A legalização do aborto e os direitos humanos

Human Rights

 

Pedro Ribeiro*

 

Aos meus míseros olhos, um dos sinais mais patentes da falta de perspicácia em uma pessoa é a sua incapacidade de perceber a radicalidade dos problemas. Nada é tão característico do homem ingênuo quanto a sua tendência a simplificar tudo. Para ele, mesmo as questões mais graves são óbvias, simples, sem incógnita. No Brasil, aliás, isso é hoje quase uma epidemia – e não apenas, como seria tolerável, nas conversas de bar ou nas polêmicas de Facebook. Ao contrário, o próprio debate público brasileiro, seja na arena parlamentar ou nos meios de comunicação, não passa muitas vezes de uma repetição compulsiva de clichês e de chavões. Na era da internet, como bem sabemos, imagens bem-humoradas são vistas como argumentos acachapantes e todo mundo acha que é muito fácil ter o que dizer. A coisa, no entanto, se torna ainda mais grave quando este procedimento, quanto este processo de simplificação é feito de modo oculto, sob o disfarce de um raciocínio bem estruturado.

Peguemos, por exemplo, a discussão sobre o aborto. A maneira como esse debate vem sendo conduzido nos últimos anos faz qualquer desavisado acreditar que as únicas razões possíveis para o tema ser polêmico são de origem religiosa. De fato, boa parte dos “intelectuais” de nossas terras parece acreditar que o único motivo para que alguém tenha uma vaga dúvida sobre assunto seja uma crise de fé. Se as raízes do questionamento são de outra ordem, isso só pode se explicar, pensam eles, porque a pessoa em questão não foi ainda suficientemente esclarecida, afinal, quando ela – pobrezinha! – entender de fato do que se trata o assunto, então tudo ficará tão claro quanto o céu azul de um dia de domingo. A verdade é que as sombras de um Iluminismo vadio, sem qualquer refinamento intelectual, continuam a pairar sobre nossas cabeças.

Neste sentido, nada é mais curioso do que aquilo que se fez com a noção de “direitos humanos”. De um conceito razoavelmente claro, ainda que problemático sob muitos aspectos, o termo se transformou numa espécie de palavra mágica que qualquer militante político (desde que esteja do lado certo) pode usar ao seu bel prazer. Assim, todo posicionamento que ponha em questão algum ponto da agenda política da moda se torna imediatamente um inimigo dos direitos humanos, aliás, se torna imediatamente por isso mesmo uma verdadeira monstruosidade, com a qual nem se cabe discutir. Foi precisamente este tipo de artifício que tornou muito simples e óbvio o ato de se pronunciar frases insanas como “A legalização do aborto é uma exigência dos direitos humanos”.

Pois bem, coloquemos então os pingos nos is. Antes de tudo, o que são os direitos humanos? De maneira prática, podemos entendê-los da seguinte maneira: um direito é um benefício que uma pessoa merece receber e deve esperar. O ponto é que há uma série de direitos que nós possuímos não por sermos quem somos, mas sim por nos encontrarmos em uma circunstância específica. Assim, um sócio do glorioso Clube de Regatas do Flamengo tem o direito de frequentar a piscina do clube. Ele evidentemente não possui esse direito pelo simples fato de ser uma pessoa, mas pela sua condição de associado. Os direitos humanos, ao contrário, segundo aqueles que os defendem, são as prerrogativas, os benefícios que toda pessoa possui não por uma circunstância específica em que se encontre, mas simplesmente pelo fato de ser uma pessoa, independentemente de sua cor, sexo, credo, etc.

Do ponto de vista estritamente filosófico, quatro questões fundamentais se põem a respeito dos direitos humanos: (1) Se eles existem; (2) Qual é o seu fundamento; (3) Qual é o seu conteúdo; e (4) Qual é a sua hierarquia interna. As questões (1), (2) e (3) estão intimamente conectadas. Em primeiro lugar, por mais ofensivo que isso pareça à nossa sensibilidade política moderna, não é evidente que existem direitos humanos. Como muito bem salienta o sempre genial Alasdair MacIntyre (1929 –), em seu magnífico livro Depois da Virtude, essa ideia de prerrogativas individuais, naturais e inalienáveis é uma invenção relativamente recente e sequer foi imaginada por boa parte da história da humanidade. De qualquer modo, mesmo que estes direitos existam (e eu penso que existem), não é evidente qual é o seu fundamento. É o fato de sermos racionais? Ou será que é porque fomos os únicos seres criados à imagem e semelhança de Deus? A resposta a esta pergunta é fundamental, inclusive para decisões práticas. Afinal, se pensarmos que o fundamento dos direitos é, por exemplo, a sensibilidade, a capacidade de sentir dor, então teremos que admitir que também os animais são pessoas e merecem ter os seus direitos reconhecidos. Por fim, nada, absolutamente nada é menos evidente do que o conteúdo, do que a lista dos direitos humanos. Até porque essa lista só mudou ao longo do tempo. No século XVIII, apenas direitos civis eram reconhecidos, tais como a liberdade religiosa e a liberdade de consciência. Hoje, no entanto, já se incluíram prerrogativas políticas e sociais, tais como o direito ao voto e à saúde. O fato incontestável é que só podemos responder adequadamente a este ponto (3) tendo antes respondido a (1) e (2).
Particularmente importante, porém, para a questão do aborto é o ponto (4). De fato, ainda que compremos os direitos humanos e que tenhamos cartas na manga para as dificuldades (2) e (3), é inevitável que os próprios direitos admitidos entrem em conflito entre si. Trata-se daquilo que os americanos chamam de hard cases, os casos difíceis: querelas jurídicas que põem em colisão dois ou mais direitos básicos. Por exemplo, tomemos um caso de racismo. O pano de fundo filosófico do julgamento de um caso como esse é a determinação de qual direito humano é superior, qual é o mais fundamental: a liberdade de expressão do racista ou o direito do negro de não ter sua dignidade ofendida. Diga-se o que for, escolhas de prioridade como essa são inevitáveis para quem quiser se meter na discussão sobre direitos humanos. As prerrogativas vão inevitavelmente entrar em conflito entre si e um intelectual honesto precisa dizer aos seus leitores qual é a justa hierarquia dos direitos em que acredita.

Minha perspectiva nesta matéria é clara e objetiva: qualquer que seja o fundamento que você defenda para os direitos humanos, qualquer que seja a sua lista de direitos, se você acredita que toda pessoa possui prerrogativas inalienáveis, então você deve admitir que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos. A razão disso é muito simples: o direito à vida é condição de possibilidade dos outros direitos. Não se pode garantir qualquer direito a uma pessoa se antes não se garante o seu direito à vida. Só vivos têm direito à educação, ao voto, ao trabalho ou à liberdade de consciência. Cadáveres, por definição, não estudam, não votam, não trabalham e nem creem – ao menos não no domínio da sociedade política, âmbito o qual estamos discutindo aqui. Antepor qualquer direito ao direito à vida, seja ele qual for, é um ato de cegueira flagrante e inaceitável. Portanto, a única questão realmente fundamental no debate sobre o aborto é esta: onde começa a vida de uma pessoa? Se admitirmos que o feto já é uma vida (e aí está o debate que realmente importa), nada, absolutamente nada pode justificar o seu assassinato, nem mesmo o estupro de sua mãe ou o fato dele possuir deformidades genéticas.
Sei perfeitamente que minha conclusão soará a muitos como desumana e cruel. No entanto, ela é a consequência necessária de alguém sinceramente preocupado em defender os direitos humanos. Eu repito: a única questão essencial é onde começa a vida de uma pessoa. Todas as outras questões são muito importantes e devem ser enfrentadas (a defesa da dignidade da mãe, a possibilidade da criança nascer em um lar miserável, etc.). No entanto, nenhuma prerrogativa pode ser considerada mais importante do que o direito à vida, por simples respeito à hierarquia necessária dos direitos. O que devemos discutir é se o feto é ou não um ser humano sujeito de direitos. Se ele o for (e eu penso que o é, desde a sua concepção), então matá-lo é cometer um assassinato, pura e simplesmente – tal como seria matar um homem adulto.

Talvez então você me diga: “Determinar objetivamente onde começa a vida de uma pessoa é algo muito difícil!” Pois é, um dos sinais mais patentes de inteligência em uma pessoa é a sua capacidade de perceber a radicalidade dos problemas. Eu volto a esse tema no próximo texto – tratarei da possibilidade ou não da ciência nos ajudar nesse espinhoso debate.

* Pedro Ribeiro é graduando em filosofia pela UERJ e trabalha como professor da disciplina nos âmbitos do Ensino Médio e de pré-vestibular

Um comentário em “A legalização do aborto e os direitos humanos

  1. ACREDITO QUE, QUANTO AO DIREITO À VIDA COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DOS DIREITOS HUMANOS, CABE AINDA ALGUMAS QUESTÕES, COMO POR EXEMPLO: O QUE É A VIDA? VIDA E EXISTÊNCIA SÃO SINÔNIMOS? E A VIDA DA MÃE E OS TRAUMAS DECORRENTES DE VÁRIOS FATORES TAIS COMO ESTUPRO, BEBÊS ANENCÉFALOS E OUTROS?
    AFINAL, A PROIBIÇÃO DO ABORTO TEM POR FINALIDADE PRESERVAR A VIDA OU APENAS UMA EXISTÊNCIA?
    NÃO FAÇO AQUI APOLOGIA PRÓ OU CONTRA, PORÉM, COMO ESCREVEU O AUTOR, A QUESTÃO NÃO É TÃO SIMPLES.

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