A chaga do Cristianismo

(É Natal, como todos sabem. Toda vez que chega esta época penso igual a T.S. Eliot em seu poema Journey of the Magi: That this was all folly. Tudo isto aqui é uma tolice só. Seria verdade? O Natal coloca o mundo em sua verdadeira perspectiva – isto é, em absoluto ceticismo que paradoxalmente nos abre para algo maior. Abaixo, um texto antigo que tenta mostrar, talvez mais para mim mesmo do que para o leitor, como o Cristianismo consegue – e conseguirá – prevalecer, independentemente de todas as chagas que o consomem e que são produzidas justamente por seus membros mais devotos.

Ah, sim: entro em recesso a partir de agora. Volto só no dia 20 de janeiro de 2011. Feliz Natal e um Próspero Ano Novo aos leitores e leitoras que me acompanharam neste blog e na revista. Obrigado pela leitura e pelo silencioso apoio.)

“O cristianismo, identificando verdade com fé, deve ensinar – e, adequadamente compreendido, de fato o faz – que qualquer interferência à verdade é imoral. Um cristão com fé nada tem a temer dos fatos; um historiador cristão que estabelece limites para o campo de investigação, em qualquer ponto que seja, está admitindo os limites de sua fé. E, naturalmente, também destruindo a natureza de sua religião, qual seja uma revelação progressiva da verdade. Por conseguinte, o cristão, a meu ver, não deve ser impedido, nem no mais leve grau, de seguir o fio da verdade; com efeito, é, positivamente, fadado a segui-la. De fato, ele deveria ser mais livre que o não-cristão, comprometido por princípio com sua própria rejeição. Em todas as circunstâncias, procurei apresentar os fatos da história cristã do modo mais verdadeiro e mais cru de que sou capaz, deixando o resto para o leitor”.

Paul Jonhson, no prefácio da sua “História do Cristianismo”.

O evangelho de João diz que, depois que Cristo morreu na cruz, soldados romanos quebraram as pernas do primeiro homem que estava ao lado dele, e depois as do segundo. Quando chegaram a Jesus, decidiram, repentinamente, não quebrar suas pernas. Conta o discípulo amado (João 19:34-37): “Em vez disso, um dos soldados perfurou o lado de Jesus com uma lança, e logo saiu sangue e água. Aquele que o viu, disso deu seu testemunho, e o seu testemunho é verdadeiro. Ele sabe que está dizendo a verdade, e dela testemunha para que vocês também creiam. Estas coisas aconteceram para que se cumprisse a Escritura: ‘Nenhum de seus ossos será quebrado’ e, como diz a Escritura noutro lugar: ‘Olharão para aquele que trespassarem’ “.

Como tudo na história de Cristo, cada detalhe tem um sentido simbólico intenso, que ecoa através dos tempos. João é o único dos evangelistas que afirma ter visto o cadáver de Jesus ser ferido após suas morte porque, segundo os estudiosos, dos doze apóstolos, ele teria sido o que presenciou a crucificação (é o que também afirma o seu evangelho). Portanto, esta chaga post mortem possui um significado que se traduz no movimento da História, assim como a súbita decisão de não quebrarem suas pernas. Ferem o corpo de Cristo, mas o mantêm intacto. O que isso quer dizer? Compete a nós, que estamos neste presente sombrio (como todos os presentes), avaliar o que aconteceu no passado para entender melhor este fato inusitado – e o que isso tem a ver com nossa vida cotidiana e futura.

O melhor guia para esta empreitada parece ser o livro “História do Cristianismo”, do historiador inglês Paul Jonhson, publicado no Brasil pela editora Imago. É um catatau de 630 páginas, que abrange um escopo muito amplo – afinal, são quase dois mil anos de uma doutrina espiritual que, no fim das contas, triunfou por causa do fracasso de seu fundador, uma das maiores contradições que ninguém teve coragem de explicar até hoje. É justamente este caráter frágil e incerto que fascina os estudiosos – sejam eles ateus ou não. Jonhson, no caso, não é um ateu. É um Católico Apostólico Romano, defensor do papa João Paulo II e de Margaret Thatcher, conhecido por seus pares como conservador, reacionário, extremamente culto, com uma pena afiada que faz muitos deles ficarem à distância, com medo de que possam ser a próxima vítima. Sua obra é inusitada por dois aspectos: o primeiro é que Jonhson escolhe os temas mais ambiciosos, como os Estados Unidos, os Judeus ou o Século XX, e os trata com a maior elegância, numa prosa clara, fluente, sempre divertida, mas sem deixar cair no simplicismo ideológico ou na vontade de facilitar tudo para o leitor; a segunda é pela abordagem dos grandes painéis históricos através da psicologia dos indivíduos, explicando os fenômenos através deles, e não o contrário, o que dá um dinamismo ímpar à narrativa e também uma nova visão sobre determinadas situações, consideradas intocadas pelo público comum. Assim, Jonhson mostra uma verve fora do comum, típica dos polemistas que foram seus modelos, como Samuel Jonhson, Jonathan Swift, Jonh Milton e Erasmo de Roterdam, e consegue desmistificar de forma implacável sujeitos como Karl Marx (no fantástico “Os Intelectuais”), John Kennedy (em “A History of American People”), Lênin (no fundamental “Tempos Modernos”, muito superior ao marxistóide “A Era dos Extremos”, de Hobsbawn) e Disreali (no didático “História dos Judeus”).

Não podia deixar de ser a mesma coisa em “História do Cristianismo”. Polêmica é o que não falta. Jonhson chama, por exemplo, Santo Agostinho, um dos filósofos cristãos mais discutidos da Patrística, autor de “Confissões”, “A Cidade de Deus” e “A Trindade”, de “egoísta, egocêntrico e o inspirador das inquisições espanholas”; São Tomás Becket foi um sujeito que, apesar de ter sido canonizado, “não fez nada de muito importante” e era pouco rigoroso nas penas morais que devia impor aos seus monges; Martinho Lutero teve a idéia da predestinação enquanto estava na latrina; Pio XII era um homem com manias estranhas, como a de emprestar suas sandalhas papais para enfermos, ao mesmo tempo que era um hipocondríaco feroz. E assim por diante. Numa primeira visão, parece que Jonhson fez uma história de fofocas ao invés de um estudo sério sobre a passagem do cristianismo pelo tempo mundano, mas, na verdade, todos estes perfis insólitos são a marca registrada de um historiador que não tem medo de expor a fragilidade do ser humano, principalmente em se tratando dos homens que mudaram o pensamento cristão – todos eles dotados de ampla inteligência, assim como de falhas monstruosas, que acabaram por determinar a vida de milhões de pessoas.

Infelizmente, o livro de Jonhson só vai até o ano de 1975, não cobrindo o curto e polêmico papado de João Paulo I, nem o do atual João Paulo II, o papa que, apesar de todos os obstáculos, conseguiu manter a unidade da Igreja Católica e, por conseguinte, do próprio cristianismo. Mas esta limitação oferece também a possibilidade do leitor se distanciar do tempo presente, e andar pela tradição cristã, a única que conservou os princípios universais do espírito no lado ocidental, mesmo com a constante oposição a ela. Dessa forma, podemos entender, segundo a visão de Jonhson, que quatro homens são responsáveis pela permanência do cristianismo em todos os atos do cotidiano, do maior ao menor: o apóstolo Paulo, Santo Agostinho, Erasmo de Rotterdam e Martinho Lutero (Certamente, se houvesse um apêndice sobre a época atual, João Paulo II seria a quinta pessoa).

Paulo foi o primeiro cristão puro. Sua epístola aos romanos, segundo Jonhson, é o documento metafísico mais importante da humanidade, depois da Metafísica, de Aristóteles. Lá está semeada toda a doutrina da predestinação e também as reflexões do apóstolo sobre como um cristão deve se comportar frente às regras do Estado. Foi este escrito que virou de ponta cabeça a fé de Agostinho e Lutero, por exemplo, e muitos outros. Jonhson retrata Paulo no Concílio de Jerusalém, com Pedro e Lucas, expondo a verdade de Cristo tal como ele firmemente acreditava. Era um homem que tinha fé absoluta na visão que teve na estrada de Damasco, mas também era alguém para quem a parousia poderia acontecer a qualquer momento. Esta sensação perpassa seus escritos de maneira muito evidente, e é ela a principal causa das confusões que se aplicam nos textos paulinos. A parousia foi transposta de uma mensagem de esperança para um comunicado apocalíptico onde apenas poucos se salvariam – deixando de lado o fundo universalista que Paulo acreditava que Cristo deixara como legado. Mas esta contradição exposta em suas epístolas marcarão toda a história do Cristianismo – ela será uma chaga em que sua vida depende dela, assim como o corpo depende da alma.

Entre Paulo e Santo Agostinho, o Cristianismo se transforma radicalmente: de símbolo passa a ser uma instituição, a Igreja Católica Apostólica Romana. Claro que a colaboração de Constantino, imperador de Roma, foi muito importante, mas o sucesso do Cristianismo, por assim dizer, se deve a três motivos: Roma, apesar de seu paganismo, era uma civilização com considerável liberdade religiosa, contanto que a tal religião não interferisse nas questões do Estado (Cristo foi um gênio da diplomacia ao dizer “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”); o Cristianismo chegou no momento certo, pois era uma resposta universalista aos anseios de todos os níveis da sociedade, dos escravos aos aristocratas, passando pelos plebeus; a filosofia cristã era a cristalização do pensamento helênico e exigia uma profundidade intelectual que atraía e assustava tanto os seus crentes, quanto seus opositores. Isto provocava um debate intelectual que tendia para a polêmica fanática, e logicamente, caía na perseguição religiosa e política da qual Roma tirou sua fama durante o seu declínio e queda.

Esta abertura intelectual permitia ao Cristianismo uma série de pensamentos divergentes sobre o mundo espiritual que deu origem a mestres como Paulo, Tertuliano, Santo Antônio e Santo Ambrósio, como aos sacerdotes do gnosticismo, talvez o grande segredo da história universal, a sombra que persegue a tradição cristã até hoje. A transformação do Cristianismo em diversas seitas que tinham suas origens na doutrina judaica, permitiu que apenas uma única fosse a representação universalista que Paulo tanto desejava – a Igreja Católica que, dividida em Roma e em Constantinopla, também se serviu dos últimos frutos do Império e, por isso mesmo, quase entrou em colapso quando este se esfacelou por completo com a invasão de Alarico.

Como se isso não bastasse, havia também as seitas pagãs e gnósticas, entre as quais o maniqueísmo e o pelagianismo, duramente combatidas por Santo Agostinho, por coincidência, um ex-maniqueu que se converteu depois de muitas agruras espirituais e muita reza de sua mãe, Santa Monica. Jonhson tem uma visão negativa de Agostinho, pois ele teria sido o ideólogo da Igreja como Estado – o homem que permitiu a intromissão da autoridade espiritual nos assuntos mundanos. Sob um certo aspecto, Jonhson está certo: Agostinho era um homem complicado, com seu espírito dilacerado entre os ensinamentos maniqueus que não conseguia purgar de seu pensamento (ver a solução dada ao problema do Mal), obcecado com a concupiscência da carne, e crente que sua trajetória era uma prova da existência de Deus (essa era a sua intenção ao escrever “Confissões” – que também pode ser traduzido como “O Testemunho”). No entanto, foi uma das mentes mais poderosas de todos os tempos, e seu tratado de teologia civil, “A Cidade De Deus”, é a maior prova: apesar de ser un livre de circunstance, tenta desesperadamente dar sentido a todo um mundo que acabava com o fim de Roma. É justamente este desespero que faz Agostinho cristalizar ainda mais a instituição da Igreja, uma vez que, paradoxalmente (como sempre acontece com o Cristianismo), a própria unidade da doutrina cristã dependia desta atitude radical. Não se pode dizer que Agostinho fracassou: suas idéias realmente foram inspiradoras para o sistema da inquisição, que foi levado às últimas conseqüências na Espanha, durante os séculos XV ao XVII, na época áurea do Renascimento (e não da Idade Média, como muitos pensam), mas também foi quem provocou o grande impasse para o cristão – como acreditar numa instituição que cometeu tantas atrocidades, mesmo que elas sejam em menor escala?
A Igreja se desenvolveu com rapidez na Europa, depois da queda do Império Romano, principalmente nas mãos de Carlos Magno, que deu origem a uma sociedade cristã total. Foi um processo civilizatório amplo, em que ela acompanhou a criação de leis, o surgimento dos Estados anglo-saxões, a agricultura e até mesmo o comércio, apesar de toda a contra-informação existente, de que a Igreja seria contra o lucro. Em contrapartida, a tortura era vista como um meio legal para se punir um criminoso, a luta entre seitas destruíam a população de vários vilarejos e, por fim, a Igreja foi se encantando com o fausto material de suas riquezas. Os ensinamentos de Cristo estavam repletos de uma teologia túrgida, e assim o cristão não sabia se devia obedecer à sua consciência ou ao papa que representava a linhagem direta de São Pedro. Isso resultou em mais confusão, mais perseguições, mais mitificação e numa hipocrisia que quase acabou com o Cristianismo.

Segundo Jonhson, a religião cristã estava dividida em duas forças: a papista e a milenarista. A primeira era arraigada à instituição católica e seus poderes terrenos sobre o mundo espiritual; a segunda era uma seita formada por homens independentes que queriam formar sua própria igreja, denunciando a corrupção do catolicismo e prevendo o anúncio de um novo Messias, que retornaria com a ordem e determinaria quem seriam os escolhidos. Aí está o germe do protestantismo. Contudo, surgiu no início do Renascimento uma terceira força, muito mais poderosa e atraente porque tinha na sua intenção algo muito simples: devolver ao Cristianismo a moral e deixar de lado a teologia. O homem que representou esta terceira força – também conhecido como humanismo cristão – foi Erasmo de Rotterdam. Escritor, polemista, proto-jornalista, Erasmo aprovetou a revolução de Guttenberg para espalhar seu nome pelo continente. Era um sujeito com uma das mentes mais lúcidas da Europa. Abordava qualquer assunto com o máximo de clareza e o mínimo de exposição, sempre indo na ferida da questão. Suas ligações se estendiam por todos os países, e sua influência foi decisiva para um jovem teólogo chamado Martinho Lutero. Inspirado na epístola aos romanos de Paulo, Lutero afixou suas Teses de Wittenberg e criou o protestantismo, uma das maiores dores-de-cabeça que a Igreja Católica teve – e que resolveu com outra dor-de-cabeça que foram os jesuítas e a Contra-Reforma.

O problema de Lutero e sua nova religião consistia na perda da ritualística simbólica que caracterizava o catolicismo, e na questão da predestinação, que depois seria desenvolvida a níveis neuróticos por Calvino e Wesley. No entanto, foi também um movimento com largo apoio de comerciantes e dos Estados holandês e alemão, prejudicados pelas medidas controladoras da Igreja Católica. Era também uma religião prática que, exceto por um culto e outro, poderia chegar no laicismo e na volta à moral que Erasmo pretendia. Mas Erasmo sabia que a teoria da predestinação de Lutero anulava o cerne do Cristianismo: a redenção universalista. Além disso, Erasmo – que foi amigo de Sir Thomas More, executado por ordem de Henrique VIII, por ter se oposto ao anglicanismo – prezava a tradição intelectual católica, e foi contra as idéias de Calvino quando este disse que, para um bom cristão, o importante era a Bíblia e seu livro de doutrinas, e nada mais. O passado do conhecimento devia ser totalmente esquecido para dar origem a uma nova era, com novos homens.

A partir daí, o Cristianismo seguirá a influência destes quatro homens. A Igreja Católica continuará no poder, mas seu preço será alto: um contínuo isolamento das coisas do mundo, iniciado depois do escândalo da Inquisição Espanhola (um triste fato que até o próprio papado considerava como grotesco), acentuado com a Revolução Francesa (de onde o papado ressurge repentinamente como a única oposição às forças revolucionárias), chegando à tragédia da Segunda Guerra Mundial, em que as atitudes de Pio XII até hoje são motivo de discussão, devido à má divulgação de seus feitos a favor dos judeus, sempre ocultados pelo silêncio moral em relação ao nazismo e ao fascismo.

Já o protestantismo seguirá passos mais tortuosos ainda, e seus filhotes mais recentes, como os triunfalistas dos EUA, serão os típicos crentes de uma nova religião – a religião do Estado. Trocam Cristo por César ou misturam os dois numa cesta de roupas sujas? O exemplo terrível desta tendência é a aceitação das igrejas protestantes alemãs ao poder de Adolf Hitler, vendido por eles como o “Novo Redentor”, sem contar a íntima relação que os pastores tinham com membros da SS. A religião do Estado também terá seu efeito no catolicismo, principalmente na década de 70, com os missionários que, desgostosos com a díficil aceitação do Cristianismo pelos latinos, partem para a luta política, com a criação da Teologia da Libertação, e de um falso assistencialismo, marca registrada da CNBB, com seus ideais marxistas se imiscuindo nos ensinamentos cristãos. Mesmo assim, a terceira força ainda mantém sua integridade, criticando estas duas tendências, mas também caindo na armadilha fácil do interesse ideológico. Jonhson termina seu livro dizendo que a história do Cristianismo é edificante por apresentar uma religião que, apesar de sua fragilidade, sempre teve suas reviravoltas e se manteve viva até hoje. Mas para esta história ser edificante, temos de levar em conta que a chaga ainda queima no corpo, e para isso temos de ir, como Erasmo, tocá-la sem medo, e ver o que está debaixo de tantas perguntas.

O mistério que fascina os estudiosos é a capacidade do Cristianismo de se recriar constantemente. A ressurreição talvez seja a chave do enigma – se não é o próprio enigma. O leitor percebe muitas vezes o espanto do próprio Paul Jonhson ao ver como o Cristianismo escapou de várias enrascadas. Toda vez que parecia que seria mais uma religião morta, eis que surgia de novo, refeita, o corpo preservado, apesar de todas as chagas do passado. Isso dá o que pensar: deve haver realmente algo de sobrenatural para uma religião sobreviver dois mil anos, mesmo com todas as oposições, lutas internas e batalhas pelas almas que atravessaram como lanças os seus músculos. Na última hora, as pernas não foram quebradas. De novo, o símbolo do Evangelho joanino se torna um exemplo da realidade – a eternidade tocando as frestas do tempo e produzindo uma síntese assustadora.

Sim, porque o Cristianismo é assustador. Ele exige uma profundidade intelectual, espiritual e até física do indivíduo. Não é para qualquer um. Além disso, não é uma religião que traz paz, como pensam muitos falsos cristãos. A luta está no cerne do cristão, e sem luta ele não vive. A paz só ocorre com a morte – que só se torna a morte que não mata, depois de muito esforço e perseverança. Claro que nesse sentido o problema da Graça também ajuda, mas isto é um outro assunto. Como estamos ainda no plano da História, ou seja, do temporal, queremos analisar o Cristianismo pela ótica do conflito entre a realidade simbólica e a realidade mundana, essencial para se entender a nossa situação presente.

Assim, temos que desenvolver em torno de outro símbolo, primordial para quem é cristão: a cruz. Há um motivo claro e, ao mesmo tempo, obscuro, para a cruz ser a marca registrada do cristianismo: ela nada mais, nada menos simboliza a consciência do indivíduo que quer se lançar ao eterno, mas freqüentemente encontra obstáculos e tentações. Ora, esta descrição é a de um cristão, seja puro ou não. O eixo horizontal representa a caminhada por este mundo, o deslocamento do homem entre o tempo e o espaço; o eixo vertical mostra a ascese ou a descida que o sujeito faz quando decide viver a vida do espírito, como forma de adquirir as noções de ordem e unidade transcendentes que regem o mundo. Esta escolha não é algo fácil, como já foi dito; às vezes, é mais tranqüilo viver no eixo horizontal, preocupado apenas com o que acontece com a História, do que compreender o que está além dela. O cristão – ou, mais propriamente, a consciência do homem religioso (como são os casos dos judeus e dos muçulmanos) – está bem no centro destes eixos, sendo a sua alma o palco de uma luta pelo monopólio da divindade (entre o Deus Absoluto e os Deuses da História) e pela superação do tempo na conquista do grão da eternidade.

O indivíduo que decide pela vida do espírito é agente e espectador de uma guerra que consumiu a humanidade desde o seu início: a sutil diferença entre o Bem e o Mal. Para isso, ele se vê envolvido numa batalha cotidiana entre os desejos humanos que atendem as necessidades de uma sociedade abstrata que apela para a Historia, como o sentido de tudo, e o chamado verdadeiro do espírito em que a consciência é uma reação a esta “semente afiada” que é o Verbo dentro de nós, o Mestre que descobrimos aos poucos e, com o passar do tempo, damos o nome de Jesus Cristo. No fundo, e isso ninguém percebeu, a história da humanidade é o nome de Cristo escrito em todos os seus detalhes, desde o mais simples gesto de carinho entre dois amantes, até a destruição completa de uma cidade por causa de uma bomba atômica. O Amor cristão tem sua luz, mas também tem sua condição obscura, como diria Dante, e ambos vivem simultaneamente em luta perpétua.

Aqui fica clara, por exemplo, a estranha trajetória da Igreja Católica e de sua contrapartida mais famosa, a Igreja Protestante. Por mais que os protestantes reclamem, o fato é que o catolicismo, nos dias atuais, é o único reduto onde o homem ocidental pode encontrar uma fagulha de eternidade em sua busca pela unidade do ser. No entanto, a propensão da Igreja Católica de realizar atos mortais que quase destroem o Cristianismo, é tão grande quanto as da Protestante. Dante Alighieri foi o primeiro a ver que sua igreja já estava escolhendo o Mal, não como negação, mas como alternativa, em suas Rime Petrosi:

E eu que sou mais constante do que pedra
e te obedeço ante uma bela dona,
trago escondido o golpe dessa pedra
com a qual me feriste como a pedra
que te houvesse estropiado longo tempo:
– e o coração me atinges, que é de pedra.
Jamais se descobriu alguma pedra
preciosa no esplendor do sol, da luz,
que contivesse tanta força ou luz
que me permita fugir dessa pedra
e que ela não me envolva com seu frio
lá onde a morte há de me deixar frio”
.

(Tradução de Jorge Wanderley, Dante Lírica, Editora Topbooks)

A pedra na qual Dante baseia seu ciclo de quatro canções pode ser uma dama fria – o oposto de Beatriz -, como a fundação em que a alma é erigida rumo ao Eterno, com todas as suas ações e contrações que fazem parte da luta espiritual, e também a pedra da Igreja Católica, baseado no famoso dito de Cristo para São Pedro. O eu-lírico do poema mostra uma profunda atração pela pedra que o persegue e que está dentro de seu coração. Se seguirmos a interpretação alegórica de que a tal Dama Pietra é ninguém menos que a Igreja Católica, então podemos ver que Dante foi o primeiro a ver (e o uso da palavra “ver” tem um significado importantíssimo na obra do autor de “Vita Nuova”) que a corrupção do catolicismo nos séculos XIV e XV foi uma escolha que já estava dentro de sua natureza simbólica, como a alma que seria a aliança do casamento entre Deus e Homem, sempre através de Cristo. É uma idéia polêmica, mas não de toda absurda, já que esta corrupção inerente (não podemos esquecer as três vezes que Pedro nega Cristo) será a causa de uma reação que, na falta de nome melhor, dará origem às seitas milenaristas, nas quais Dante tinha um ponto de contato – pois compartilhava das idéias de Joaquim de Fiore. Estas seitas serão o germe do protestantismo que, se examinado a fundo, não passa de uma reação gnóstica à tradição cristã fundada no catolicismo, em especial na sua variante calvinista. Eric Voegelin explica isso com detalhes em “The New Science of Politics”:

“A partir do dilema entre caos e tradição surgiu o primeiro pedido, isto é, a formulação sistemática de uma nova doutrina em termos de escritura, como foi providenciado por Calvino em seus ‘Institutos’. Um trabalho deste tipo serviria o propósito duplo de guiar para uma leitura correta da Escritura e de uma autêntica formulação da verdade que faria desnecessário o recurso à literatura anterior sobre o assunto. Precisa-se de uma designação deste gene da literatura gnóstica e de um termo técnico; como o estudo do fenômeno gnóstico é muito recente para desenvolver um termo próprio, a palavra árabe “corão” servirá para o presente momento. O trabalho de Calvino, assim, pode ser chamado o primeiro corão gnóstico criado deliberadamente. Um homem que pode escrever tal corão, um homem que pode romper com a tradição intelectual da humanidade porque ele vive na fé de que uma nova verdade e um novo mundo começam com ele, deve estar em um estado peculiar de pneumopatologia. Richard Hooker, que era supremamente consciente da tradição, tinha uma fina sensitividade por este distorcer da mente. Em sua cuidadosa caracterização de Calvino ele abriu com o sóbrio anúncio: “Sua novidade foi no estudo da lei civil”; ele então continuou com alguma malícia: “Conhecimento divino ele reuniu, não por ouvir ou lendo tanto, e sim por educando os outros”; e concluiu com a sentença devastadora: “Pois, apesar de milhares devedores a ele, por tocar este tipo de conhecimento, ainda assim ele era devedor a ninguém exceto Deus, o autor da fonte mais abençoada, o Livro da Vida, e a admirável destreza do chiste’ “.

Esta íntima conexão com Deus, sem a intermediação de uma tradição passada (seja católica ou não), provoca nas idéias protestantes a queda óbvia de ver sentido somente no futuro da História. É o imanentismo em ebulição. Se Joaquim de Fiore e Dante Alighieri acreditavam no DUX que restauraria a Igreja Católica, Martinho Lutero, Calvino e Wesley eram os novos messias, prontos para mudarem o mundo com sua nova verdade. Claro que isso acabaria em mortes – como foi a guerra entre protestantes e católicos que acabou com a França, a Inglaterra e até hoje tem seus efeitos nocivos na Irlanda do Norte. O protestantismo só poderia sobreviver se apoiando no poder do Estado, como foi o que aconteceu na subserviência ao nazismo, e o catolicismo teve de se isolar do mundo implacavelmante para manter sua própria independência sobre as autoridades temporais. Por mais absurdo que possa parecer para muitos estudiosos, a decisão solipisista de Pio XII – desmentida por fatos descobertos recentemente sobre a reação da Igreja sobre o holocausto judeu – foi o passo decisivo para manter a unidade do Cristianismo.

É claro que certas atitudes da Igreja ainda causam polêmica – como a proibição de preservativos e anticoncepcionais, na verdade baseados em princípios morais e metafísicos, além das desculpas esfarrapadas que o papa pede às mortes cruéis da Inquisição e demais guerras religiosas. Mas o Cristianismo depende cada vez mais do catolicismo porque ele não é uma simples instituição composta por homens – é um símbolo, um ponto de contato entre o humano e o divino e, por isso mesmo, com a incrível possibilidade de se refazer. Com o declínio moral do mundo atual e a recusa sistemática dos princípios cristãos, a instituição da Igreja Católica é vista como seu papa João Paulo II: a mente extremamente lúcida, mas o corpo se decompondo a olhos vistos. De novo, a chaga arde no peito. Mas será que os ossos serão quebrados desta vez? A primeira lição que o homem deve ter é não prever o seu futuro porque ele está sempre em aberto, e o que está em aberto depende da nossa escolha. Contudo, não seria arriscado dizer que a Igreja Católica ressurgirá não do seu poder institucional, e sim como o símbolo restaurado. Afinal, a ressureição e a esperança são o que movem o cristão, e a cruz que ele carrega é apenas o caminho para superar o sofrimento do Gólgota – sofrimento que ecoa em todos nós, em maior ou menor grau, cada dia em que o tempo o torna uma perpétua abstração.

(2002)

7 comentários em “A chaga do Cristianismo

  1. “são quase dois mil anos de uma doutrina espiritual que, no fim das contas, triunfou por causa do fracasso de seu fundador”

    Peço desculpas pela caturrice, mas essa proposição me soa de uma ortodoxia no mínimo… duvidosa. De fato, se a lesse noutro lugar que não na Dicta, não hesitaria em concluir que o seu autor não entende lhufas de Cristianismo.

  2. Eu pensava que era católico. Li o texto todo, talvez um pouco rapidamente, e vi a Igreja misturada com heresias condenadas, tudo colocado na conta de um certo “cristianismo”, seja lá o que isso for. Simplesmente não vi o Cristo que apela à minha “consciência” (não é isso o que seria mais importante, na visão do autor?), o qual por sinal encontro nos evangelhos. Não vi o Cristo que conheço(!). Estamos falando da mesma pessoa aqui?
    Mas obrigado por me dar indícios de que Paul Johnson provavelmente é modernista.
    E chamar Santo Agostinho de “egoísta, egocêntrico e o inspirador das inquisições espanholas”.
    Nossa Senhora, valhei-me! Todo homem de estudos é auto-centrado: presta demasiada atenção às suas cognições.
    Atrocidades? Está falando da Inquisição? Das cruzadas? Afora o anacronismo, a noção de atrocidade passa pela sensibilidade, não pela razão. O próprio juízo final é uma sentença de morte eterna irrevogável. Por que não criticam o Senhor por essa tremenda atrocidade prometida? E o poder de polícia atual? E tudo o mais? É tudo muito atroz!
    Quero ver alguém querendo se passar pelo autor com o intuito de matá-lo para ver se ele não chama a polícia! Heresia é isso, amigo.
    Isso sem falar da Ressurreição.

  3. Pingback: Tweets that mention A chaga do Cristianismo | Dicta & Contradicta -- Topsy.com

  4. Poxa, se tinha uma coisa que Wesley não era era um novo messias. Inclusive, ele tinha até idéias eclesiológicas alinhadas com o Catolicismo; e nunca quis fazer uma nova igreja separada da Igreja Anglicana. Podemos questionar o contexto em que ele nasceu, e a teologia anglicana e tudo o mais. Mas ele era, dentro dessas limitações, um homem bom.

    Vejam só esse hino de autoria dele:

    The cup of blessing, bless’d by Thee,
    Let it Thy Blood impart,
    The bread Thy mystic Body be,
    And cheer each languid heart.

    Now, Lord, on us Thy Flesh bestow,
    And let us drink Thy Blood;
    Till all our souls are filled below,
    With all the life of God.

    Chegou a ser acusado de papista inconsciente.

    Quanto à predestinação, ele era anti-calvinista, chegando a dizer que Calvino representava Deus como “worse than the devil”. Era arminiano (o lado bom, sadio: Deus quer que todos se salvem) through and through.

    Enfim, só corrigindo uma pequena injustiça.

    http://anglicanhistory.org/misc/taylor_wesley.html – Wesley e a revival anglo-católica

  5. Bom, já que foi aberta a temporada de qualificações do texto do Paul Johnson, vale observar que a relação de Dante com idéias gioachimitas é um dos (muitos) temas de alta polêmica no circuito de scholars danteanos. Nem todo mundo lê o Florentino na mesma chave, digamos, do Harold Bloom.

    Para quem se interessa, vale recordar

    a) que esse tema só faz sentido no quadro mais amplo em que o Poeta articula autoridade, razão e ordem, como aponta Patrick Boyde (um desses super scholars). É aí que as questões de história, profecia e Igreja ganham sentido, e os inegáveis traços “gioachimitas” na Commmedia podem nele ser interpretados sem recurso necessário à tese de que Dante assine embaixo das proposições do calabrês. Muito “grosso modo”, o fato de tantos intelectuais conteporâneos dialogarem com Nietzsche ou Heidegger não implica ato de fé em Zaratustra, etc. Se Gioachim de Fiore está no “Paraíso”, aliás, é famosamente ao lado de São Boaventura, também ligadíssimo à figura maior de São Francisco (difícil para um leigo do século XXI imaginar o tremendo impacto social e intelectual de São Francisco em seu tempo, que em sentido lato é o de Dante afinal), também ocupado com questões ligadas a ordem e história, mas em registro distinto (uma aproximação de temas da Comédia com o “Itinerário da Mente para Deus” é a propósito bem esclarecedora sob muitos aspectos) ;

    b) que “profecia” na tradição judeu-cristã não é apenas nem necessariamente previsão, como sabemos todos. Dante tanto como qualquer um de nós estava ciente disto; e esse detalhe do DUX no “Inferno” é quase anedoticamente problemático em termos de interpretação.

    Enfim, conversa comprida à beça.

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