por Eduardo Wolf
(originalmente publicado em 17.01.2012)
Quais são os ingredientes para um debate público de qualidade no Brasil? A reedição das obras de José Guilherme Merquior pela É Realizações é uma boa notícia para quem quer dar uma resposta honesta à questão. Reconhecido por seu trabalho como crítico literário, leitor incomparável de poesia, Merquior desempenhou na vida da inteligência nacional ainda o papel do crítico cultural em sentido mais amplo, essa figura comum nas tradições europeia e americana, como um Walter Benjamin ou um George Steiner. A amplitude dos temas abordados pelo autor é prova mais que suficiente disso, e o leitor poderá conferir por conta própria e com grande prazer à medida que vá lendo seus trabalhos, felizmente de volta ao mercado, agora em edições preparadas pelo professor João Cézar de Castro Rocha, da Uerj.
Merquior acreditava na relevância do artigo de jornal ou revista, no texto de intervenção pontual, dito “atualidade” em outros tempos; sobre o tema, citava, aprovando, Ortega y Gasset, que via nesses textos “uma forma indispensável do espírito”. Uma lição simples, mas cujos resultados são, ao menos potencialmente, tremendos. Pensada nesses termos, a intervenção pública nos assuntos da hora deixa de ser banal, personalista e inócua, e assume os contornos civilizatórios que por tanto tempo teve em outras terras – na Inglaterra e na França, sobretudo. Se não me equivoco, apenas o intelectual que entra na arena pública tendo aprendido essa lição faz seu trabalho com o senso de responsabilidade moral que a coisa exige.
Com livros como As Ideias e as Formas (1981) voltando a circular mais amplamente, talvez seja possível reconhecer algumas de nossas fraquezas em matéria de vida intelectual, quem sabe mesmo dar-lhes o devido combate. Não me refiro ao eterno “circuito do elogio mútuo”, que impede o atrito autêntico, a crítica em seu sentido mais forte; tampouco à superficialidade e ao baixo-nível que parecem ter triunfado com a mesma força nas bancas de jornais como nas de doutoramento país afora. Refiro-me a traços menos óbvios, mas não por isso menos atuantes em nossos esquemas mentais, e que Merquior, no artigo que dá nome ao livro de 1981 citado acima, mapeou muito bem.
Um desses elementos o autor chamou de “purismo misológico”, uma atitude “intransigentemente hostil à racionalidade da ideia”. Foi em seu Formalismo e Tradição Moderna (1974) que Merquior tentou rastrear essa degenerescência da poética romântica – para usar seus próprios termos – que resultou em nada menos que uma “fúria misológica”, uma variedade muito peculiar de irracionalismo. Mais que antiintelectualismo, trata-se de um ódio ao conceito: Imagem contra conceito, sintetiza o autor. Um prêmio aos que pensaram em Nietzsche, para quem as ideias são obras de arte… Ao constatar a usurpação da forma pela ideia e escrever-lhe a genealogia, ao atacar a estetização do pensamento, enfim, Merquior parece que falava para nosso tempo:
O irracionalismo ambiente não reclama outra coisa: “insights” em lugar de análises, intuições indemonstráveis, conceitos altamente “artísticos”, em suma: a festa da reflexão irresponsável.
Essa ojeriza ao argumento, à análise (por definição algo lógico e racional), enfim, essa “fúria misológica” de que fala Merquior contaminou as mais elementares condições de possibilidade para um debate esclarecido sobre o que quer que seja, com um agravante em nosso tempo: no lugar de um homem de gênio como Nietzsche, enfrentamos hoje pessoas que sequer são capazes de compreender o que seja um argumento ou uma análise. No atual estado do problema, a investigação de Merquior parece ir longe demais, mas tal impressão se dá somente porque o irracionalismo já triunfou, virando moeda corrente nas redes sociais como nas aulas de pós-graduação das melhores universidades, nas palavras inflamadas dos porta-vozes do multiculturalismo como na prática moralizante dos desiludidos à esquerda e à direita no espectro político.
E esta lição, sim, é antiga: sem razão, não há responsabilidade; e “debate público” sem ambas, razão e responsabilidade, é a festa do pensamento irresponsável – com cada vez menos pensamento, aliás.