A lágrima feroz

õîááèò èëè òóäà è îáðàòíî ñìîòðåòü îíëàéí áåñïëàòíî

But Love is not a victory march,

It´s a cold and it´s a broken

Hallelujah

Leonard Cohen

A dor mais insuportável é a do amor não-correspondido. Existem, obviamente, outras dores, como a da doença incurável, a da morte surpreendente, a da perda de um ente querido, a da despedida sem razão – mas elas passam conforme o ritmo do tempo, conforme as lembranças se transformam em lições para as cicatrizes do futuro. Já a dor do amor não-correspondido tem seu impasse peculiar. O tempo não cura suas chagas; a memória não a afaga com a maturidade; ela ecoa pelas épocas e através dos séculos porque, simplesmente, nunca foi consumada em sua forma completa. É uma espécie de maldição que espera um milagre para sua realização definitiva e, enquanto isso, somente será lembrado como um lamento ou, no seu extremo, uma paixão.

Este foi o caso de Jesus de Nazaré, profeta judeu, filho de carpinteiro, amigo de doze pescadores rudes, condenado e crucificado como criminoso, numa morte violenta e estúpida que, sabe-se lá porque, não resistiu de forma alguma. Dois mil e onze anos depois desses fatos, o nome de Jesus ainda é invocado por várias pessoas, em um daqueles enigmas que ninguém tem a coragem de compreender. Ele abençoa, irrita, incomoda, fascina, transforma a vida delas de uma maneira que nenhum outro homem fez. Quando alguém arrisca fazer uma definição precisa sobre quem foi este sujeito, a única coisa que alcança é uma pálida silhueta, uma visão que, se não tomar cuidado, pode envolvê-lo nas sombras se fitar demasiadamente a luz que O envolve.

Estas reflexões me vêm à mente neste momento de Natal e me fazem voltar também à Paixão. O nascimento e a morte de Cristo sempre foram vistos como coisas separadas e isso sempre me pareceu um equívoco. Afinal, como diria São João de Ávila, a madeira da cruz já esta na madeira da manjedoura.

Esta separação também explica um pouco a vala aberta entre o público e a intelligentzia em relação ao mais polêmico filme sobre esse tal de Jesus de Nazaré e que revi recentemente: “The Passion Of The Christ” (traduzido nesta nação-maior do ecumenismo macumbeiro como “A Paixão de Cristo”, quando seu verdadeiro título é “A Paixão do Cristo”), dirigido por Mel Gibson, galã de cinema que teve a ousadia de dizer que era um católico e tradicionalista. A reação que esta película ainda provoca nas pessoas de sensibilidade progressista prova que o mundo dos negócios pecuniários e dos negócios do espírito estão fechados para balanço. Em uma blitzkrieg que, aparentemente, tem âmbito apenas cultural, Gibson ganhou de nocaute. Em primeiro lugar, ao se declarar como um católico tradicionalista, despertou a curiosidade do público. Se para muitos o fato de existirem católicos é um absurdo, imagine alguém ser um católico tradicionalista. Como, no mundo moderno, tudo relacionado com qualquer espécie de tradição é uma ofensa, um verdadeiro escândalo, quiçá sinônimo de retrógado, a nossa querida mídia gnóstica se apressou em classificar o projeto de Gibson, então em fase inicial de roteirização, como “anti-semita”. Foi mais uma prova de que ela é também burra: criando uma polêmica artificial para afastar o público do fato de que se tratava de um filme de inegável qualidade artística, os jornalistas secularistas foram os maiores agentes publicitários que Mel Gibson poderia ter. O resultado foram os U$$ 300 milhões de bilheteria que o filme ganhou em menos de um mês de exibição e a descoberta de que há um iceberg de descontentamento que a mídia não percebeu porque, obviamente, vive fechada em um castelo de areia, olhando para o seu próprio umbigo.

Mas o fosso entre os mandarins da imprensa e o público que sai transtornado depois de ver um filme tão excruciante aumenta ainda mais se percebermos que a questão não é meramente cultural ou, se quisermos colaborar com os exegetas da “indústria cultural”, fiduciária. E nem tampouco trata-se de uma questão de fé. Trata-se, sem dúvida, de uma questão de sensibilidade – para não dizer que é também de discernimento. A propaganda gnóstica já teve melhores momentos na tática de difamar os seus verdadeiros inimigos, esses loucos que fazem parte da seita religiosa chamada Cristianismo. Contudo, dessa vez, ela perdeu a noção dos limites. Quando o bom nome dos judeus é usado e abusado pelas mesmas pessoas que atacam Israel e defendem o Hamas, para difamar um filme que, afinal, medita justamente sobre a tolerância com o semelhante, afirmando-o que é “medieval”, “sádico”, “pornográfico” e – pérola das pérolas – “excessivamente religioso”, é sinal que estamos prontos não só para um genocídio, mas para um próximo Holocausto.

Não foi por acaso que, duas semanas após a estréia de “The Passion Of The Christ” nos EUA, a Europa sentiu o horror do Mal Lógico no dia 11 de março (exatos novecentos e onze dias após o infame 11 de setembro de 2001 em Nova York), quando um comboio de trens explodiu na estação de Atocha, em Madrid, capital da Espanha, tirando a vida de 196 pessoas e ferindo outras duas mil. Finalmente, tudo ficou claro: as coisas deste mundo maluco deslizam para todas as direções e não há uma âncora segura. O Mal Lógico embrutece a sensibilidade humana e as definições que somente as palavras expressam são retorcidas em conceitos obscuros e nublados. Lutar contra o terrorismo significa seguir uma lógica de avestruz e culpar o imperialismo americano ou então Mel Gibson, o católico tradicionalista que ficou maluco e fez um filme sobre um outro maluco, falado em latim e aramaico. Nunca somos os verdadeiros culpados. Sempre são “os outros”, os porcos capitalistas que se aproveitam da bondade humana. O terror é apenas um detalhe, uma conseqüência econômica do mundo globalizado. O resto não é apenas silêncio – é desespero acumulado em gritos de lavagem cerebral.

Mas sempre quando o arrependimento se transforma em farsa, o homem mostra as migalhas de dignidade que lhe restam. Ele procura em seu canto mais profundo, naquela caverna do coração onde somente um pouco de esperança pode brotar nos momentos mais terríveis, a resposta certa de que existe algo além dessa carnificina. Porque ninguém sobrevive neste mundo se acreditar apenas em si mesmo ou no seu próximo, o mesmo homem que criou os mais absurdos sistemas filosóficos que justificaram tanto o horror da Revolução Francesa como as cinzas de Auschwitz. Nunca se deve acreditar no ser humano – deve-se tentar compreendê-lo, sem nenhuma espécie de julgamento, aceitando-o como é, com suas muitas falhas e poucas virtudes, para que não se caia na mesma armadilha de um certo pretor romano de Jerusalém que, num momento pusilânime, perguntou a alguém: “Quid est veritas?” .

Quem faz uma pergunta dessas já perdeu toda a esperança e, obviamente, é impotente para agir em relação ao outro pois não pode compreendê-lo. E se não pode fazer isso, também não quer. Mas talvez o raciocínio deva ir mais longe: se não pode compreender, se não quer compreender, é provável que ele é incapaz de compreender o outro que está à sua frente. Entretanto, não devemos julgá-lo; afinal de contas, fazemos o mesmo todos os dias. Construímos muralhas sob muralhas ao nosso redor; não conseguimos sequer encarar os outros nos ônibus, no metrô, nas ruas; caminhamos como se estivéssemos numa névoa, num mundo de sonho que faz sentido apenas em nossas cabeças minúsculas. Não olhamos com atenção para o que está próximo dos olhos, da pele, da boca. Uma outra pessoa que se aproxima com um gesto de socorro ou ajuda transforma-se nas dobras da nossa mente em um mero conceito, pronto para ser modelado numa argila artificial. E se fazemos isso com alguém que está a seis centímetros de distância, imagine com nós mesmos. Somos incapazes de nos ver no espelho da alma, naquele território da consciência em que a única honestidade possível é a confirmação da nossa frágil podridão.

O fato é que, todos os dias, ajudamos a prolongar a dor do amor não-correspondido – e Mel Gibson, com seu filme insano sobre um louco que não hesitou em abraçar a sua cruz, joga isso na nossa cara. Realmente, ver “The Passion Of The Christ” não é uma experiência fácil. Sim, ele é violento; sim, ele culpa os judeus pela morte de Jesus de Nazaré, mas, ao mesmo tempo, culpa os romanos pelo sadismo e pela indolência, culpa os apóstolos Judas e Pedro pela traição e pela covardia, culpa até mesmo a pobre Maria Madalena pela impotência de não poder ajudar o homem que a salvou do linchamento. Ninguém escapa da culpa, exceto o próprio Jesus, que esmaga a serpente da tentação no Jardim das Oliveiras, e sua mãe, a Virgem Maria, que, mesmo com seus olhos de resignação, não deixa de se perguntar quando seu filho querido usará de seus poderes para escapar de situação tão humilhante. “The Passion” incomoda porque a culpa, esta palavrinha irritante que, volta-e-meia, perdeu o seu sentido na mente dos inteliquituais, se estende a toda humanidade. Todos nós estamos com uma trave no olho – até mesmo Mel Gibson, que não hesita em filmar a própria mão pregando o Cristo na cruz.

Entretanto, o filme não é apenas um tratado teológico moralista. Se fosse isso, certamente não estaria causando a celeuma do momento. Além de ser uma profunda meditação religiosa sobre o Maior Assassinato de Todos Os Tempos, “The Passion” é também um filme de impecável carpintaria cinematográfica. Para quem dirigiu aquele filmeco de Sessão da Tarde chamado “Coração Valente”, Mel Gibson prova que teve o estalo de Vieira. Logo na primeira seqüência, a de Jesus rezando e suando sangue no Jardim das Oliveiras, enquanto um demônio andrógino o tenta com o mais sofista dos raciocínios, o ritmo é tenso, implacável, como se garras de gaviões prendessem o espectador na cadeira. A direção está em seu completo domínio de encenação, de câmeras e montagem. Não é um mero filme bíblico, repleto de preachy talk. É um verdadeiro thriller, um épico de batalhas em que o personagem principal vive e sofre mais do que qualquer Frodo Bolseiro, mas vence igual ao Super-Homem. Gibson, com a ajuda do diretor de fotografia Caleb Deschanel, filma os acontecimentos como se fossem quadros de uma fantasmagoria, de uma alucinação surpreendentemente real, em que o que importa não é um relato naturalista da Paixão, mas sim as ressonâncias simbólicas (e vários scholars reconheceram que Gibson usou com muita perícia alguns detalhes referentes aos fatos da Paixão – entre eles, ninguém menos que René Girard). O choque de opostos, de delicadeza e brutalidade, de desolação e fé, de luz e de sombras, é tão atroz que atordoa o espectador. A violência emocional da película é aliviada com fragmentos de flashbacks, como a de Jesus brincando com a Virgem ou a do Sermão da Montanha, mas Gibson usa a montagem alternada para iludir os nossos sentidos e jogá-los novamente no ciclone de tortura. Pela primeira vez na história do cinema temos um filme sobre Jesus em que ele não é o arauto da paz e amor dos hippies de Nicholas Ray, o proto Che Guevara de Pasolini ou o Cristo neurótico de Scorsese, mas sim um Jesus que mostra a sua autoridade com um único olhar, mesmo humilhado e estraçalhado, sem julgar ninguém porque, afinal, Ele compreendia o que os outros faziam.

Esta compreensão nunca poderia ser entendida com meras palavras; ela somente foi entendida através desse ato que foi a Paixão. E, no fim, todo o som e a fúria que Mel Gibson usou para contar essa história significa alguma coisa, independente das acusações imbecis criadas pela patrulha ideológica. A sua visão da morte de Cristo é um aviso da nossa incapacidade de compreender o Outro, de querer entendê-lo numa espécie de contemplação amorosa, mesmo (e, no caso, principalmente) se este Outro for ninguém menos que o próprio Deus. Em outras palavras: ainda não compreendemos a verdadeira mensagem do Cristianismo. Depois de dois mil e quatro anos, o ser humano ainda retalha a si mesmo, destrói sem piedade a vida do seu semelhante, justifica o homicídio pela causa racional mais absurda. Mas – e aí está a pergunta decisiva – será que o Cristo sofreu aqui em vão? A resposta é um absoluto “não”, mas é uma negativa que precisa ser desenterrada da nossa memória. Se a polêmica em torno de “The Passion” gerou tal comoção, isso se deve porque Mel Gibson fez um filme urgente para tempos urgentes. A verdadeira instituição da humanidade nunca foi o Cristianismo e sim o Anti-Cristianismo. E tudo isso por uma razão muito simples: o Cristianismo choca até mesmo a pessoa mais sensata. Sua essência é a incerteza da condição humana, elevada ao cubo por se apoiar em outra incerteza, a da fé, aquele “firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se vêem”, na famosa definição de São Paulo. Não há razão que resista ao fato de que Deus encarnou em um carpinteiro, nascido no meio das fezes e da palha, criado à margem de um mundo onde dominava a histeria messiânica, mestre de doze broncos que não entendiam uma única palavra que dizia e assassinado ao lado de dois criminosos ordinários. São acontecimentos que, para afetarem a História da humanidade como uma cicatriz profunda, não podem ser vistos como meros fatos. Deve haver algo mais. É esta palavrinha – justamente o mais, o sinal de soma que, por coincidência ou não, nos remete à Cruz onde Ele foi crucificado – que faz os iluministas crentes no fim da História, na soberania do Estado Soberano, no chá do Santo Daime e no poder do terror, tremerem e se aniquilarem. Porque a incerteza que ronda o Cristianismo é apenas o estopim de uma batalha que mal começou e que cumpre o que o próprio Cristo afirmou: “Não vim trazer a paz, mas a divisão”. Gibson fez um filme que incomoda qualquer um que tenha problemas pessoas com o Cristianismo e, no fim, problemas com o seu próprio caminho na vida. Sua Paixão é o retrato do confronto de dois mistérios: o da iniquidade e o da Encarnação – e nenhum intelectual dos nossos tempos tem estofo para compreendê-los pois estão apenas interessados em julgá-los.

Como tudo que envolva a história de Jesus, “The Passion” é uma experiência exigente. A tentativa patética de classificar o mistério em gavetinhas como “violento”, “anti-semita” e “ultrapassado” serve apenas para confirmar a incapacidade moral de nossos menestréis. O comportamento deles não deixa nada a dever ao mau ladrão que, num supremo momento de humor negro, tem seu olho arrancado por um corvo em plena crucifixão. Armados na arrogância, escondem um monstruoso desespero. Enquanto a mensagem do Filho do Homem está debaixo de seus narizes, preferem entregá-Lo aos leões com o beijo da soberba. E assim caminha a humanidade, num ritmo trôpego, sem saber ao certo se o que perdura é o amor débil, amparado numa suposta certeza, ou o amor que se fortalece a cada chibatada e a cada prego dados. Em um momento de profunda tristeza, Gibson filma uma lágrima caindo do céu e provocando um terremoto aterrorizante. “Est veritas, est veritas!”, grita um soldado no filme, “Filis Deus est”. Seria o Deus Pai revelando aos pobres coitados naquela amarga colina do Gólgota que mataram seu Filho? Ou seria uma espécie de benção ou maldição sobre nós, o eco de um amor não-correspondido que teremos de carregar até o fim dos tempos, se houver algum? A lágrima feroz do Pai que, direta ou indiretamente, sacrificou seu filho favorito para perdoar nossos pecados, mostra que não há palavras que possam encarar o verdadeiro enigma deste mundo. Há apenas o fato irrefutável de que “there was a saviour/ rarer than radium/ cooler than water/ crueller than truth”. O problema é que ainda não correspondemos corretamente ao seu amor. E assim continuaremos a escutar os gritos abafados na terra retorcida ou veremos o fogo caindo do céu – para aprendermos, de uma vez por todas, enquanto esperamos por um milagre, que as raposas têm suas tocas, os pássaros têm seus ninhos, mas nenhum de nós terá um lugar para pousar a cabeça.

Tiro férias a partir de hoje e volto só em Janeiro – e olhem lá. Tenham um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo. Comportem-se, hem?

9 comentários em “A lágrima feroz

  1. Martim,
    e o obituário do Hitchens?
    O melhor texto (como escrevia bem, por Deus!) entre os ateus ferozes merece umas linhas no site da Dicta.

  2. @Julian
    Hitchens passou a ser apenas átomos em uma outra forma. Uma pena. Mas deixou textos memoráveis – apenas mais uns átomos? – que ficarão muito tempo por aí…

    Sobre a crítica à Madre Teresa, geralmente esquece-se a razão e a origem do livro. Ele foi chamado pelo próprio Vaticano – sim! – para ser o advocatus diaboli no processo de canonização. A autoridade máxima da Igreja reconheceu nele a competência para criticar Madre Teresa.

  3. Maravilhoso artigo que trata de um filme inprescindível. E a turma prefere falar sobre o inútil do Hitchens. Francamente…

  4. Li agora o texto, saudavelmente a contrapelo do consenso “bien pensant” – mas não se espera outra coisa por aqui.

    Mel Gibson como figura pública está associado a certas barras pesadas . Não é o caso de sair atirando pedras, mas isso não poderia deixar de incidir sobre a maneira como o filme é visto em muitos circuitos; vg http://www.slate.com/articles/news_and_politics/fighting_words/2006/07/mel_gibsons_meltdown.html

    Tipicamente reflete esse fato o artigo irritadiço do Hitchens linkado acima. A exemplo de milhões de outros contemporâneos nossos , completamente alheio às referências culturais/afetivas necessárias, sei lá, para aproximar a “Paixão de Cristo” de construções e esculturas barrocas (Santa Teresa quem sabe gostasse do filme se o projetassem na Espanha do “Siglo de Oro”; a sequência do Aleijadinho em Congonhas mostra-se no mesmo registro), ou mais crucialmente para não abespinhar-se com a passagem que encena a referência de São Mateus à gritaria da multidão diante de Pilatos, especificamente Mt 27, 25. Para compreender e não julgar, como sugere o MVC.

    O próprio cineasta famosamente declarou à época – no melhor e mais ortodoxo registro católico – entender bem que essa passagem não implica os judeus em qualquer espécie de maldição peculiar; que a passagem aplica-se a todos nós homens de modo indistinto, e que afinal o “sangue sobre nossas cabeças” é exatamente o que nos redime .

    O problema é que ao longo de centenas de anos e até o século XX – e mesmo hoje – esse versículo que Bento XVI chama de “fatídico” associa-se às mais diversas instrumentalizações antissemitas, aparecendo com frequência descontextualizado para servir à construção dos judeus como povo “deicida”, etc. No Brasil, onde a presença judaica no mainstream cultural e na vida pública não tem nem de longe a expressão que tem em países de maior presença da diáspora (e não vale apelar para o Jacó do Bandolim nem para o Jaime Lerner), a sensibilidade para esse tipo de questão costuma ser baixa. Utilizações perversas de Mt 27,25, porém, são um verdadeiro lugar comum daquele velho “ensino do desprezo” que Jules Isaac, por exemplo, denunciava na França antes da “Nostra Aetate” (http://fr.wikipedia.org/wiki/L%27Enseignement_du_m%C3%A9pris)

    Vale a pena a digressão: independente de detalhes da armadura da sua tese, Jules Isaac teve um papel da maior relevância na reflexão da Igreja a respeito da espinhosa questão do antissemitismo em circuitos sociologica ou historicamente cristãos . A confusão estúpida entre os planos histórico e teológico na leitura de Mateus , apontada por ele, é aliás basicamente a mesma a que se refere Ratzinger ao refletir sobre aquele versículo no segundo volume de “Jesus de Nazaré” . Quem souber francês e quiser entrar um pouco no clima da época entre o fim da II Guerra e o Vaticano II no tocante à “questão de Israel” do ponto de vista cristão pode ainda se interessar (entre outras possibilidades) por Jacques Maritain: http://www.jcrelations.net/Le_combat_de_Jacques_Maritain_contre_l___antis__mitisme.3275.0.html?L=6

    Voltando agora ao post do MVC e ao Hitchens: por mais que gostemos do filme do Gibson, não há motivo para não entender quem se ofenda com a tal passagem, contra o pano de fundo genérico de um “antissemitismo cristão” infelizmente real, e contra o pano de fundo específico daquilo que, certa ou erradamente, associava-se à figura pública do cineasta.

    Duas observações idiossincráticas, pra terminar.

    Primeiro, acho que o filme do Gibson ganharia se usasse na trilha sonora, sei lá, canto gregoriano. Bom, seria outro filme…Está muito bem como está.

    Segundo, ver no Jesus do Pasolini um proto-Guevara não é um imperativo categórico, mesmo que o ator que faz o protagonista, etc, etc. O filme está com certeza impregnado da atmosfera do começo dos anos 60, ok; mas não é clássico à toa. Acho mais: traz de maneira muito viva à tela algo do clima “antigo testamento profético” de São Mateus; é em geral lindamente understated, com imagens que às vezes parecem proto-renascentistas; e a trilha sonora é bem bacana.

    Agora na última semana do Advento, a adoração dos Magos. True believers: http://www.youtube.com/watch?v=-5U0-iO9rjM

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