A luz não é para todos

(Este ensaio foi publicado na última edição 53 da revista Ide, editada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, cujo tema é “Poéticas”)

A cultura de uma civilização só pode ser analisada corretamente se for iluminada através da sua violência. Ambos os fenômenos são intrínsecos. Não há como negar o fato de que o ser humano é incapaz de controlar a violência interna que, por um desses paradoxos que ninguém explica, é a mesma que o faz construir suas casas, seus instrumentos de trabalho e também as suas manifestações artísticas. E é aqui que a poesia, com a linguagem simbólica que capta os movimentos contraditórios da vida do espírito, nos ajuda a ver, com um pouco de clareza, como se pode controlar a destruição que sustém a cultura humana, antes que entremos numa alucinante dança macabra.

Isso comprova-se nos exemplos de Seamus Heaney e Dylan Thomas, dois poetas aparentemente semelhantes em temática e estilo, mas completamente diferentes no modo como realizaram suas caçadas pela luz que nos perturba. Heaney, um irlandês católico nascido no povoado de Derry, na Irlanda do Norte, em 1939, foi o ganhador do prêmio Nobel de poesia de 1995. Sua obra, porém, não foi descoberta graças à premiação, como se fosse uma ação do acaso ou do famoso “toma-lá-dá-cá” que o mundo literário adora realizar (e do qual o Nobel é uma das marcas registradas). Desde de 1966, com a publicação de seu primeiro livro, o surpreendente “Death of a Naturalist” (Morte de um naturalista), Heaney construiu uma preocupação constante de criar uma poesia capaz de dialogar com a tradição inglesa e irlandesa que moldou mestres como Yeats, Joyce, Philip Larkin e Ted Hughes, além de ser uma reflexão sobre os assuntos cotidianos de sua época, como a perda da inocência, a relação do homem com a natureza devastada (e devastadora), e, claro, as intrigas políticas entre protestantes e católicos que culminam nos atentados terroristas do I.R.A. (Exército Republicano Irlandês). Na verdade, como todo bom irlandês, Heaney é fascinado pela precariedade das coisas deste mundo. Para ele, o ato de criação é igual ao de cavar um solo coberto de batatas, como o próprio escreve em “Digging” (Cavando), poema que abre “Death of Naturalist”. A figura do pai (e do avô) desenterrando raízes do solo, enquanto o jovem Heaney descobre que a única pá que lhe resta é a caneta no dedão, é o início de uma série de meditações sobre a passagem do tempo e a descoberta da morte contrastada com a possível perenidade da arte. O ato de cavar é uma descida na alma para, como diria em seu “Personal Helicon” (Helícon Pessoal), “to see myself, to set the darkness echoing” [“para me ver, tornar as trevas ecoantes”, na tradução de José Antonio Arantes]. Obviamente, o encontro com as trevas de sua alma implica também o encontro com as trevas de seu país, dividido em uma guerra civil absurda, onde as duas facções pertencem a uma religião que – e isso só pode ser mesmo irlandês – defende o perdão como a única via possível para acabar com a violência humana. Mas Heaney sabe que este conflito pessoal e histórico não pode cair na esparrela ideológica. Afinal de contas, por mais absurda que a guerra seja, ela envolve pessoas concretas, seres humanos de carne e osso. E uma das poucas funções da arte é justamente recuperar o valor da pessoa humana, em especial a sua dignidade. Claro que o preço que se paga por essa recuperação é muito alto.

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