A crônica da auto-destruição

(Quem já viu The Social Network, de David Fincher, deve ter reparado na música hipnótica que acompanha as canalhices do Mark Zuckerberg de Jesse Eisenberg. Ficamos surpresos quando lemos nos créditos que quem fez isso foi ninguém menos que Trent Reznor, o líder e o principal integrante da banda Nine Inch Nails, um dos grandes grupos musicais dos anos 90. Depois de ter feito dois álbuns medíocres, Reznor parecia que não retornaria aos bons tempos de The Downward Spiral e The Fragile. Será que agora ele voltará à antiga forma? Enquanto não sabemos a resposta a esta pergunta, que tal rever os álbuns que lhe deram fama e glória?)

I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical naked
Allen Ginsberg, “Howl”

“Eu sou o Senhor Auto-Destruição”, gritava Trent Reznor na abertura de “The Downward Spiral” (1994), um dos mais impressionantes discos dos anos 90. E ele estava falando a verdade. Gritos, sussurros, silêncios alternados com uma bateria brutal e uma sonoridade eletrônica que remetia aos nossos piores pesadelos, davam ao ouvinte a sensação de que o rock podia captar as sutilezas de uma mente e de um espírito mais do que mórbidos. Reznor fez isso como ninguém na década de 90, a mesma década em que Deus virou uma mercadoria à venda e que a humanidade ficou mais próxima da bestialidade.

Escudado por uma banda chamada Nine Inch Nails, Trent Reznor virou uma lenda viva na indústria fonográfica. Perfeccionista, totalmente obcecado com o ritmo certo de uma canção, Reznor é o tipo do sujeito que gasta cinco anos entre um álbum e outro apenas para fazer o que qualquer artista que se preza deveria fazer: do modo correto e justo. O problema é que Reznor levou a sua arte ao um nível no limite do insuportável – em outras palavras: sua obra é de uma insanidade absoluta, uma jornada pelo pesadelo da alma humana, uma crônica da auto-destruição.

Foi em 1989, com o lançamento de “Pretty Hate Machine”, que Trent Reznor apareceu com letras sobre auto-multilação, sexo pervertido, e todo um catálogo de bizarrices que poderíamos chamar de “masoquismo de boutique”. As canções em si pareciam arremedos de uma mistura entre o gótico dos anos 80 e o tecno que estava surgindo com força total no mundo alternativo. Até aí, nada de novo, e a mesmice continuou com o EP “Broken”(1992), uma obra que era certamente uma evolução em relação a “Pretty Hate Machine”, mas faltava algo que desse uma unidade transcendente ao que Reznor queria realmente falar: a falência espiritual e emocional do ser humano.

Ele atingiria o seu intento com “The Downward Spiral” (1994), uma obra-prima aterradora que contava a história de um homem (o próprio Reznor?) na tentativa bem-sucedida de cometer suicídio, sem antes deixar de quebrar com todos os elos que ele tem com este mundo: família, Deus, amores passados e futuros e qualquer espécie de esperança. Mas isto fica apenas na primeira análise: pouco a pouco, o ouvinte vai percebendo a cada faixa que passa, por trás de cada melodia escondida numa muralha de guitarras ensurdecedoras, que “The Downward Spiral” não era, em hipótese nenhuma, uma glorificação do suicídio, mas sim um estudo do arrependimento. Se na canção “Heresy”, Reznor bradava que “Deus está morto e ninguém se importa/ se existir um inferno, te vejo lá”, como fosse o seu lema filosófico, na última faixa, “Hurt” (uma das músicas mais sombrias já feitas), ele suspira baixinho, afirmando que “Se eu pudesse começar de novo, distante de tudo/ eu poderia me manter por mim mesmo/ eu encontraria um caminho”, culminando numa explosão de microfonia que sugere nada mais, nada menos que o inevitável da morte.

Quando foi lançado no ano de 1994, “The Downward Spiral” provocou polêmicas de todas as ordens. Além de seu conteúdo pertubador, Reznor atiçava ainda mais a mídia ao gravar o álbum na mesma casa onde Charles Manson matou Sharon Tate, mulher do cineasta Roman Polanski, em 1968. Para os jovens americanos – filhotes do Império que não conseguem dominar seus impulsos homicidas -, Trent Reznor & Cia representavam a perda de uma geração que tinha como ídolo outro suicida: Kurt Cobain. Entretanto, é claro que Reznor não queria ser como Kurt Cobain. Sua ambição era outra, e os seus meios eram completamente diferentes.

Cinco anos podem ser uma longa espera, principalmente para um artista que tem de passar pela prova de fogo de superar sua obra anterior. Entre 1994 e 1999, muita coisa aconteceu no mundo da música: o aparecimento de Marilyn Manson (um clone de Alice Cooper, produzido por Reznor e que muita gente acredita ser um gênio porque “ele é um jorrrrrrnalisssssta”, segundo suas fãs mais exaltadas), a chegada de Britney Spears e Christina Aguilera (no fundo, duas caipiras – uma americana e a outra latina – que tentam ser sexys, mas não ativam hormônio nenhum) e a consagração de uma banda inglesa chamada Radiohead, que fez dois álbuns estranhos, gelados, notáveis e incompletos: o artificial “OK Computer” (1997) e o monolito “Kid A”(2000).

Enquanto isso, Trent Reznor se trancava em um estúdio em New Orleans para fazer o sucessor de “The Downward Spiral”. Os críticos se perguntavam: o que ele vai aprontar agora? Era quase impossível que Reznor superasse a perversão e as trevas do álbum anterior. Mas claro que estavam enganados. Em setembro de 1999, Reznor lançava “The Fragile”, um disco duplo que contava a história de um relacionamento que não terminava muito bem. De novo, Reznor mexia em seus temas favoritos: obsessão, niilismo e auto-destruição. No entanto, desta vez ele adicionava um novo tema que o tornava um parente muito próximo do poeta francês Charles Baudelaire: a procura desesperada pela transcendência. Esta procura era causada pela decadência do mundo que o rodeava – claramente simbolizada pela palavra “spleen” (tédio) – e pela desilusão da imagem do ser amado. Se em “The Downward Spiral”, Reznor falava sobre uma única pessoa que se auto destruía, agora em “The Fragile”, a história girava em torno de duas pessoas que queriam acabar um com o outro, através da vingança e da falta de sentido para a vida. Mas, como veremos, Reznor faz que as coisas não sejam tão simples assim.

Tudo começa com “Somewhat Damaged”. “So impressed with all you do, Try so hard to be like you, Flew too high and burnt the wing, Lost my faith in everything” (Impressionado com tudo o que você faz, querendo ser muito como você, voei alto demais e queimei as asas, perdi a minha fé em tudo) – imaginem estas sentenças ditas ao som de uma bateria primitiva, uma guitarra que repete três acordes à exaustão, e o ouvinte não tem nada a fazer a não ser aceitar o mesmo convite de William Carlos Williams na introdução de “Howl” de Allen Ginsberg: “Senhoras e senhores, levantem a barra de suas roupas e sejam bem-vindos ao Inferno”. Os acordes vão se tornando cada vez mais complexos, a bateria adquire nuances, e o som é de uma raiva assustadora; afinal, um relacionamento acabou de ser rompido, e tudo está caindo aos pedaços. “Too fucked up to care any more” (Estou fodido demais para me importar), grita Trent Reznor, mas a raiva não vai abatê-lo. De alguma forma, ele vai continuar, e é na segunda faixa, “The Day The World Went Away”, que a busca realmente começa. Será nesta busca – misteriosa, sombria, possivelmente fadada ao fracasso – que “The Fragile” vai encontrar seu eixo dramático, que girará através de opostos que se complementam: amor e ódio, obsessão e realidade, verdade e mentira, vida e morte, afeto e violência, paranóia e paz, sangue e água, vingança e perdão, Deus e o Diabo. Uma muralha de guitarras entremeada com um coro budista infantil dá um ar épico ao álbum, além da primeira verdade encontrada pelo narrador: “There´s a place that stills remain, It eats the fear, It eats the pain, The sweetest price we have to pay, The day the whole world went away” (Ainda existe um lugar que permanece, ele devora o medo, devora a dor, o preço mais doce que temos de pagar, o dia em que o mundo todo despareceu). Que lugar seria esse?, pergunta-se o ouvinte. Será alguma espécie de paraíso – ou então, um inferno muito pior do aquele que já vivemos?

A terceira faixa, “The Frail”, com sua beleza meditativa, indica ao ouvinte que este não será um simples disco de rock. É uma sinfonia industrial, pensada e executada nos mínimos detalhes; temas musicais da primeira faixa começam a se infiltrar no conjunto da terceira faixa e Reznor vai utilizar desse procedimento nas duas horas e meia que duram o álbum como um maníaco. A intenção é clara: ao retratar (musicalmente) o processo de iniciação espiritual de um indíviduo (ainda não sabemos se esta iniciação vai ser uma ascese ou uma queda), Reznor, através das recorrências musicais e das simetrias, quer nos mostrar que a vida se compõe de ciclos que se desenvolvem como círculos concêntricos. Este colunista sabe muito bem que é muita metafísica para um “mero” disco de rock, mas o ouvinte tem de acreditar que “The Fragile” é uma obra fora de qualquer tempo e classificação, e portanto o próprio Reznor já devia saber desse pequeno problema estrutural.

É o que ele prova nas três faixas seguintes. A serenidade melancólica de “The Frail” dá lugar à revolta de “The Wretched”, uma canção assustadora com um piano mais assustador ainda, no qual Reznor confronta-se com o silêncio de Deus e assume claramente que está partindo para uma vingança contra a mulher que o abandonou. “It didn´t turn out the way you wanted to” (Não saiu como você queria), grunhe Reznor de forma sarcástica, e temos a impressão que ele não hesitaria em explodir a moça em mil e um pedaços. Grave erro – na canção seguinte, Reznor nos surpreende com “We´re in This Together Now”, uma fantástica, pesada e desesperada balada de amor que cita sem nenhuma vergonha “Heroes” de David Bowie: “You´re the queen and I´m the king, Nothing else means everything” (Você é a rainha e sou o rei, e nada mais importa), com guitarras em solos alucinados, duas baterias acompanhando um ritmo intrincado, cheio de pausas e quebras que revelam o amor do narrador pelo ser amado. O que era para ser uma nêmesis se revela uma musa, ainda que uma musa perversa, e por isso mesmo frágil. Este é o mote da próxima canção, que tem o nome do álbum, “The Fragile”, que começa de maneira fabulosa: “She shines in a world full of ugliness, She matters where everything is meaningless, Fragile, She doesen´t see her beauty, She tries to getaway, Sometimes where just that nothing seems so easy, I can´t watch her slip away” (Ela brilha em um mundo cheio de destruição, ela é o que importa quando tudo não tem sentido, Frágil, ela não vê a própria beleza, ela tenta escapar, algumas vezes quando tudo parece tão fácil, não posso ver ela escapar), para explodir num refrão único:

“I won’t let you fall apart”. (Não vou deixar você se destruir)

Ah, então perguntará o ouvinte (e o leitor deste ensaio), o Frágil do título é a mulher? Numa primeira vista, tudo aparenta que sim. Mas Reznor joga com as aparências, e numa jogada de mestre, ele mistura paranóia e afeto em uma única estrofe, embalada por uma sequência de notas desafinadas no piano e uma série de ruídos sinistros:

“We´ll find a place to go where we can run and hide,
I´ll keep a wall where we can keep them from the other side,
But they keep waiting and picking, and picking, and picking”.

(Nós encontraremos um lugar onde possamos correr e nos esconder,
Vou construir um muro que nos separará do outro lado,
Mas eles ficam esperando e pegando, pegando, e pegando)

A fuga da realidade se confunde com a busca por um lugar mais puro e por uma espiritualidade mais elevada, e a confusão chega ao máximo quando no final Reznor grita: “I was like you” (Eu era como você). Chegamos à primeira reviravolta da história: o narrador se projeta na mulher amada de tal forma que tanto ele como ela são frágeis. Ao assumir a fragilidade humana da qual faz parte, o narrador parte para um outro estágio da sua busca, um estágio em que o que era uma vingança vira uma peregrinação na qual não se pode mais voltar para trás.

Daí em diante Reznor não desperdiça seu arsenal de surpresas. São trevas alimentando-se de trevas. A instrumental “Just Like You Imagined” começa com ruídos que parecem do fundo do mar (isto terá um sentido dentro em breve); a bateria continua violenta, mas uma camada de guitarras que aumentam sem parar vão encobrindo os gritos de Reznor (sim, leitor, ele grita e sussurra tanto neste álbum que não seria um exagero chamá-lo de Ingmar Bergman do rock), até uma explosão que nos faz acordar de um certo torpor. Este torpor é o do próprio narrador. Ele acorda de um sonho estranho e percebe que o sonho continua na realidade e não há como fugir. Já estamos na faixa “Even Deeper”, uma canção de batidas eletrônicas, notas indianas, e com aquele ruído do fundo do mar entrando no inconsciente do ouvinte. A letra fala sobre a impossibilidade de sentir algo importante, de querer ter aquilo que não há como agarrar. Mas o sujeito reconhece que, de qualquer maneira, subir o poço não é a sua melhor escolha naquele momento. Logo, ele vai descer até o fundo – e é o que vai fazer no final do primeiro CD. Os toques orientais de “Even Deeper” se dissolvem em uma marcha mecânica, e as guitarras fazem as vezes de trompas e clarinetes, além dos urros masoquistas que escutamos nos auto-falantes. É o tema de “Pilgrimage” e aqui Reznor explicita de vez o sentido de iniciação espiritual do narrador. A peregrinação em busca dessa mulher (ou o que ela representa) será dura, cruel, e, se puder, sem nenhuma gota de humanidade.

Mas nem sempre as coisas saem como queremos. “Pilgrimage” termina abruptamente para dar lugar à “No You Don´t” e outra vez Reznor deixa a situação um pouco mais clara. A mulher amada não é uma simples sacana ou uma simples coitada que precisa ser salva; ela é uma louca, maluca de hospício, digna de andar com camisa de força. “Baby´s got a problem, Tries so hard to hide, You keep running in circles, because everything is dead on the other side” (A querida tem um problema, tenta escondê-lo a qualquer custo, você fica correndo em círculos, porque tudo está morto no outro lado) – este outro lado é a alma da mulher, totalmente corrompida pelo desprezo ao mundo e o narcismo de sua personalidade (“You think you will have everything, but no you don´t” – Você pensa que tem tudo, mas não, você não tem). Reznor não hesita na fúria, e o barulho dessa canção é proposital para o que vem a seguir: simplesmente uma das coisas mais bonitas que a Humanidade já produziu. Estamos falando de “La Mer”, e é aqui que tudo começa a fazer sentido. O narrador está sentado no pico de um morro. Ele vê o mar e seu horizonte, o símbolo máximo do Absoluto e uma paisagem que estimula à meditação. O que fazer depois que tudo parece estar perdido? Um piano delicado vai se intensificando com o violão e o baixo, além de uma voz feminina, em francês, suspirando que “o mar me abraçou agora e agora nada irá me impedir”. A voz seria a mulher? Talvez sim, talvez não. Seria uma lembrança do narrador? Não. Em “La Mer” ( inspirado na composição de Debussy) o tema das personalidades volta: o narrador é a mulher e vice-versa. É como disse Fernando Pessoa: “Torna-se o amador a coisa amada”. Mesmo em sua perversidade, a mulher é um objeto de redenção para o narrador que quer amá-la e destruí-la ao mesmo tempo. Então, enquanto o piano vai dedilhando sua melodia, e o baixo e a bateria acompanham num ritmo dançante (parecido com as ondas do mar), entra uma guitarra de uma nota só, altamente distorcida. Quando se nota o efeito que essa distorção faz na compreensão do álbum, percebe-se que era aquela distorção que o Sonic Youth procura há anos e ainda não encontrou. O impacto é devastador; é como se o mar inteiro tivesse engolido o ouvinte, a baleia de Jonas não deixando ninguém escapar nem por um segundo.

A descida toma um ritmo vertiginoso com “The Great Below”, a última faixa do primeiro CD. Os mesmos ruídos que acompanhavam o ouvinte desde “Just Like You Imagined” tomam forma defintiva para dar espaço a Reznor e deixam-no cantar uma das estrofes mais amargas já feitas:

“Staring at the sea,
Will she come?
Is there a hope for me,
After all i´ve said and done,
Anything at any price,
All of this for you,
All the spoils of a wasted life,
All of this for you”.

(Olhando para o mar,
será que ela chegará?
Há alguma esperança para mim,
depois de tudo o que eu disse e fiz,
Tudo por qualquer preço,
tudo isso por você,
Todos os espólios de uma vida perdida,
tudo isso por você)

“All the spoils of a wasted life” (Todos os espólios de uma vida perdida) é algo terrível para dedicar ao ser amado. Sua herança e seu carinho são nada mais, nada menos que perda e remorso. Construído meticulosamente num crescendo, “The Great Below” leva Reznor num desepero tão grande que parece que o ouvinte vai explodir junto com ele ao escutar que “o meu destino está ficando claro, o tempo está correndo, as correntes tem o seu sentido, e eu desci da Graça, para os braços da tormenta, e tomarei o meu lugar na grande imensidão”. Seria o primeiro indício de suicídio? Não, pois, como veremos, aquela mulher que ele quer destruir é também a razão de sua existência. A prova? O final de “The Great Below” quando ele fala: “I can still feel you even so far away” (Eu ainda posso sentir você, mesmo estando tão longe). Para o narrador, é uma obsessão que dá sentido à sua vida, e não a realidade. Ao sentir a mulher na distância ele não quer falar que é delicado e sensível. Sua “sensibilidade” tem um nome: destruição. E agora que chegou à conclusão que ele foi renegado pela Graça divina, tudo que lhe resta é pôr o seu plano em prática e agir de acordo com sua maldição.

Movido pelo ódio e por um estranho afeto, o narrador decide que vai até o fim na sua experiência, mesmo que seja rastejando. Assim começa a segunda parte do CD, com “The Way Out is Through”. Se a primeira parte é a mais longa, com 56 minutos de duração, a segunda é curta, com 48 minutos, e isto também tem um sentido: o CD 1 é muito mais reflexivo, no qual o narrador tenta compreender o que aconteceu com ele; no CD 2 ele parte para a ação, e por isso a sua velocidade. Em “The Way Out is Through”, Reznor começa devagarzinho, canta bem baixo (é impossível escutá-lo a não ser com headphones) para deixar a distorção da guitarra dominar a textura da canção (a mesma distorção de “La Mer”, só que muito mais elaborada, se isto era possível) até a explosão de barulho que acaba com qualquer auto-falante. “We feel so small, but still we crawl” (Nós nos sentimos tão pequenos, mas nós ainda nos arrastamos), berra o narrador. O silêncio volta e aos poucos um violino aparece, misturando notas e melodias de “The Frail” e de “La Mer”, mas desta vez numa base mais rítmica. É “Into The Void” com Reznor brindando o ouvinte com uma frase bem ambígua – “Trying to save myself but myself keeps slipping away” (Tentando salvar a mim mesmo mas fico me escapando, numa tradução bem capenga). A salvação da alma está cada vez mais longe para o narrador, mas ele ainda acredita nela – mesmo que ninguém possa ajudá-lo, assunto abordado em “Where Is Everybody”, canção em que Reznor tenta fazer uma paródia de Beck, terminando por entrar num humor negro que apenas poucos gostam.

“Where Is Everybody” é sobre abandono emocional, o primeiro passo rumo à loucura, e a loucura, quando se infiltra no Espírito, fica marcada como um sinal forjado no fogo. A assustadora instrumental “The Mark Has Been Made” demonstra o poder de Reznor em captar, através da música, a alma torturada de uma pessoa. Uma bateria forte, um violão e uma guitarra que dialogam-se com notas quebradas e acordes desafinados de propósito, fazem o ouvinte viajar pelos meandros de uma mente que já está condenada. A pertubação aumenta ainda mais no final da música, em que, por cerca de 12 segundos, escutamos uma voz que vem como se fosse do fundo do mar e que diz num tom agoniante: “I´m getting closer, I´m getting closer… all the time” (Eu estou chegando perto, eu estou chegando perto… o tempo todo). A procura desesperada pela transcendência se resume nesta sentença. O narrador quer ultrapassar a crueza do mundo em que vive, mas sempre está na fronteira. Essa condição de renegado, de “homem preso ao chão por causa das asas de chumbo” (para citar Baudelaire) é o que leva ao desespero consigo mesmo e com os outros. Por isso, em seguida vem a violência de “Please” e “Starfuckers, Inc.”.

“Please” é o relato cru dos dois amantes se reencontrando e tendo a trepada mais infeliz de todos os tempos.”Watch the white turn to red” (Veja o branco se tornar vermelho) – esta é uma imagem que não precisa de maiores comentários – , fala um Reznor resmungão, que afirma que a amada “nunca vai ser suficiente para me preencher”. “Eu apago o medo”, mas o medo continua imperando nesta relação que tomou ares sadísticos (no sentido do Marquês de Sade, ou seja, o sexo se tornando uma arma de manipulação), um medo que vai ser o início da violência em “Starfuckers, Inc.”. “I play a new game, It´s called insincerity” (Eu jogo um novo jogo, ele se chama insinceridade), anuncia o narrador que agora faz parte do “clube dos mais bonitos e dos escolhidos”, as “estrelas fodedoras, incorporações” do título. O sarcasmo e a ironia nesta canção são evidentes, e apesar de se integrar perfeitamente à concepção do álbum, Reznor também satiriza o seu discípulo bastardo, o tal do jornalista chamado Marilyn Manson, homenageando-o com uma citação de Carly Simon (“You´re so vain, did you think this song is about you?”,Você é tão vaidoso, achava que essa canção era sobre você?) e terminando a música com um sampler muito mal feito de um show do Kiss, sujando de propósito a bateria com os urros de uma platéia que parece parabenizar o que o narrador fez com a mulher (a saber, ou pelo menos é o que Reznor dá a entender com a frase “And when I suck you off not a drop I´ll go to waste” [E quando eu te chupo não vou perder sequer um pingo], ele pratica um sexo oral um tanto quanto forçado).

Então vem a grande reviravolta da história, marcada pela instrumental “Complication”. O narrador finalmente conseguira se vingar da futilidade e maldade da mulher. Missão cumprida? Nem um pouco. Reznor dá a pirueta definitiva ao mostrar que, apesar da vingança executada, o narrador não consegue esquecer a moça. A obsessão atingiu um ponto de não-retorno. Não há como fugir – ele está completamente encurralado. O próprio afirma isso quando canta que “There´s always a way to forget, once you know the way to find out” (Há sempre uma maneira de esquecer, desde que você saiba o caminho para esquecer) na fantástica “I´m looking forward to join´you, finally”, em que uma bateria tirada diretamente do “Bone Machine” de Tom Waits se contrapõe ao um acompanhamento minimalista. Seu único esquecimento é se desfazer em pedaços, “tentar arrumar tudo, e destruir depois só pela diversão de acabar com tudo”. “There´s no place I can go, There´s no place I can hide” (Não há um lugar que eu possa ir, não há um lugar que eu possa me esconder), se desespera Reznor ao ver que sua procura terminou muito mal na canção “The Big Comedown”. O fim chega a ser niilismo puro, como se vê em “Underneath It All”:

“All I do I can still feel you,
Kill my brain yet you still remained
Crucified after all I tried you are still inside
All I do I can still feel you
You remained
I´m stained”
(Tudo o que eu faço ainda posso te sentir,
Mato minha mente e ainda assim você permanece,
Crucificado depois de tudo você continua aqui dentro,
Tudo o que eu faço ainda posso te sentir
Você permanece
Eu fico marcado)

A marca já foi feita, a mancha se impregnou na alma. Ainda assim, o próprio Reznor dá o seu sentido próximo a essa experiência com o epílogo “Ripe (Decay)”. Uma longa música instrumental que dá uma sensação de súbita paz e estranha serenidade para uma história tão atormentada. Seria o fim definitivo da procura? Teria um fim? E se tivesse fim, esta procura teria sido uma iniciação satânica, já que nada alcança uma síntese, uma perfeita e harmônica unidade das coisas? Ninguém aqui é doutor em teologia ou padre para decidir isto, muito menos Trent Reznor. A única coisa que sabemos é que este é um caminho que não vai para a frente nem para trás, ou para cima ou para baixo. É uma espiral, uma complicada espiral que adquire vários sentidos conforme as várias vezes que é escutada. Sua complicação se dá porque o disco termina abruptamente, como um choque. Seus últimos acordes são o do início de “Somewhat Damaged”, a primeira canção do CD 1, tocados de trás para a frente. A espiral volta para o seu ponto de partida, mas a partida é também o fim (o que nos faz lembrar o T.S. Eliot dos “Quatro Quartetos”: “In my end is my beginning, in my beginning is my end”[ O meu fim está no meu começo, o meu começo está no meu fim]). O que importa é que o narrador e o ouvinte passaram por essa aventura juntos, mesmo que ela terminasse (?) com decadência. A redenção não é negada, ela está lá, no céu que é a tampa da marmita onde vive a humanidade, mas são poucos que podem alcançá-la. O importante é a procura em si, não o término dela. A loucura, a obsessão e a maldade fazem parte da natureza humana, e temos que aceitá-la, justamente para evitá-las. Ao fazer isso, aceitaremos a fragilidade de nossa existência e, por incrível que pareça, ficaremos mais fortes, aptos para sairmos da imensidão do inferno em que vivemos.

(2002)

9 comentários em “A crônica da auto-destruição

  1. Dezenas de sites especializados em música pop e a melhor resenha sobre os melhores álbuns de Trent Reznor fui encontrar aqui, no site de uma revista cultural alinhada ao pensamento conservador.
    Simplesmente imprevisível e impressionante!

  2. André,

    Obrigado pelo esclarecimento.
    Somente para adicionar mais informações às suas (não que tenham sido incompletas): existe um compositor erudito estoniano chamado Arvo Pärt que é um mestre na arte de “música hipnótica”. Qualquer um que ouvir sua composição “Spiegel im Spiegel” e não se emocionar é porque tem uma pedra de gelo no lugar do coração.

  3. Também não entendo essas homenagens que, vez por outra, a Dicta presta à cultura pop. Mas paciência: talvez eu é que seja demasiado “elitista”.

  4. Pingback: Tweets that mention A crônica da auto-destruição | Dicta & Contradicta -- Topsy.com

  5. Não esquenta, Henrique.

    Nem todo mundo aqui passou sua adolescência lendo G.K. Chesterton. Alguns cometeram o sacrilégio de ouvir alguma música pop, como nosso colega Martim.
    E, por falar em música pop, tenho uma pergunta ao Sr. Martim: porquê excluiu o último comentário? Sobre os discos do Radiohead?
    É óbvio que o Sr. não vai publicar meu comentário, mas ficaria muito grato se dedicasse um minuto do seu tempo me repondendo por e-mail.

    Grato

    Ricardo,
    o plebeu que tem a audácia de comentar na D&C.

  6. Ricardo:
    O que deve ter acontecido com o seu comentário é que ele foi apagado com outros 150 spans que invadiram o nosso painel de administração. Portanto, se puder enviar novamente, agradecemos e pedimos desculpas pela falha. E outra coisa: peloamordeDeus, toda vez que vc não tiver um comentário publicado, não pense que há uma grande conspiração contra suas singelas opiniões. Pode ter sido apenas um erro.
    Abraços
    Martim

  7. Repetindo o comentário sobre os disco do Radiohead:
    Como assim, incompleto? O que faltou em OK Computer? E como não seria ele artificial, se é um Tratado sobre a virada do milênio, época em que airbags salvam vidas, o monstro do armário ataca paranóicos cidadãos “de bem”, ovnis povoam o imaginário popular, etc. O que resume melhor esta época (talvez a nossa também)
    do que fitter, happier?
    De resto, Kid A é bem mais pop do que oarece.

  8. Martim,

    Obrigado pela atenção e explicação. Eu realmente tinha uma opinião errada sobre o modo como os comentários eram publicados aqui. Foi mal.

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