, seja na inversa, significam exatamente a mesmíssima coisa. Montagem, pois, se houvesse, seria inócua: dando na cabeça ou na cabeça dando, o que ele disse foi que o ensino da filosofia na USP inibe a capacidade crítica de seus alunos, que isto é uma coisa lamentável, e que ele próprio contribuiu para produzi-la com sua influência pessoal, mais que lamentável, nefasta. E “influência nefasta” é expressão dele, não minha.

    II

    Quanto à segunda acusação, de que separadas do contexto as declarações tinham seu sentido alterado, ela é o contrário simétrico da verdade. O contexto não faz senão enfatizar o sentido unívoco e inquestionável das duas sentenças. Para demonstrá-lo, cederei a meu acusador o espaço de que disponho, para lhe dar a oportunidade de se enforcar com sua própria corda. Transcrevo aqui, por extenso, o trecho de onde saíram as duas frases:

    Livro Aberto: É possível afirmar que isso ainda é fato no curso de filosofia da USP?

    Porchat: (Eu vou responder a essa pergunta daqui a pouquinho…) Assim, eu não tive tempo de fazer opções próprias de leitura e muito menos de elaborar uma reflexão pessoal. Bom, sob a influência da doutrina estruturalista, eu deixei de acreditar na reflexão pessoal…. O estruturalismo funcionou de maneira extremamente castradora sobre mim e meus colegas, isto é, o que é lícito fazer é estudar o sistema, é compreendê-lo, aprofundar a análise interna das obras. Nós podemos eventualmente tornar-nos bons historiadores da filosofia, mas nenhum estímulo é dado para a reflexão pessoal e original – mais do que isso: desaconselha-se vivamente qualquer veleidade de proceder a uma elaboração crítica do próprio pensamento. Em filosofia, só cabe conhecer e analisar estruturas de pensamento filosófico – essa é, vamos dizer, a orientação fundamental do estruturalismo filosófico. Sob influência desse estruturalismo eu fui vítima daquilo que chamei, há pouco, de uma “castração” intelectual: ser filósofo era, para mim, ser um bom historiador, ser capaz de analisar estruturas. E durante muito tempo eu me consagrei a fazer história da filosofia, entendendo que isso era fazer filosofia. O problema das opções pessoais, de elaborar um pensamento crítico – tudo isso foi abandonado; mais do que isso, eu tornei-me um defensor encarniçado do método estruturalista e dessa postura, exercendo uma influência certamente nefasta sobre meus alunos na USP, na medida em que eu defendia essa proposta, batalhava por ela. Ocorreu que muitos de meus colegas foram – “graças” ao Gianotti e a mim – levados a receber essa mesma influência do Goldschmidt. Vários professores do Departamento foram para a França estudar com Goldschmidt por nossa sugestão e os que não foram se formaram aqui conosco, de modo que se desenvolveu, no Departamento de Filosofia, toda uma postura estruturalista no ensino da filosofia, que até hoje, a meu ver, é dominante. E esse me parece um fato bastante infeliz, na medida em que se privilegia o estudo dos autores, deixando-se totalmente de lado o estímulo à reflexão filosófica pessoal e original. É claro, é fundamental que os autores sejam estudados, eu não vejo como se possa fazer uma filosofia pessoal e criadora sem bons e sólidos conhecimentos históricos. Acho uma felicidade que o Departamento de Filosofia da USP tenha tão bons historiadores e tão bons cursos de história da filosofia como tem (o que não acontece em muitos lugares do Brasil e fora dele), mas acho uma infelicidade que, ao lado disso, floresçam pouco outras formas de ensinar filosofia e, sobretudo, que a elaboração filosófica pessoal, a elaboração crítica, fique tão prejudicada. Os alunos não são estimulados a reagir intelectualmente.

    Há alguma dúvida quanto à identidade de sentido do texto e do contexto? Responda-o o próprio leitor: o que acaba de ler é ou não “a revelação de um fato lamentável no que concerne ao ensino de filosofia na USP” e o mea culpa de quem reconhece haver ajudado a produzi-lo?

    III

    A terceira acusação, enfim, é que seria uma “interpretação absurda” afirmar que essas palavras “estivessem revelando um fato lamentável”. Para ver o quanto isto é coisa falsa e de má-fé, basta reparar que, no final do trecho, Porchat, após descrever o estado reinante no ensino de Filosofia da USP, faz dele, literalmente, a seguinte avaliação: “Esse me parece um fato bastante infeliz.”

    Pode haver a mais leve dúvida de que a infelicidade é lamentável e de que a “interpretação estapafúrdia” que ele me atribui é dele mesmo?

    A única coisa que falta, não no meu artigo, mas na entrevista mesma, é a longa introdução oca e laudatória que Porchat agora acrescentou às suas declarações para tentar disfarçar a gravidade do que denunciavam. Ou seja: não fui eu que amputei as declarações do contexto, foi Porchat que lhes enxertou um contexto postiço para dar a impressão de que não disse o que disse e de que disse o que não disse. Se ele deu a entrevista num arroubo fugaz de sinceridade, e em seguida, acometido de um ataque de temor servil, resolveu voltar atrás, é problema dele, mas é aliás coisa que não me espanta num adepto do pirronismo filosófico, o qual é, por definição, a filosofia dos indecisos.

    Para encerrar, três lembretes:

    1) Malgrado algumas gozações que lhe fiz no meu artigo, Porchat emergia dele na condição afinal honrosa de quem dissera parte da verdade onde todos a calavam por completo. Ao recuar, temeroso, das conseqüencias do bem que fizera, ele trocou meia honra pela completa desonra.

    2) Ele lança suas acusações sem nome do destinatário mas com indicações suficientes do seu endereço, sob a forma de alusões. É procedimento típico do caluniador malicioso, que se abriga por trás de um discurso aparentemente genérico para poder ferir, sem ser apanhado, um alvo muito preciso e determinado.

    3) Após espalhar seu veneno, ele pretende dar o debate por encerrado e sair de fininho. Imagina que pode divulgar uma acusação caluniosa e depois ir para casa como se nada tivesse acontecido. Julga portanto que é coisa normal ficar isento das conseqüências de seus atos. Mas devo informar-lhe que, desta vez, ele não tem autoridade ou poder para conferir a si mesmo semelhante isenção. O que ele fez contra mim foi acusar-me de um crime do qual sabe que estou inocente – e esta acusação é crime maior ainda. Não cabe a Porchat dar o caso por encerrado. Isto é atribuição exclusiva da Justiça, da qual nem os mais escorregadios subterfúgios da sofística universal poderão salvá-lo.

    Olavo de Carvalho

  18. Lamento ter enviado um documento tão extenso, mas isso não teria sido necessário se o Adriano se ativesse à discussão dos futuros contingentes em vez de aproveitar a ocasião para me dar agulhadas a propósito do que eu disse ou não disse da USP – questão que bem poderia ser discutida em separado, sem atrapalhar uma conversa que por si já é bastante complicada.
    De passagem, advirto que não li os livros póstumos de Martial Guéroult e não posso tê-los copiado. Se disse a mesma coisa que ele, foi por uma natural convergência de idéias, não havendo motivo (exceto o preconceito) para achar que são boas quando ditas por ele e péssimas quando ditas por mim.

  19. P. S. – Adriano: Se para julgar a produção escrita e as atitudes públicas dos professores da USP é preciso estar a par de todas as fofocas internas, de todas as misérias departamentais e intrigas burocráticas da instituição, então é forçoso concluir que as palavras deles são obscuras e incompreensíveis em si mesmas. Só as entende quem tem profunda intimidade cotidiana com os autores. Nem os escritos esotéricos mais enigmáticos de Jacob Boehme e Mestre Eckart exigem tanto. Espero, ao menos, que a intimidade requerida não ultrapasse os limites da decência.

  20. Lorena Miranda encontrou a exceção que prova a regra, obrigado. O prof. Homero Santiago — ouvindo a demanda dos muitos estudantes de esquerda do departamento — resolveu dar uma ou outra disciplina que envolve a filosofia marxiana e também a marxista. Isso, porém, só foi possível muito recentemente — fato que ela ignorando completamente o que seja o departamento de filosofia, não poderia compreender.

    (Escrevo só mais um comentário em resposta a Carvalho e a pedido dele me retiro da discussão para deixar o excurso que aqui desenvolvi para uma ocasião em meu site pessoal ou não.)

  21. Ou não, dada a resposta um tanto maledicente aqui de Carvalho e ignorando completamente sua fixação oral no que diz respeito a Platão e a Aristóteles, deixo a discussão sobre a polêmica entre e ele e Porchat para um outro momento — a solução do caso é simples e envolve especificamente a dialética aristotélica, que numa discussão entre duas pessoas consiste em se salvar as teses que se podem salvar. Ou seja, os dois estão certos, em pontos diferentes.

    Mas que fique para mais tarde.

  22. Para quem crê no verdadeiro Deus, “acaso” é obviamente um conceito gnoseológico, e não metafísico. Júlio Lemos faz confusão entre a esfera subjetiva e a absoluta.

    Como Olavo parece sugerir, não há realmente essa pretensa aporia entre livre-arbítrio e determinismo. A realidade é um meio-termo, uma tensão entre ambos os pólos. Jamais ela se resolve num deles, por mais “livre” que você considere ser a sua vontade. Desculpa a sinceridade, mas: você não é Deus.

    E qual seria a utilidade em se aferir o “valor de verdade” em juízos SUBJETIVAMENTE condicionados de futuros contingentes? Isso é masturbação mental. Filosofastros da decadência romana já faziam isso muito melhor, largue isso, rapaz.

  23. Caros,

    Voltando a um dos assuntos…

    Gostaria de fazer uma colocação baseada em uma resposta do Julio acima, que não só concordo, mas sei que é real: os tempos verbais são, sim, (e em qualquer gramática conhecida até hoje) referências diretas aos tempos reais. Para tanto, busco em duas gramáticas-primeiras (é como as chamo) essenciais para nossa família de línguas, a Tekhne Grammatike, de Dionísio da Trácia, e a Ashtadhyayi, de Panini (esta reconhecida como o primeiro tratado “linguístico” da humanidade). Em ambas, vemos claramente que a parte verbal, inclusive referente as várias visões de passado e de futuro (o tempo presente é sempre mais simples), são “fatos” linguísticos baseados em fatos reais; o mais interessante é que em ambas, ainda como uma preocupação “elementar”, procuram transpor para a língua aquilo que realizavam na realidade, não é à toa que uma grande parte da obra de Dionísio é dedicada a morfologia (‘analogia’ em seu vocabulário, e este termo já é bem significativo), assim como o Panini (como o termo ‘sabda’, para a mesma questão). O que quero dizer é: em princípio, ambos olharam para a realidade com o objetivo de caracterizá-la, ou num termo mais linguístico: colocar em ‘semantema”, esta realidade que lhes estava presente, a esta altura, inclusive, já nos textos de ambas as culturas. E não é à toa que até hoje estudamos a parte morfológica para só depois estudarmos a sintaxe (que em ambas as obras é simplificada ao extremo). A morfologia, onde se incluem os verbos, são, sim, “símbolos” da realidade, não só de um mundo-real, mas também (à época) de textos-reais, todos estes, no grego e no sânscrito, já com referências de tempos verbais. Ao contrário do que fala o sr. Carvalho, não há muitos sistemas verbais diversos, não podemos nem mesmo dizer que no árabe (que não está em nossa família de línguas, mas cujos tempos verbais são encontrados quase iguais aos do sânscrito, com este sistema vindo milênios antes) há um sistema diverso. E não há, porque simplesmente os tempos verbais são símbolos morfo-lógicos (linguísticamente falando) da realidade. Um trabalho antigo, mas que até hoje é atual nesta matéria, e que trata por a+b do assunto, é o do “pai” dos estudos comparativos F. Bopp, que ao longo de sua vida só foi acrescentando um número grande de línguas ao seu primeiro trabalho, que tratava das línguas grega, latina e persa (mais tarde incluindo a germânica, a lituana e a gótica) com base no modelo da língua sânscrita, que considerava a mais bem estruturada; assim como seu colega F. Schlegel, com seu fantástico trabalho “Über Sprache und die Weisheit der Inder”, onde transparece seu espanto pelos hindus já terem uma língua que era quase “cópia fiel da realidade”.

    Eu não entendo de filosofia analítica, pelo menos não da forma ocidental (pois ela está presente dentro mesmo da filosofia oriental de expressão védica), então, em respeito ao assunto só estou aprendendo, mas em respeito à linguagem (específicamente aos tempos verbais, no caso), venho estudando há um bom tempo algumas línguas tidas hoje como antigas, tanto diacrônicamente como sincrônicamente. E uma das matérias de minha pesquisa, meu mestrado na UFF, é mostrar que tudo o que conhecemos como estrutura de língua portuguesa mal mudou desde os tempos de Panini, cujas “regras” chegaram até nós (à língua portuguesa) indiretamente. Portanto, realmente não exite muitos sistemas linguísticos como imaginamos, ou como muitos dos linguístas querem crer. A história das línguas escritas começa com a cópia (morfológica, analógica) do mundo-real e do texto-real, para depois dar lugar à cópia das cópias, a cópia dos tratados de língua para língua, e isto foi, de fato, revolucionário. Recomendo um livrinho pequeno em tamanho, mas enorme em explicação, do linguísta francês Sylvain Auroux, chamado “A revolução tecnológica da gramatização”.

    Este assunto lembra-me o aforismo do Upanisad:

    “O que há na linguagem, há antes na realidade.”

    Sem mais, e agradecendo o debate.

    Leonardo Valverde

  24. Júlio: Sua “prova” do livre arbítrio é, sim, criancice analítica. Ninguém, para fazer uma previsão ou promessa, precisa conhecer TODA a “arvore causal” ou ter mesmo uma “prefiguração” (sic) dela. Se fosse assim, os meteorologistas, para saber se haverá um furacão dentro de dez minutos, teriam de conhecer a data certa da criação do mundo e a do Juízo Final.

  25. Um conserto: onde digo “a história das línguas escritas começa com a cópia do mundo-real e do texto-real…”, por favor, desconsiderem este “texto-real” que aí nada quer dizer. Pois uso o termo para os textos escritos que vieram antes dos tratados “línguísticos”.

    Obrigado.

    L.V.

  26. Leonardo Valverde: Você não tem a mínima noção da língua árabe, nem aliás do latim. Se tivesse, perceberia a diferença dos sistemas verbais respectivos. Diferença notável até mesmo entre o inglês e o português. “Dropping names” pode impressionar as garotas, mas não serve para impugnar um fato. E agora sou eu que me retiro da discussão, já que nenhuma das minhas objeções foi respondida satisfatoriamente.

  27. Tentando retomar o assunto deste post, lamentavelmente desviado, me deparei por acaso com duas referências que também podem dizer algo a respeito dele. A primeira é um artigo de Isaac Levi chamado “Value Commitments, Value Conflict and the Separability of Belief and Value”, publicado em 1999 na “Philosophy of Science”. A segunda, quem diria, é o livro “The Problem of Divine Foreknowledge and Future Contingents from Aristotle to Suarez” de …William Lane Craig. :)

  28. Caro Olavo,

    O Sr. escreveu: “Sua ‘prova’ do livre arbítrio é, sim, criancice analítica. Ninguém, para fazer uma previsão ou promessa, precisa conhecer TODA a ‘árvore causal’ ou ter mesmo uma ‘prefiguração’ (sic) dela. Se fosse assim, os meteorologistas, para saber se haverá um furacão dentro de dez minutos, teriam de conhecer a data certa da criação do mundo e a do Juízo Final”.

    Não sei de onde o Sr. tirou uma ‘prova’ do livre arbítrio em meu texto ou em algum comentário. Estou de acordo com a opinião de que ninguém precisa conhecer todas as causas possíveis e atuais para fazer uma previsão ou promessa. Quem é que exige isso? Eu é que não vi nenhuma objeção ao que sustentei.

    Um abraço,
    Julio

  29. Caro Renan,

    Você não entendeu nada. Então a realidade é uma tensão entre livre arbítrio e determinismo e eu confundi a esfera subjetiva e a absoluta? É precisamente isso o que eu pretendi distinguir. Para quem não tem um mínimo de sutileza e preocupação com a exatidão, tudo isso é mesmo masturbação mental.

    Além do mais, seu argumento inicial, apenas esboçado, é teológico, e não filosófico. Se eu preciso tomar a existência do “verdadeiro Deus” como premissa para propor um conceito gnosiológico de acaso, meus recursos filosóficos acabaram.

    Att.,
    Julio

  30. Só uma pequena nota: (aos interessados)

    Peguem a “Gramática do latim vulgar” (de onde vem a língua portuguesa), de T. Maurer Jr., e a primeira gramática do árabe, o Kitāb, de Sībawayhi (um persa, que foi inclusive citado por Bopp em seu trabalho) e vocês verão que o sistema de tempos verbais é o mesmo. O que muda, no caso do árabe, é que nesta língua o modo como os verbos são criados (a partir de raízes consonantais) é diferente do latim (que já vem de raízes “prontas” e, como as chamamos, vocálicas; aliás, como no sânscrito). No mais, nestes tempos verbais, o que muda são os “aspectos”, que só, segundo Coseriu, “aludem à maneira de considerar a ação verbal no tempo”, e não o tempo verbal em si mesmo.

    Atenciosamente,

    L.V.

  31. Se alguém diz “choverá amanhã” é óbvio (não?) que HOJE, agora, o valor-verdade de uma tal sentença é indeterminado, não podendo nunca ser verdadeiro ou falso no momento em que é inferida. Hintika cogitou uma tense logic, não, Julio? Mas, seguindo, “choverá amanhã” só passa a ter um valor-verdade amanhã, quando então podemos atribuir-lhe verdade ou falsidade. E, não, não vejo como o futuro do presente do indicativo diria respeito à necessidade em previsões desse tipo, que são só possíveis (a lógica modal não dá conta disso?). Nesse sentido, o tempo futuro, quando usado em previsões não científicas (do tipo “a água ferverá a 100 graus”) não diz respeito a uma realidade, mas apenas a uma possibilidade de realidade.

    Talvez Julio queira dizer que há algo de errado com esse arrazoado mooreano de puro common-sense, mas, dado o tipo de enunciado de que tratou-se, não acho que haja muito mais o que dizer.

    Veja que curioso: a sentença “x tem uma consulta médica amanhã” pode até ser verdadeira, se o fulano realmente já tiver a consulta marcada. Mas, de fato, “x irá ao dentista amanhã” HOJE só pode ter um valor-verdade indeterminado, donde não há como o terceiro-excluído se aplicar aqui, a enunciados meramente possíveis no futuro.

  32. Corrijam-me se for necessário, porque talvez eu esteja a ponto de falar uma idiotice.

    Os valores de verdadeiro e falso só podem se referir ao que é real, ao que existe. Neste ponsto, parece que há uma distinção que deve ser feita: a do observador.

    Para nós, situamos na linha do tempo, sem saber onde a reta começa e onde termina, o tempo à frente ainda não existe, não é realidade, portando o juízo de verdadeiro e falso não pode se aplicar; o único que parecer vir ao caso é o de probabilidade de se tornar real.

    Entretanto, para um osbervador que está fora do tempo, que o transcendo, que está fora da linha temporal (i.e. Deus), o que está à nossa frente no tempo ainda como não-ser estaria para ele como presente (desculpem-me os analíticos rigorosos, mas não há definição melhor disso do que o início de “Four Quartets” do Eliot), podendo assim receber o valor verdadeiro/falso. Aqui sim parece fazer algum sentido a análise de necessário e contingente, de como, observando de fora todas as possibilidades, identificar qual é a que se efetiva.

    Nem chego a mencionar o ponto da “vontade”, do livre arbítrio, das chances de se realizar a vontade no futuro; isso já parece ser muito mais complexo.

    []’s

  33. Adrian,

    O que eu tenho pensado é que a necessidade não atinge o fato, mas sim a proposição disjuntiva que corresponde, no plano ontológico, a: o fato [p] vai acontecer ou não vai acontecer. É um axioma não-lógico, que vem da metafísica e não da lógica. O correspondente proposicional desse princípio metafísico, formalizado, seria: L(p v ~p), usando L como o operador de necessidade.

    Vamos ao texto original. Aristóteles diz no início de De int. 9, na tradução inglesa do nosso amigo J. Barnes:

    “For if every affirmation or negation is true or false it is necessary for everything either to be the case or not to be the case. For if one person says that something will be and another denies this same thing, it is clearly necessary for one of them to be saying what is true – if every affirmation is either true or false; for both will not be the case together under such circumstances”.

    O que ele está dizendo é: se toda afirmação (para simplificar, deixamos de lado as negações) é verdadeira ou falsa, é necessário que todo fato [p] seja ou não seja o caso. Nisso, a atribuição de V ou F a p corresponde, no plano proposicional, a [p] “ser o caso” ou “não ser o caso” no nível dos fatos. E também: se alguém diz p, ela está necessariamente certa ou errada, já que a premissa é que toda afirmação é verdadeira ou falsa. Ele está comprometido com o princípio da bivalência.

    E é esse princípio que, penso, leva à necessidade de dizermos HOJE que um fato futuro [p] é DESDE JÁ verdadeiro ou falso. Aí é que está o problema. Se colocamos no meio a lógica modal, sem maiores especificações, não resolvemos nada. Podemos dizer que [p] é possível ontologicamente; mas antes do possível está o mesmo operador de necessidade L, que supervém dizendo que, desde agora, é necessário que ou p ou não-p.

    Creio que se possa resolver alguma coisa, repito, pensando na diferença entre a necessidade de que uma afirmação seja verdadeira ou falsa e a necessidade de que um fato [p] tenha lugar. Se [p] vai ter lugar ou [não-p] vai ter lugar é indiferente; se [p] teve lugar, a afirmação “é necessário que p ou não-p” é válida (“válido” aqui em sentido impróprio); se [p] não tem lugar, a afirmação continua válida.

    O que é curioso é que o correspondente metafísico final, verificado no tempo t (o fato [p] tem ou não tem lugar) é contingente, enquanto o proposicional (toda afirmação sobre um fato é ou verdadeira ou falsa desde já) é necessário.

    Para ser o mais simples possível: o esquema geral “qualquer fato ou ocorre ou não ocorre” é necessário; o fato concreto de que [p] ocorreu é contingente, justamente porque é necessário que ou ocorra ou não ocorra! Fosse necessário que ocorresse, o fato [p] seria necessário. Mas nem o surgimento do Universo parece ser um fato necessário…

    Posso estar cometendo um equívoco, e gostaria de ser corrigido.

    Como sempre, isso é um problema filosófico porque gera perplexidade. A realidade é indiferente a problemas filosóficos (e aqui o maior amigo dos ‘sábios’ era Wittgenstein, que gostava de desfazer ‘conversinha analítica’ com um grito: NONSENSE!); mas se queremos continuar fazendo filosofia, precisamos ao menos tentar — como Aristóteles — resolvê-nas sem apelar a coisas como “ah, não complica!”, “vamos dar ouvido à sabedoria dos velhos” ou a literatura, que supostamente resolveriam ou dissolveriam empiricamente a questão.

    Um abraço,
    Julio

  34. Talvez Wittgenstein dissesse que se trata de uma pseudo-questão, porque é um problema filosófico do qual não se pode falar claramente, etc., mas deixemos de lado os excursos especulativos.

    Ou não, arrolo um último excurso especulativo: talvez não possa haver uma lógica temporal em Aristóteles justamente por causa da visão dele sobre o que seja o tempo (número do movimento contado por uma alma) e também porque, para ele, a lógica trataria de enunciados atemporais.

    E aqui vem a sua refutação da minha proposta anterior: Aristóteles está tomando esses enunciados do tipo “ou algo é verdadeiro ou algo é falso” do ponto de vista da eternidade, ou melhor, de um ponto de vista atemporal. A despeito do operador (adverbial) temporal “amanhã”.

    Aqui seria necessário distinguir o que é cognoscível do que é real, digamos, o “plano do que é humanamente possível saber” e o “plano dos fatos”. No primeiro a minha afirmação original é válida: do ponto de vista do conhecimento humano “amanhã choverá” é apenas uma possibilidade lógica sobre a qual não temos certeza e que portanto é indeterminada e até certo ponto incognoscível (até certo ponto apenas, porque há a probabilística e a estatística). Porém, no plano dos fatos lógicos atemporais de fato a sentença já era, é e sempre será verdadeira ou falsa, embora não tenhamos cognoscibilidade de seu valor-verdade.

  35. Errata: Aristóteles trataria de enunciados lógicos de um ponto de vista atemporal, porque, no fundo, catzo, “amanhã choverá” é um enunciado lógico temporal, mesmo que seu valor-verdade seja atemporal.

  36. Julio,

    1. Penso que o argumento esboçado pelo Renan não seja teológico. Posso imaginar que, por “verdadeiro Deus”, ele quis pôr de lado noções equivocadas acerca da relação entre temporalidade e eternidade (como a de um deus que cria um mundo como um mágico, desde fora, tirando um grande coelho da cartola). Da eternidade – ou Deus, em seu aspecto onisciente – à temporalidade, há uma hierarquia de planos de realidade, uns mais contingentes, outros menos, o que impõe que façamos a distinção do ponto de vista de que falamos ao situarmos nosso objeto de investigação (tenho a impressão, espero que correta, de que não preciso argumentar em favor de tudo isso porque não discordaríamos essencialmente sobre essa matéria). Talvez fosse a essa distância e distinção a que ele se referia ao falar em esferas “subjetiva” e “absoluta”. Tu dizes que não confundiste uma coisa e outra, e que, ao contrário, tentaste distingui-las. De fato, até certo ponto o fizeste. Em um passo, tu indagas se a *afirmação* (o sentido proposicional, lingüístico, daí subjetivo) pode ser verdadeira ou falsa, e em seguida perguntas pela possibilidade de valorar a sentença do “ponto de vista ontológico” (da ordem das coisas, ou, um tanto mais acima, do absoluto). Está ok. Contudo, tu passas brutalmente por cima dessa distinção a partir do parágrafo em que dizes: “Eu pergunto: minha ação, minha decisão já está, portanto, determinada?” A resposta, todo mundo sabe, é sim e não, de acordo com o plano de realidade em que estejas tomando a questão.

    2. Mas há uma segunda imprecisão dada como premissa de teu texto, ou melhor, dada como exclusão de um segundo nível de distinção. Dou-te o ponto de teres, pelo menos, ponderado que deixarias de lado o problema “da relevância ou não do sujeito em sentenças/proposições semelhantes”. Ora, não é possível falar do assunto sem levar isso em conta. Porque, além de distinguir frente a que plano de realidade se está tomando a sentença, é preciso ainda distinguir em relação a que se está querendo verificar sua validade: a) se entre a proposição e o juízo (ou seja, se o sujeito está sendo sincero), b) se entre a proposição enunciada e a proposição ideal que se quis dizer (ou seja, se o sujeito se expressou de modo adequado), c) se entre a proposição e a realidade dos fatos (o que, enfim, acabou te interessando mais) – isso, para ficar só em algumas distinções bastante primárias, e tenho certeza de que tu mesmo poderias fazer outras tantas, como mostraste em comentário acima.

    3. Essas distinções, ademais, subentendem outra mais básica: entre a vivência de futuro e sua formalização gramatical. Ora, a lingüística (meu conhecimento na área é muito limitado, mas falo isso com um grau razoável de certeza) nos mostra que, embora desde sempre o homem, enquanto homem, tenha experimentado o endereçamento de sua fala ao futuro, nem sempre o fez com formas gramaticais de futuro claras. Não precisamos ir longe. Uma das primeiras coisas a ir pras picas do latim clássico ao latim vulgar foi a forma gramatical de futuro. Em vez de uma construção sintética, como “amabo”, passou-se a utilizar uma forma composta curiosa [inf. + 1º p.s. *habere*], “amare habeo”, que os lingüistas vêem como proto-subjuntiva, a indicar o desejo, expectativa etc. de que determinada coisa se dê no futuro. Só com os romanços, com formalizações feitas a partir de usos *literários* da língua, é que se estabeleceram as formas neolatinas de conjugação de futuro. Lembro isso apenas para deixar claro que importa, menos que proposições abstratas escritas com verbos no futuro – que são tão historicamente contingentes que em determinados períodos chegaram a desaparecer enquanto formas gramaticais! –, tomar vivências concretas do futuro, que vão para muito além do que se pode fixar em enunciados. Pelo que entendi, era isso que o Prof. Olavo estava advogando. Se alguém pode achar abusiva a expressão “criancice analítica”, não pode contudo achá-la de todo inverídica neste caso. Dizes que se trata de um “nível de análise” que não pode ser preterido. Eu também acho que não. Mas o modo como tratas a questão acaba dando a ela uma substancialidade que ela não tem, e eu arriscaria dizer que o próprio Aristóteles talvez subscrevesse essa afirmação, pois sua análise em De Interpretatione 9, com toda evidência, não é apenas “proposicional”. Aliás, a abordagem do tema na Summa Theologica diz muito: não tendo quase nada a ver com o que desenvolveste em teu texto, embora em comentário tenhas invocado essa passagem, Santo Tomás se preocupa com o valor de proposições sobre fatos que ainda não ocorreram *apenas como parte* da questão sobre se Deus tem ou não conhecimento de futuros contingentes. É coisa muito diferente.

    4. Por fim, imagina que viesses me dizer: “O anti-semitismo é um erro”, ao que eu respondesse: “Calma lá, Julio. Você não pode se precipitar dessa forma. Existe uma imensa bibliografia sobre o assunto, cheia de sutilezas que merecem atenção. Vá à Alemanha, passa uns dez anos trancado em bibliotecas lendo tomos do século XIX e só então, depois de muita leitura e reflexão, volta aqui para me dizer – se for o caso! – que o anti-semitismo é mesmo um erro”. Bom, é mais ou menos isso que fazes ao invocar a tradição de estudos a respeito do “tema”, tradição essa que é sobretudo analítica (que fique claro: *quanto à perspectiva que adotas*), mas mesmo assim a comparação ainda é muito falha, já que o anti-semitismo é um problema real, e o que propões mal chega a ser problema, quanto mais real.

    Abraço,

    Ronald Robson

  37. Caros Julio e Adriano,

    Em meu primeiro comentário, a dúvida que (ainda) tenho vai ao encontro do último comentário do Adriano, em que ele diz, com o Estagirita, que o tempo é “o movimento contado por uma alma” (tenho quase a certeza que li isso também no De Anima), sendo assim, a afirmação não viria de uma necessidade (da alma; nossa), e esta necessidade já não marcaria um fato como verdadeiro? Mesmo sendo no futuro e podendo não acontecer…

    Quero entender!

    Abraços.

  38. Apenas uma emenda. No primeiro parágrafo, quando digo que a resposta seria sim e não, conforme o plano de referência, eu falava da possibilidade de dizer ser certa ou errada a proposição (1). É que eu, displicente, havia alterado o comentário e esquecido de tirar essa dubiedade.

  39. Caro Ronald,

    1. Posto daquele modo, o argumento era teológico. Quanto a proposições ‘subjetivas’, efetivamente não era o caso. Falava em afirmações com abstração do sujeito (ou seja, não epistemológicas, mas ontológicas — o que ficou claro no texto).

    2. Eu creio que seja possível falar do assunto sem levar em conta o plano do sujeito. Leia meu comentário mais longo acima dirigido ao Adriano, onde dou minha opinião sobre o assunto. Talvez o exemplo (1) tenha levado a uma imprecisão, de fato. Por isso eu tentei deixar claro que não era uma distinção relevante dentro da discussão principal. Ou seja, não é uma distinção relevante no texto original, no qual surgiu a discussão: Arist. De interp. 9.

    3. Justamente por isso falei num sentido lógico (proposições e sentenças), e não gramatical.

    4. Isso é um equívoco. A discussão dos futuros contingentes é predominantemente antiga e medieval; a filosofia analítica entrou no tema, como é óbvio, só recentemente. (Veja a bibliografia que citei na resposta ao Olavo). O argumento histórico prova por verossimilhança que o assunto é, até prova em contrário (porque ele nasceu com Aristóteles e numa obra filosófica), filosófico. Olavo depois ‘voltou atrás’, dizendo que nunca negou tratar-se de um tema filosófico — criticou apenas, sem argumentos substanciais, o uso do método analítico para lidar com ele.

    Abraço,
    Julio

  40. Julio, creio que você esteja equivocado em suas posições quanto aos pontos (1) e (2), por dois motivos contíguos: um famoso professor vive dizendo que para se discutir problemas filosóficos no peripatetismo não se deve caçar excertos do texto aristotélico e tratá-los isoladamente, como sói fazer os filósofos analíticos intérpretes de Aristóteles (sim, a crítica dele é toda essa e já foi exposta em sala de aula); por isso, e aqui vem o segundo ponto, você precisa entender que em Aristóteles, deixando todo anacronismo do XIX para cá, juízos não são feitos no ar, “asubjetivamente”; lendo o livro III do de Anima ficamos lá sabendo que o responsável por emitir juízos é o intelecto agente/ativo/poiético, que faz parte da alma. Não se pode tratar uma parte da filosofia de Aristóteles simplesmente ignorando o resto, como se só os escritos lógicos existissem.

    Leonardo, o tratamento de Aristóteles sobre o tempo e a formulação que citei não se encontram no de Anima, mas em Phys.IV.14. Há outras menções a noção do tempo nas Categorias e também no próprio de Anima, em que o tempo é visto como um sensível-comum — curiosamente o problema do tempo era uma das três partes de minha IC com o prof. Marco Zingano, que se encerrou há cerca de dois anos (talvez ele me visse como uma cigarra mágica, mas isso não vem ao caso).

  41. Adrian, estou ciente disso. Mas não creio que o problema surgido na obra mencionada (o da batalha naval) envolva juízos subjetivos; ele fala em enunciados asseverativos — afirmações ou negações sobre o futuro. Não vejo nenhum conteúdo gnoseológico capaz de mudar a formulação do problema. A propósito, o Paulo escreveu um artigo sobre esse tema trazendo à discussão os vários aspectos da obra aristotélica e dos comentadores. Confira aqui: http://www.filosofiaantiga.com/documents/paulo-revisto.pdf .

  42. Adriano, creio que você me respondeu logo quando falou ao Julio, porque é exatamente o ponto que pensei, em suas palavras: “juízos não são feitos no ar, “asubjetivamente”; lendo o livro III do de Anima ficamos lá sabendo que o responsável por emitir juízos é o intelecto agente/ativo/poiético, que faz parte da alma”, este era o ponto de minha dúvida, pois se faço uma afirmação, como posso negar o sujeito (eu mesmo) desta afirmação? Agora, está mais claro. E obrigado pelas referências, buscarei esta da Física.

  43. Caro Julio,

    O Adriano, por outras vias, acabou dizendo algo que eu ia dizer mas fiquei com preguiçar de “provar”: nenhuma proposição, se tomada à revelia de seu sujeito e dos acidentes concretos e necessários para que se efetive, pode ser “ontológica”. É uma contradição em termos. Ela pode ser analisada gramatical ou logicamente, sim, mas tal análise tem resultados tão formais e insubstantivos que podem até mesmo ser invertidos quando tentarmos passar ao trato de situações de fato ontológicas.

    Abrç.

    Ronald Robson

  44. Julio, esse é meu último comentário e quero fazê-lo para abrir a questão e não a fechar — digamos que a ideia seja tratar o problema como uma aporia a ser debatida nas próximas muitas décadas entre todos nós, assim como durante séculos outros muito mais sábios que nós já a discutiram.

    (1) Eu sei quem referenciou o artigo de Paulo a você e não creio que tenha sido o próprio. Sei também que nenhum de vocês o leu (o professor da Unifesp é de um tecnicismo e de um conhecimento dos specifics tão grande que todos nós precisaríamos dedicar alguns bons anos à questão para entendermos verdadeiramente o que ali está escrito ao nível oxoniano do detalhe). Lendo o mesmo agora — reconheci ao Paulo que quando ele foi publicado apenas li a introdução e a bibliografia — creio que há dois pontos que corroboram o que eu disse em minha primeira resposta a você (depois dos excertos).

    (1a) De um lado há a incognoscibilidade (epistemológica obviamente) do contingente futuro, do outro há seu valor-verdade dada eterna ou atemporalmente. Isso aparece no artigo na posição que considero a de Paulo mesmo: “[…] proposições a respeito de futuros contingentes não são
    nem verdadeiras nem falsas antes que se dê ou não se dê, no tempo para o qual o
    prescrevem, o evento que descrevem (muito embora se tornem verdadeiras ou falsas
    conforme se dê ou não se dê, no tempo para o qual o prescrevem, o evento que
    descrevem)” (p.9). Aí se pode fazer uma objeção logicista tanto por parte do Paulo, quanto da sua: e onde se fala em “juízo subjetivo”? Ora, do ponto de vista meramente lógico vocês teriam razão, mas ouso dizer que estão equivocados, pelo simples motivo de que “enunciados asseverativos” são feitos pelo intelecto poiético e, no fim, pela alma (não encontrei uma só menção ao DA no artigo do Paulo). Há um famoso artigo de Christopher Shields que recomendo aqui, au passant, “Soul as Subject in Aristotle’s De Anima” (http://people.umass.edu/cox/shields_deanima_bk1.pdf), o que livraria de anacronismo a expressão “juízo subjetivo”, que nunca usei. Essa é minha posição, todo enunciado asseverativo só pode ser feito pelo “sujeito”/alma (ou mais especificamente intelecto agente) e então é necessário levar em consideração o que lhe é possível saber.

    (1b) O segundo ponto consistia em dizer que enunciados asseverativos sobre futuros contingentes podem ser considerados sob outro prisma que não o do “sujeito” (aqui metonímia para intelecto agente); esse outro prisma se dá sub specie aeternitatis. Se bem entendi o que Paulo diz esse é o ponto de vista defendido por Amônio e Boécio. Ao que vejo (1a) não está em contradição com (1b), são apenas pontos de vista “analógicos”, em sentido tomasiano, ou seja, de um lado há o conhecimento humano, parcial e temporal e finito, do outro há o conhecimento do ponto de vista da eternidade que só Um tem. Nesse último ponto de vista o enunciado bivalente já está decidido desde sempre.

    (2) O início do artigo de Paulo põe em dúvida algo que eu disse aqui, apressada e inconsequentemente. Pelo que vi é sim possível uma lógica temporal em Aristóteles, embora no que parece ser apenas seu nascedouro (ou talvez nem seja uma lógica separada, como querem os analíticos, e sim que a própria ciência lógica tenha um caráter [às vezes] temporal). Como se a monta eu não sei. Eu só sei que é complicado usar o de Caelo para dizer que para Aristóteles o tempo é eterno (talvez isso não possa ser posto em dúvida, é o que Remi Brague repete sem fim, etc.) — embora pareça haver uma questão etimológica quanto ao “aion” que diz respeito ao próprio movimento dos céus. Mas aqui Paulo sabe muito melhor que eu qual é a autenticidade da obra (talvez não paire mais dúvida alguma). Apenas vejo dificuldade em encaixá-la com o resto da filosofia aristotélica, principalmente em comparação com as passagens sobre o tempo no livro IV da Física. Mas aí valeria um estudo comparativo à parte, também à luz de posições unitaristas x desenvolvimentistas — discussão de metodologia filosófica que se repete também entre os intérpretes aristotélicos durante todo séc. XX, até hoje. Ou seja, estou aqui sendo excessivamente rápido com o que merece muito mais estudo por parte de todos nós (menos Paulo, que já é faixa preta).

    Em tempo: se mostrarem que estou errado em meus argumentos, etc., não evitarei a (auto-)correção. Mas acho que minha participação já se estendeu ao limite.

    Grande abraço a todos,

    Adriano Correia.

  45. Adriano,

    Pelo que vi, você, Ronald e eu defendemos pontos muito parecidos, e também a sua citação do Paulo. Mas agora no seu último post ficou uma dúvida que eu havia esquecido de formular: no caso 1b, como se, por parte do juízo atemporal, situado na eternidade, a identificação do necessário e do contingente? Estando fora do tempo só se é possível perceber o fato, ou seja, é necessário (aí me parece que há uma espécie de determinismo, mas não imposto sobre a vontade do agente)? Onde fica o que é contingente? Na eternidade o que é contingente se dissolve?

    []’s

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