A batalha naval amanhã

Quando dizemos algo sobre o futuro, podemos estar dizendo a verdade ou, ainda, mentindo? Em outros termos: sentenças com verbos no futuro podem receber os valores “verdadeiro” ou “falso”? Vamos pensar num exemplo. Olho em minha agenda e vejo que amanhã tenho um compromisso com o dentista às 18:00. Neste preciso momento estaria eu autorizado a dizer

(1) irei ao dentista amanhã às 18:00

e saber que essa afirmação é verdadeira ou falsa? Ou ainda, do ponto de vista ontológico, tê-la ‘fixada’ como um fato verdadeiro ou falso?

Aristóteles, em seu De interpretatione (nome latino da obra que entre nós é chamada às vezes “Sobre a interpretação”), enfrentou esse problema e apontou um aparente paradoxo que não me parece difícil de se enxergar. Alguns pensam inclusive que sua resposta foi no sentido do determinismo. Pensando no exemplo acima: tomamos a frase (1) e esperamos o dia seguinte. Se eu acabo por ir ao dentista, a frase “se torna” verdadeira. Se resolvo não ir, a frase “se torna” falsa. Um olhar situado no exterior, todavia, mas que possa vislumbrar a linha temporal dos acontecimentos, certamente estaria em condições de, vendo o desfecho positivo da minha ação, situar-se no dia anterior e dizer:

(2) x irá ao dentista amanhã às 18:00,

ou vice-versa, mutatis mutandis. Esse observador, portanto, pode fixar o valor de verdade da sentença (2). Fantasiosamente, poderia inclusive comunicar-me o fato, dizendo:

(3) você irá ao dentista amanhã às 18:00.

A situação pode piorar, porque alguém poderia dizer que esse observador é Deus — e alguns acreditam nele e no seu costumeiro atributo (a onisciência, que inclui o passado e o futuro numa “posse simultânea”, para falar quase como Boécio), embora Arthur Prior tenha sustentado, com muita argúcia, que nem Deus poderia saber o que eu decidirei antes que a decisão tenha lugar (!).

Eu pergunto: minha ação, minha decisão já está, portanto, determinada? O problema pode ser formulado tecnicamente como o valor de verdade de sentenças no futuro. Alguns dizem, como antecipei, que essa é a opinião de Aristóteles. A verdade de afirmações como (1), (2) ou (3), que aliás levantam outro problema que não enfrentarei aqui (o da relevância ou não do sujeito em sentenças/proposições semelhantes), argumenta Aristóteles, implica a necessidade metafísica. Se (1) é verdadeira, (1) é desde já necessária. Porque, afinal, ela é ou verdadeira ou falsa — terceiro excluído. Se é verdadeira, é necessariamente verdadeira; se é falsa, é necessariamente falsa. E para ser exato, é justamente a adoção do princípio da bivalência ou do terceiro excluído (axioma p ou não-p) que levará à necessidade de afirmações como (1). Se (1) é verdadeira, “it is meant to be” e não pode mudar de valor; e qualquer decisão da parte de x (ou da minha parte) será inútil. Mas o próprio Aristóteles argumenta, com maior ou menor sutileza: o fato de que qualquer deliberação é inútil não parece ser verdade, uma vez que agimos como se deliberações sobre o futuro imediato fossem possíveis, dentro do que depende de nós. Além disso, a afirmação de que verdade implica necessidade implica, por sua vez, a inexistência de eventos contingentes (ou seja, tudo é necessário); o que parece igualmente absurdo, embora haja respostas importantes a essa conclusão já na Antiguidade, com Crisipo.

Um comentarista de Aristóteles, Amônio, propôs uma tese diferente. Para ele, o filósofo teria sustentado que sentenças singulares sobre o futuro têm valor de verdade, mas não de necessidade. Aristóteles inclusive faz um estudo estatístico, propondo diferentes probabilidades para casos típicos. (O que nos leva a pensar em valores de verdade probabilísticos para sentenças no futuro.)

O clássico livro de Pier Luigi Donini, Ethos: Aristotele e il determinismo (1989) procura retomar a tese de Amônio, indo mais longe no tema das ações futuras como consequência do caráter dos indivíduos, tendo em conta a questão: um indivíduo justo tende a ser sempre justo, e vice-versa? A nova tradução inglesa da monografia de Donini — Aristotle and Determinism, Peeters, 2010, 225 páginas –, resenhada pelo Prof. Marco Zingano na Bryn Mawr Classical Review (2012), é certamente uma grande contribuição para esse tema clássico e, ao que parece, inesgotável. Mas eu sinceramente não sei dizer ainda se a sentença

(4) o tema dos futuros contingentes nunca será esgotado

é verdadeira ou falsa.

Eu diria que sentenças como essa precisam recorrer a ‘uma lógica’ que ou aceite um terceiro valor de verdade (verdadeiro, falso, “pendente de definição” — e isso foi muito bem formulado por Kleene em Introduction to Metamathematics, e para esse preciso fim por  Jan Łukasiewicz nos anos 20 do século passado) ou possa lidar com múltiplos valores de verdade, como na probabilística. É uma imposição da realidade, que vem de fora para dentro: se o princípio da bivalência causa alguma violência, é preciso ver onde está o erro. O futuro, até novo aviso, não está determinado. Ao menos assim funciona o nosso sistema operacional. Prevemos as coisas, mas não as determinamos de antemão — especialmente quando não dependem de nós. E Deus certamente não nos fica a perturbar com premonições paradoxais ou com trailers de “De Volta para o Futuro”, esculhambando a sua própria onisciência.

Um esporte perigoso para o determinismo era um que praticava quando pequeno: o da “sabotagem do futuro”. Muitos de vocês já devem ter brincado com a ideia. Era muito simples: quando tudo indicava que eu fosse fazer a, eu fazia b. Isso muitas vezes era estúpido ou penoso; mas ao menos servia para mostrar “quem manda aqui”. (Eu ou o homenzinho determinista?)

O problema do determinismo já foi assunto das páginas da Dicta; em nosso primeiro número, Joel Pinheiro escreveu um ensaio sobre o tema. Sua preocupação não era nem a conciliação entre onisciência divina e liberdade humana e nem o valor de verdade dos contingentes futuros, mas encontrar alguma base para nossa experiência de que, embora tenhamos agido de determinada maneira, era possível, no momento que passou, escolher outro rumo para nossas ações.

73 comentários em “A batalha naval amanhã

  1. Já estou fora desta discussão. Só queria perguntar quatro coisinhas que podem ter ou não ter algo a ver com o assunto. (1) Os distintos já se deram conta de que a “mathesis megiste” do Mário Ferreira dos Santos reduz a pó de traque a lógica de Frege? (2) Já notaram que as explicações do Xavier Zubiri sobre a “formalidade de realidade” reduzem quase que à total irrelevância a lógica proposicional? (3) Já notaram que erros de percepção não podem ser corrigidos mediante demostrações lógicas? (4) Já notaram que a finalidade da filosofia, tal como entendida por Platão e Aristóteles, não era resolver problemas lógicos (embora às vezes se ocupasse disso de passagem), mas buscar a ordem interior da alma que permitisse a apreensão correta da realidade, mesmo que o conteúdo percebido não pudesse jamais ser provado?

  2. Caro Olavo,

    Sim, eu já o percebi quando era mais novo. Tudo ficou muito mais fácil e cômodo. Mais tarde voltei para conferir se a mágica estava realmente funcionando, e descobri que perdera tempo com certos filósofos, digamos, alternativos. E aprendi a desconfiar de soluções tão mágicas, prontas a “reduzir a pó” isso ou aquilo. Todavia, nem tanto ao céu, nem tanto ao mar, confio na tradição aristotélica e no adágio “…deinde philosophari”.

    Um abraço,
    Julio

  3. As lições da sua experiência vastíssima muito me edificam. Eu não tinha a menor idéia de que os 56 volumes da Enciclopédia das Ciências Filosóficas do Mário fossem uma solução mágica. Decerto você os leu de cabo a rabo, em quinze minutos, para carimbá-los assim com tanta desenvoltura, tanta segurança e, direi até, num passe de mágica.

  4. Caro Olavo,

    Eu organizei parte da biblioteca do Mário que foi adquirida após o falecimento dele, e não só li uma parte considerável da obra dele, que usei para preparar notas de aula e de estudo, como consultei vários livros que faziam parte dela — o Zubiri, o Suarez completo, os dois volumes do Gredt que ele citava o tempo todo, o Plotino, obras raras do Gilson… Era uma bela biblioteca. A obra do Mário não me convence, entretanto. E você sabe que não estou sozinho; talvez eu tenha me deixado influenciar pelo Esteve Jaulent, que martelava com muita habilidade que ele era um essencialista e que abusava de um pitagorismo fictício. O fato é que isso me afastou. Posso estar errado, mas prefiro ir aos clássicos.

    PS: Desconfio do uso que se faz da filosofia para fins ascéticos. Misticismo não é minha praia, definitivamente.

    Um abraço,
    Julio

  5. P. S. – Eu ignorava também que a busca platônica da ordem interior da alma fosse uma coisa tão fácil, tão cômoda, tão inferior às altíssimas e complexíssimas cogitações filosóficas de Julio Lemos.
    Cheguei a imaginar, nas trevas da minha burrice, que a afetação de superioridade, ultrapassado um certo grau acima do que o senso das proporções admite, pudesse denotar uma falha de percepção, uma falta de autoconsciência, um grave escotoma mental ou coisa assim.

  6. Bem, perguntar não ofende né? Então lá vai: não conheço a obra do Xavier Zubiri mas tenho apreço pela filosofia analítica na sua tentativa de ser rigorosa na formulação dos termos. Quando Zubiri se propõe a dar explicações sobre a “formalidade da realidade” ele faz uso ou não da lógica proposicional? Se não, como ele explica alguma coisa? Se a proposição X (por exemplo, a “formalidade da realidade”) é verdadeira, como demonstrá-la não fazendo uso da lógica proposicional? Lembrando, só quero aprender isso sem ser enxovalhado. Um abraço a todos!

  7. Nunca estudei lógica formal, mas ousarei uma participação aqui.
    A afirmação “amanhã irei ao dentista” me parece apenas um plano mal expresso: “pretendo ir ao dentista amanhã”. Uma expressão mal feita pode ser objeto apenas de análise gramatical ou psicológica.
    Achar que é possível uma demonstração apodítica e a priori sobre a veracidade ou falsidade (e não apenas a probabilidade) de uma afirmação acerca do que não ocorreu (como “choverá amanhã”) me parece mera ilusão de onisciência. É um tanto recorrente que técnicas sofisticadas e versáteis facilitem um mergulho fundo neste tipo de ilusão.
    Por fim, todos os maiores gênios se equivocam eventualmente. Mais frequentemente, ficam deslumbrados com as próprias grandes descobertas, achando que têm um alcance maior do que de fato têm. O próprio prof. Olavo já afirmou que este é o caso de Husserl e do Mário Ferreira dos Santos.
    Eu desconfio que seja também o caso de um dos maiores gênios atuais, o “Darwin das ciências humanas”, René Girard.

  8. Prezado Wilson Santos. “Formalidade de realidade” não é uma proposição, é um termo. Sua pergunta fica, pois, sem efeito. O que o Zubiri afirma é que a atividade essencial da inteligência não está nos juízos (e proposições), mas na tão menosprezada “simples apreensão”. Não posso demonstrar isso aqui, mas, se você tiver a paciência de estudar os três volumes de “Inteligência e Logos”, verá que o homem tem razão. Como a lógica proposicional (ecoando uma herança de Frege) não admite descer a elementos mais simples do que uma proposição, está claro que ela permanece na periferia da inteligência tal como a concebe o Zubiri. Nunca entendi, aliás, como é possível (segundo Frege) que uma palavra só tenha sentido definido no corpo de uma proposição, quando é óbvio que aprendemos palavras (nomes) isolados primeiro, e identificamos perfeitamente os seus significados no mundo das coisas, para só muito mais tarde aprender a montá-las em proposições. Se o Frege tivesse razão, nenhum bebê poderia saber claramente quem é “Mamãe” (e distingui-la de “papai” ou “bola”) antes de aprender a dizer, pelo menos, algo como “Mamãe está na cozinha”.

  9. Prezado Júlio,
    Quer dizer que, organizando a biblioteca do homem e ouvindo umas palavrinhas do Esteve Jaulent (um presunçoso de marca, que empina o nariz até ante Sto. Tomás de Aquino), você já está habilitado a proclamar que a filosofia do Mário “não o convence”? Você é mais do que um mágico. É o THE FLASH da filosofia. Eu, que estudei a coisa por vinte anos, até agora não sei se ela me convence ou não.
    Como se tanta rapidez não bastasse, você ainda se acha habilitado a depreciar a teoria do Zubiri como mera “solução mágica” sem ter nada mais que “consultado” uns livros dele na biblioteca do Mário. Claro, todo mundo tem o direito de chutar, mas não o de fazê-lo com tanta empáfia e depois se proclamar um apóstolo do rigor, da seriedade e das análises meticulosas. Uma certa abstinência de opiniões quanto a autores que você desconhece não lhe faria mal nenhum. “Dropping names” só impressiona a platéia quando não dá na vista que você acabou de ouvir os nomes no elevador quando subia para a festa.

  10. Caro Olavo,

    Melhor evitar a fofoca a respeito do Esteve Jaulent, não? Não creio que ele ficaria feliz ao ser chamado de presunçoso assim, de graça, em conversa de terceiros. Eu peço, por favor, que evite fazer juízos morais sobre pessoas concretas ao conversar comigo. Isso não ajuda em nada numa discussão.

    Enfim, gostaria de dizer duas coisas.

    1) O Sr. entrou em contradição ao dizer que, depois de 20 anos, não está convencido sobre a obra do Mário, condenando-me em seguida por também não estar convencido. O que eu disse é que, na dúvida, preferi ir aos clássicos a perder meu tempo com a obra dele, que é duvidosa (o Sr. mesmo disse isso, embora carregue menos no ‘duvidoso’). Tenho todo o direito de empregar bem o meu tempo lendo, por exemplo, Aristóteles ou Kant em vez de Mário Ferreira dos Santos. Deixo aos outros o trabalho de mostrar que ele tem algo a dizer.

    2) O argumento de que não li o Zubiri inteiro (eu só li “Naturaleza, Hombre, Diós”), ou qualquer outro, para poder dizer algo sobre ele (repare que eu não disse nada de positivo ou negativo sobre Zubiri!), também vale para o Sr. no que diz respeito a Frege, Prior ou Kripke, ou qualquer outro. É muito comum que as pessoas sejam seletivas, e se concentrem naquilo que lhes parece mais relevante. Podemos debater questões particulares, mas nunca refutar um filósofo inteiro, embora alguns o mereçam; nesse passo, o que podemos fazer é selecionar.

    Um abraço,
    Julio

  11. “PS: Desconfio do uso que se faz da filosofia para fins ascéticos. Misticismo não é minha praia, definitivamente.”

    Isto é, você diz fazer Filosofia e ao mesmo tempo rejeita o que julgava ser Filosofia um sujeito chamado Sócrates, o fundador da brincadeira.

  12. Prof. Olavo de Carvalho,

    Obrigado pela correção, indicação de leitura e mini-aula. Aproveitando a oportunidade e a paciência do senhor, por favor, o que o senhor diria sobre o ocasionalismo? Alguns filósofos analíticos calvinistas o consideram a melhor solução para o modo como aprendemos sobre a realidade.

  13. Renan,

    Sócrates é fundador de um dos modos de fazer filosofia, um personagem em parte histórico e em parte ficcional. Aristóteles opôs-se a quase tudo em Platão, o discípulo de Sócrates, e ainda assim era um filósofo. Uma coisa é cultivar as virtudes, o que ele certamente fazia; outra é fazer filosofia, como bem observou o Cardeal Newman. As coisas não se opõem, mas não devem ser misturadas indiscriminadamente. E pior: exercitar as virtudes é, por sua vez, algo diferente de ser um místico. Entende-se Sócrates a partir da tradição grega, mas não acho saudável, e nisto concordo com os cristãos, subscrever tudo o que ele disse sobre a “ordem da alma”. Creio que você não discorde de mim.

    Um abraço,
    J.

  14. Prezado Júlio,
    Respondendo ponto por ponto:
    1) “Melhor evitar a fofoca a respeito do Esteve Jaulent, não? Não creio que ele ficaria feliz ao ser chamado de presunçoso assim, de graça, em conversa de terceiros. Eu peço, por favor, que evite fazer juízos morais sobre pessoas concretas ao conversar comigo. Isso não ajuda em nada numa discussão.”
    RESPOSTA: Eu não faço “fofoquinhas”, muito menos lanço insinuações veladas, como você, emendando-as “ex post facto” para dar a impressão de que eram generalidades inocentes. O que eu lhe disse do Esteve Jaulent foi coisa que já disse na cara dele. Disse isso e pior que isso, porque ele falava de Sto. Tomás com uns ares de superioridade afetada, tão tipicamente uspianos, que exigiam uma reprimenda à altura. O episódio aconteceu na casa de nossa amiga comum Henriette Fonseca, que pode testemunhá-lo. Um intelectual alegadamente católico com pretensões de apostolado, que fala de um Doutor da Igreja em tom desrespeitoso, merece mais que reprimenda: merece umas palmadas na bunda, das quais foi poupado pela minha repugnância natural de tocar na porção glútea da sua pessoa, e das quais hoje estaria protegido pela lei federal que tornou intocáveis os bumbuns infantis.
    2) “Eu peço, por favor, que evite fazer juízos morais sobre pessoas concretas ao conversar comigo. Isso não ajuda em nada numa discussão.”
    RESPOSTA: Sua menção depreciativa ao que chamou “pitagorismo fictício” do Mário Ferreira É, SIM, um juízo moral sobre pessoa concreta, aliás pessoa falecida, impossibilitada de se defender. Ademais, juízo difamatório, ainda que velado (como é do seu hábito), porque, ao não explicar que se trata de mero recurso literário usado por um autor, dá a impressão de que este falsificou propositadamente o pitagorismo histórico. Seus constantes apelos a rótulos pejorativos como “cigarras mágicas” e similares também SÃO julgamentos morais, e da mais alta gravidade, na medida em que lançam suspeita quanto à honorabilidade intelectual de pessoas muito melhores do que você. Você não é, portanto, contra juízos morais sobre pessoas concretas. Apenas reserva-se o monopólio do direito de emiti-los. Tudo bem. Afinal, a página é sua.
    3) “O Sr. entrou em contradição ao dizer que, depois de 20 anos, não está convencido sobre a obra do Mário, condenando-me em seguida por também não estar convencido. O que eu disse é que, na dúvida, preferi ir aos clássicos a perder meu tempo com a obra dele, que é duvidosa (o Sr. mesmo disse isso, embora carregue menos no ‘duvidoso’). O que eu disse é que, na dúvida, preferi ir aos clássicos a perder meu tempo com a obra dele, que é duvidosa (o Sr. mesmo disse isso, embora carregue menos no ‘duvidoso’). Tenho todo o direito de empregar bem o meu tempo lendo, por exemplo, Aristóteles ou Kant em vez de Mário Ferreira dos Santos.”
    RESPOSTA: Isso é um truque erístico muito vagabundo, que mostra ser a sua pose de príncipe do rigor analítico uma pura afetação. Você altera, retroativamente, o sentido das minhas e das suas próprias palavras, para dar a impressão de que dizem a mesma coisa, quando na verdade diziam coisas opostas. Sua expressão “Não me convence”, significa que a filosofia em questão é fraca, mal argumentada, inconsistente, indigna da sua atenção, que, confirmando esse julgamento, você diz ter logo desviado para autores mais relevantes. Já as palavras que eu usei – “Estudei essa filosofia por vinte anos e até hoje não sei se ela me convence ou não” – significam precisamente que, sem subscrever necessariamente as conclusões do autor, considero as suas obras valiosíssimas e dignas de atenção continuada – juízo idêntico ao que faço, por exemplo, de um Hegel, de um Heidegger ou de um Frege. Você escamoteia a diferença brutal que existe entre uma atitude de ceticismo depreciativo e uma respeitosa recusa de tirar conclusões finais.
    4) “O argumento de que não li o Zubiri inteiro (eu só li “Naturaleza, Hombre, Diós”), ou qualquer outro, para poder dizer algo sobre ele (repare que eu não disse nada de positivo ou negativo sobre Zubiri!), também vale para o Sr. no que diz respeito a Frege, Prior ou Kripke, ou qualquer outro.
    RESPOSTA: De maneira alguma. (1) Você MENTE ao dizer que nada afirmou de positivo ou negativo a respeito de Zubiri. Você o incluiu pejorativamente entre os autores de “soluções mágicas”, boas só, como você insinua, para iludir crianças. (2) Você NÃO leu “Naturaleza, Hombre, Diós”, pela simples razão de que não existe nenhum livro de Zubiri com esse título. O que existe é “Naturaleza, Historia, Dios”. É o primeiro livro de Zubiri e não dá muita idéia do que viria a ser a filosofia madura do autor, toda contida em obras de publicação póstuma. Mesmo que você o tivesse lido, portanto, isso não o autorizaria a emitir o menor julgamento sobre o filósofo, muito menos a falar dele com essa pose de superioridade afetada que, sinceramente, já não agüento mais. (3) Não fiz julgamento negativo nenhum a respeito de Kripke ou de Prior. Deste último, disse apenas, ainda que em tom hiperbólico (excessivo, reconheço), que nenhum estudo lógico sobre sentenças construídas em tempo futuro pode valer tanto, para o esclarecimento da questão dos futuros contingentes, quanto uma análise crítica das pretensões futurológicas feita com base em casos reais. De Kripke não disse uma só palavra, nem direi, porque os livros dele ainda permanecem na minha estante, à espera da atenção que sem dúvida merecem. Não imagino, como você, que a distribuição do meu tempo útil seja um bom critério para a avaliação retroativa da importância dos filósofos. Dediquei muito mais tempo às obras de Karl Marx e Bertrand Russell, que não me parecem tão boas, do que às de Louis Lavelle ou Duns Scot, que aprecio enormemente. Li até um bocado de Julio Lemos, sonegando atenção à “Histoire de la Philosophie Médiévale” de Maurice de Wulf e ao último livro de Modris Eksteins, “Solar Dance”, que, em cima da mesa, aguardam pacientemente o meu retorno às suas páginas.
    5) “É muito comum que as pessoas sejam seletivas, e se concentrem naquilo que lhes parece mais relevante. Podemos debater questões particulares, mas nunca refutar um filósofo inteiro, embora alguns o mereçam; nesse passo, o que podemos fazer é selecionar.”
    RESPOSTA: Você deveria ter pensado nisso antes de sair carimbando gente boa com o rótulo pejorativo de “cigarras mágicas”. Se você só concede tempo de leitura ao que lhe parece muito valioso, é óbvio que não prestou muita atenção aos autores que deprecia. Eu, ao contrário, só desço o porrete em autores aos quais prestei muita, muita atenção. Na minha juventude, quando você ainda não havia nascido, fui um fã e leitor ávido de Wittgenstein, Karl Marx, Kant, Descartes, Maquiavel, Bertrand Russell e vários outros que, hoje, me parecem estar errados em quase tudo – o que não significa de maneira alguma que sua leitura tenha sido tempo perdido. De Frege, não só li o essencial como ainda recebi a respeito aulas e mais aulas de um devoto admirador dele, o meu irmão Luiz Paulo, excelente matemático que (pausa para os comerciais da família Carvalho) suspeito tenha uma ponta de genialidade. Enfim, dei atenção aos bons e aos ruins, guiando-me pelo critério do seu prestígio público, sem prejulgar sua importância objetiva. Não é verdade que o joio e o trigo devem crescer juntos, para ser separados só depois de crescidos? Não esqueça que só comecei a publicar escritos de filosofia aos 47 anos de idade (sete anos mais velho do que Aristóteles na sua estréia como professor independente). Hoje em dia, ao contrário, os meninos mal saem da USP e já começam a falar de tudo quanto é autor num tom de superioridade olímpica que não exemplifica senão o talento brasileiro da macaqueação e da pose.

  15. Prezado Olavo,

    Teria várias considerações a fazer; mas para não alongar um debate que já se desviou há tempos do foco principal e das suas ramificações, dou-me por satisfeito com as suas respostas, das quais gostei muito, e com a discussão. Um dia colocamos alguns desses problemas a limpo numa conversa ao vivo.

    Um abraço,
    Julio

  16. Leibniz parece ter dado resposta satisfatória ao problema, no seu Discurso de Metafísica, ao separar as verdades de fato das verdades de razão, e ao aproveitar a noção aristotélica de substância e acidente para demonstrar que todas as predicações possíveis de um certo sujeito (passadas, presentes e futuras) já estão expressas na sua alma. Dessa forma, toda predicação verdadeira “tem algum fundamento na natureza das coisas”. Há dois modos de predicação verdadeira: ou ela é heterogênea, e o predicado não está contido na noção do sujeito (diríamos acidente ou concomitante, em terminologia aristotélica) ou ela é homogênea e encerra no próprio sujeito a significação do predicado (como, por exemplo, dizer que um homem individual é um animal racional). Segue, portanto que “podemos dizer que a natureza de uma substância individual ou de um ser completo é de ter a noção tão exaustiva que seja suficiente para compreender e dela fazer deduzir todos os predicados do sujeito a quem essa noção é atribuída”.

    É nesse sentido que se dirá, então, que todas as predicações que não estão contidas na noção do sujeito estão nele de modo virtual, e que, portanto, pode também ser deduzida pelo conhecimento da sua natureza. Segue-se que Leibniz sustentará duas diferenciações: a primeira já foi mencionada: a diferença entre verdades de fato e verdades de razão; a segunda é entre o que é certo e entre o que é necessário. O primeiro trata de coisas que são pré-conhecidas, e o segundo trata de coisas que são determinadas. O que é determinado é facilmente conhecido, pois, sendo necessário, seu contrário implica contradição “e esta dedução faz-se nas verdades eternas como as da geometria”; mas o que é certo apenas pode, para nós, ser conhecido depois que a coisa aconteceu, isto é, ex hypohesis; enquanto que para Deus, que conhece todas as coisas por suas naturezas, esse conhecimento equivale ao conhecimento que temos do que é necessário.

    Mas de que maneira se pode dizer que na “noção estão compreendidos” todos os acontecimentos da substância? Leibniz transpõe a doutrina de Aquino sobre os anjos (quod ibi omne individum sit species infima) de que cada anjo individual é uma espécie para as substâncias. É o começo – dentro do expoente do Discurso – da sua concepção de Mônadas. Leibniz defende, portanto, que a forma é individual e única, e por isso cada uma delas tem uma noção igualmente individual e única.

  17. Prezado Olavo,

    Depois de pensar um pouco mais sobre sua resposta, achei prudente fazer algumas observações.

    1) Fofoca ou não, o fato é que me parece que se fez uso de um espaço para debates para atacar, mesmo que para efeitos retóricos, pessoas e não idéias, e não é do espírito do site servir de veículo para isso. Peço, novamente, com o coração aberto, que se abstenha de usar esse tipo de recurso, seja qual for a finalidade. Eu já estou acostumado com o seu estilo, mas isso é claramente anti-filosófico e irracional. Filosofia não se faz com acusações e nem com esse tom, e tenho certeza de que o Sr. está consciente disso.

    2) Minha menção ao Mário foi objetiva. Não vejo como chamar alguém de pitagórico, fictício ou não, possa ser um juízo moral, porque não implica falsificação proposital por parte do autor nem aqui, nem na China. Se quem disse isso tivesse desejado dizer que havia falsificação maliciosa, teria dito que ele é um falsário ou um picareta profissional (porque há picaretas involuntários). Nem os maiores filósofos e cientistas escaparam de pretender dar soluções mágicas para as coisas.

    Quanto aos outros pontos, estou plenamente satisfeito.

    Um abraço,
    Julio

  18. Caro Fernando Simões,

    Precisaríamos ver se Leibniz deu alguma solução ao problema específico de Aristóteles (seguindo a tradição de Amônio, Boécio, Aquino e Ockham); é provável que a tenha dado em alguma passagem. É mais um problema de história da filosofia. Mas essa distinção entre verdades de razão e de fato realmente permite uma solução do caso, se tivermos em mãos outras noções (e. g., sua visão sobre a possibilidade de conhecimento sobre os futuros contingentes). Como ‘criador’ da lógica modal de método filosófico, ou precursor dela, Leibniz tem muito a dizer sobre o tema da modalidade (possibilidade, necessidade, impossibilidade, contingência, etc).

    A minha ideia, exposta com mais detalhes em um comentário anterior, era que o esquema geral “qualquer fato ou ocorre ou não ocorre” é algo necessário (o que é uma verdade de razão, aparentemente); o fato concreto de que [p] ocorreu é contingente (no momento em que ocorreu, porque o passado não pode ser desfeito: “quod fuit, fuisse necesse est”), o que traduz uma verdade de fato. Fosse necessário que ocorresse desde sempre, o fato [p] seria necessário. Mas nem o surgimento do Universo parece ser um fato necessário, que dirá de um fato isolado? Se há “fatos matemáticos” — e eles existem para os idealistas –, estamos diante de um exemplo de fatos necessários, porque o enunciado “2 + 2 = 4″ é verdadeiro em todo e qualquer mundo possível w.

    Agradeço sua valiosa contribuição.

    Um abraço,
    Julio

  19. Prezados Professores,

    Uma nota de rodapé que me seria muito útil: algum dos senhores saberia dizer o que é que Bochenski diz desse problema específico?

    (Curiosamente, em vista do interessantíssimo debate acima, amplamente considerado o principal especialista da O.P. no séc. XX tanto sobre lógica — lecionou no Angelicum na década de 40 quase toda — quanto sobre estudos soviéticos!)

    Seria o primeiro autor que eu leria se fosse me aprofundar nesses assuntos, conforme o método que prefiro seguir (talvez por uma distinta concepção da relação tanto entre filosofia e teologia quanto entre autoridade eclesiástica e liberdade de pesquisa em ciências?) e que me parece conciliar o melhor dos métodos mais ou menos opostos preconizados pelos debatedores acima.

    Infelizmente só tenho, do ilustre filósofo polonês sobre lógica, obras de vulgarização (acabo de reler o Apêndice introdutório e bem elementar sobre lógica matemática — que quero crer esteja bem traduzido para o português nos termos técnicos… — à sua História da Filosofia Contemporânea), não as mais específicas sobre as “lógicas modernas”: só o que sei é que ele defendia firmemente sua unidade (e, portanto, dependência das demais à lógica clássica?) e que as conhecia como poucos.

    Urdanoz no fim do vol. VIII da Hist. Fil. cita meia dúzia dessas obras (incidentalmente, até hoje fico curioso de saber o que diz ele sobre Zubiri na Hist. Fil. Española, que nunca encontrei nem pelo Dedalus nem pela Estante Virtual). Enfim, espero não fazê-los sorrir citando apenas histórias da filosofia em se tratando de questão bem específica… nem tampouco pretendo tomar a opinião do Pe. Bochenski como shibboleth de “ortodoxia” na matéria, apenas me interessa saber qual seja ela e, também, qual o posto dele, se algum, na hierarquia dos especialistas reconhecidos nas universidades laicas.

    Desde já agradecido de antemão pela eventual atenção a mim despendida.

    Atenciosamente,
    Felipe Coelho

  20. Desculpem-me por me meter numa discussão na qual apareceram nomes de filósofos que desconheço completamente. Não sou um especialista no assunto e não tenho intenção de sê-lo. Na verdade, sou um mero advogado de província que às vezes lê uma coisa ou outra de filosofia por curiosidade (admirador do Olavo e, também, leitor da Dicta).
    No entanto, a questão – afora os salamaleques e a terminologia usada pelos autores citados – parece-me que tenha ficado sem resposta. E aí é justamente aonde quero chegar: está sem resposta porque não é uma questão.
    Atenhamo-nos à discussão, resumida por quem a propôs, Júlio Lemos, do seguinte modo:
    “A minha ideia, exposta com mais detalhes em um comentário anterior, era que o esquema geral ‘qualquer fato ou ocorre ou não ocorre’ é algo necessário (o que é uma verdade de razão, aparentemente); o fato concreto de que [p] ocorreu é contingente (no momento em que ocorreu, porque o passado não pode ser desfeito: ‘quod fuit, fuisse necesse est’), o que traduz uma verdade de fato. Fosse necessário que ocorresse desde sempre, o fato [p] seria necessário.”
    Em primeiro lugar, não acredito que se possa comparar o juízo “o homem é um animal racional” com a frase “amanhã irei ao dentista às 18”.
    E isso por uma razão que a mim me parece óbvia: enquanto no primeiro caso há de fato um juízo, e, portanto, uma relação necessária ou contingente entre os termos que o compõem, na outra frase não há juízo algum. Há uma simples tenção, um desejo manifestado por um agente (eu desejo ir ao dentista amanhã ou fulano deseja ir ao dentista amanhã). Logo, não há relação de necessariedade ou de contingência entre os termos da segunda frase.
    Como se vê da própria estrutura gramatical da segunda frase, não existe um sujeito e um predicado seu, nem que a ele pertence necessariamente nem que lhe seja contingente, como acontece no exemplo “o homem é um animal racional” (o homem necessariamente é um animal racional) ou o “o tecido é amarelo” (o tecido pode ser amarelo sem que isso fira sua natureza). Há essencialmente um sujeito, um verbo transitivo no futuro do indicativo e um objeto que complementa esse verbo.
    Bom, se não há um juízo na segunda frase (oração que possa ser reduzida a um sujeito e um predicado), então não há como saber se se trata dum juízo necessário. Espero que seja por essa razão que o Prof. Olavo tenha dito que o problema, na verdade, é gramatical e não lógico.
    Coisa muito diferente seria saber se, da perspectiva de um observador atemporal e onisciente, o fato de tal observador saber de antemão se amanhã eu irei ou não ao dentista implica a determinação de minha atitude. Eis aí, desculpem-me se estiver errado, um dos problemas essenciais do catolicismo, que é compatibilizar a onisciência de Deus ao livre-arbítrio dos homens. Um problema que ao menos para mim, católico, é real.

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