A máscara da fragilidade

(No final do ano passado foi publicada no Brasil uma nova biografia de David Bowie, escrita pelo jornalista Marc Spitz. Intitulada simplesmente “Bowie – A Biografia”, é escrita com paixão e constrangimento de um fâ. Depois de duzentas e cinqüenta páginas descrevendo o processo de influência e de formação de um dos maiores músicos pop, logo a biografia cai no lugar comum e prefere se perguntar se Bowie foi ou não foi para a cama com tal e tal pessoa, sem se preocupar com o sexo e também com o fato de que, durante sete anos seguidos, o sujeito produziu, ao menos, oito obras-primas do rock-n´-roll. Uma pena para nós, brasileiros que se contentam com as migalhas decididas pelos editores e pelas editoras que não sabem mais escolher um livro para os leitores que querem saber como e o que faz um gênio.)

“Ele viveu todo o tempo necessário para experimentar muitas vezes cada uma das possibilidades do seu ser; para que fizesse, de si mesmo, diversas idéias diferentes, e para que resgatasse delas, conhecendo-se sempre mais vasto. Conseguiu encontrar-se, perder-se, recuperar-se e reconstruir-se, ser diversamente o Mesmo e o Outro; e observar em si mesmo seu ritmo de mudança e de crescimento. Uma mudança de amplitude quase secular, através da substituição insensível dos gostos, dos desejos, das opiniões, dos poderes do ser leva a imaginar que um homem, vivendo com muita obstinação, experimentaria sucessivamente todas as atrações, todas as repulsas, conheceria talvez todas as virtudes, com toda a certeza, todos os vícios; esgotaria finalmente, a respeito de tudo, o total das afeições contrárias e simétricas que podem ser excitadas”.

Paul Valéry, em um discuro em homenagem ao centenário de Goethe

Todos nós sabemos que David Bowie não é Goethe, mas sabemos que ambos foram os únicos artistas que conseguiram, dentro do seu tempo, captar o Zeitgeist e superá-lo, através de uma síntese entre o experimental e o popular, sem perder a ousadia e, o mais importante, a qualidade. Em seu novo álbum, “Heathen”, Bowie faz uma meditação exemplar sobre a sensação de decadência e morte que se espalhou depois do Terror do 11 de setembro, ao declamar como um poema a letra da canção “Sunday”. “Nothing remains” (Nada permanece), ele diz, enquanto uma seqüência de guitarras e ruídos estranhos surpreende o ouvinte, que tenta fazer como o próprio Bowie canta, “We should crawl under the bracken/ Look for the shafts of light” (Nós devemos engatinhar entre as ruínas, procurando por raios de luz).

Definitivamente, “Sunday” não é uma canção dominical, em que o sol brilha para todos. O domingo de Bowie é de uma incerteza assustadora, em que nada permanece porque, na verdade, “é o começo do nada e nada mudou”, mesmo que momentos depois ele afirme o contrário – que “tudo mudou”. Tudo mudou porque, pela primeira vez, o Nada passou a existir – ou, para ser exato, o Nada passou a ter (algum) sentido. É claro que esta é uma afirmação que pode ter saído da boca de um sofista, mas o fato é que David Bowie faz este questionamento – se o Nada realmente existe? – porque ele quer refletir sobre o que sobrou depois daquela monstruosidade que foi o 11 de setembro e, principalmente, quais foram seus efeitos sobre a cultura em que ele atua.

Suas conclusões não foram as mais felizes – mas foram as mais dignas a que um artista pode chegar. Mas para chegar a elas, Bowie teve que passar por um processo lento e gradativo durante trinta anos, em que ele teve de construir e destruir as máscaras que cobriam sua verdadeira personalidade para mostrar uma outra – aquela que mostra a fragilidade de suas indecisões e reflexões. De certa forma, “Heathen” foi o álbum que David Bowie estava se preparando para fazer desde o início de sua carreira como cantor e compositor, e se uma tragédia como o Terror de 11 de setembro foi um dos fatores responsáveis pelo seu definitivo amadurecimento, isto é um sinal de que não estamos testemunhando não só o fim de uma era, mas também o começo de uma outra. Contudo, para esta ressurreição acontecer de fato e com toda a sua pureza possível, temos de purgar o medo do que nós nos tornamos e lembrar de Deus em todos os nossos julgamentos (“In your fear/ Of what we have become/Take to the fire/ Now we must burn/ All that we are/ Rise together/ Through these clouds/ As on wings (…) All my trials/ Lord will be remembered”). Somente dessa forma podemos dizer se tudo está realmente mudado.

Bowie sempre foi um mestre em duas coisas: canções que retratam personagens desesperados em cenários apocalípticos e uma capacidade infinita de mudar de estilo, seja de música, de atitude, de moda, mas sem perder a unidade que mantém a máscara que esconde o franzino David Robert Jones, nascido em 1947 na cidade de Brixton. Apaixonado por artes plásticas e por música, David Jones trocou o seu nome por David Bowie porque queria um nome tão afiado quanto Mick Jagger, apesar da lenda dizer que ele substituiu o sobrenome pela marca do canivete Bowie, por causa da surra que levou de um amigo pero no mucho da escola, que teria furado o seu olho, inutilizando-o completamente (mentira: o olho ficou paralisado devido a um soco na cara, o que dá a impressão de que Bowie tem olho de vidro, já que a cor de suas íris mudam conforme a luz do ambiente).

O rock foi sua maneira de se expressar em termos musicais, principalmente em um mundo onde o pai morrera prematuramente (em 1969) e o irmão Terry apresentava claros sintomas de esquizofrenia (ele se suicidaria em 1991). Logo na juventude, Bowie mostrava quem seria no futuro: um sujeito preocupado com as últimas tendências da moda e da música, cauteloso, meticuloso quando se trata de finanças e perfeccionista na hora de compor uma canção, seja ela um simples twist ou uma balada folk. Mas esta personalidade forte também cairia na armadilha fácil da bissexualidade e das drogas.

Um dos motivos porque muitas pessoas não gostam da obra de David Bowie é a sua fama de homossexual e as lendas que cercam seu comportamento andrógino, acentuado pelo próprio ao longo de sua carreira, ainda mais quando seu primeiro grande sucesso foi sob a forma de Ziggy Stardust, um extraterrestre sem sobrancelhas que se vestia como uma mulher e gritava como uma cadela no cio. Bowie afirmou que teve experiências com outros homens (entre eles, Mick Jagger e Lou Reed) e que sua vivência com as drogas chegou ao ponto de que um tinteiro poderia passar pela sua narina direita, tamanho o rombo que o consumo de cocaína fez ao seu organismo. Isso não prejudica a avaliação de seu trabalho; aliás, só tende a acrescentá-lo porque, ao contrário de muitos superstars de nossa época, Bowie nunca fez apologia da bissexualidade e do vício. A prova disso é que seus personagens de caráter sexual ambíguo, como o Homem que Vendeu o Mundo (The Man Who Sold the World) e Ziggy, são propositadamente espalhafatosos, bregas (“Eu queria transformar o rock-n´-roll em um espetáculo de mal gosto”, ele disse uma vez em uma entrevista à Rolling Stone) e tinham uma morte rápida – como aconteceu com o próprio Ziggy, que foi assassinado por Bowie em um concerto, porque “sinceramente, já estava ficando louco com aquele ET”. Além disso, Bowie fez questão de realizar três de seus discos mais perfeitos – “Low”, “Heroes” e “Lodger” – bem na época em que a sua desintoxicação chegava ao um limite insuportável, mostrando aos seus fãs como sua voz estava acabada e sem o poder de antes.

Com o passar do tempo, Bowie foi reformulando sua persona em um cantor de caráter assumidamente conservador e heterossexual. Nos anos 80, ele fez “Let´s Dance”, talvez o álbum mais comercial que um sujeito que amava as experimentações já fez, repleto de odes à mocinhas que viviam no bairro de Chinatown (“China Girl”, feito em parceria com Iggy Pop) ou então às danças maliciosas com outras mocinhas em pleno verão (“Let´s Dance”, com sua paródia fantástica de “Twist and Shout” como coro de fundo). Claro que a década de 80 foi também o momento mais desprezível de sua carreira (o próprio afirmou isso em uma entrevista, numa auto-crítica implacável), com discos como “Tonight, Tonight” e “Never Let Me Down”, ou então ter participado de baboseiras como “Labirinto”, mas ele teve de passar por esta fase depois dos destroços que foram os anos 70, os anos em que qualquer coisa que Bowie fazia era marcada com o adjetivo de “gênio”.

Mas o fato é que os anos 70 foram os destroços mais produtivos de sua vida. Ninguém teve a capacidade de realizar a união entre o pop e o experimental além de David Bowie. Até mesmo Lou Reed, um sujeito que não costuma falar bem dos outros colegas, reconhece que Bowie foi ímpar nesta área: “Ele fez o que todo mundo queria fazer, mostrar como era podre o nosso mundo, mas sem perder a beleza da música”. E quando se trata da música, Bowie realizou verdadeiras pérolas. Capaz de alterar o registro da voz conforme o assunto da canção, ele desenvolveu não uma personalidade, mas várias, o que lhe deu o tão batido nome de “camaleão do rock”. Criou personas antológicas, como o alienígena Ziggy Stardust, o proto-fascista Thin White Duke, o soul man de Philadelphia, o maluco Alladdin Sane (o nome é um trocadilho fenomenal com a frase “a lad in sane” – um cara insano), o solitário de Berlim, o superstar de “Let´s Dance”, o detetive de “Outside” e agora o melancólico de ‘Heathen”. Contudo, Bowie sempre viu esses personagens em função das canções e nunca o contrário.

As canções é que contam a história e, no caso de Bowie, o desespero por uma vida melhor que não pode ser vivida neste mundo parece ser o mote freqüente de seus álbuns. Mas eles não são apenas tentativas de discos conceituais ou de operas-rocks, o que ficaria muito chato e pedante. Sutilmente, Bowie faz uma reflexão sobre a cultura em que vive e influencia, não hesitando em criar discos radicalmente políticos, como é o caso de “Diamond Dogs” (1974), inspirado no “1984” de George Orwell, ou discos explicitamente esquizofrênicos, como foi com “Low” (1977) e “Heroes” (1977), divididos em dois lados, um mais comercial e outro mais experimental, referência clara ao lugar onde foram gravados, nos estúdios La Hansa, a quinze metros do muro de Berlim.

Essa característica reflexiva na obra de Bowie – tomada de Lou Reed e Bob Dylan e das pinturas de Mondrian, de quem é um estudioso profundo – permite que as canções saiam do mero estereótipo e possam atingir a alma do ouvinte como uma experiência universal. Neste caso, é a experiência que todos nós já tivemos: a de no meio da nossa fragilidade, descobrir a nossa força, bem no momento em que tudo parece desabar. Os personagens de Bowie são os seres mais solitários do mundo e esta solidão é capaz de atos terríveis, como vender a alma por um pedaço do mundo (“The Man Who Sold The World”), virar um assassino que mata meio mundo em Detroit por querer imitar Che Guevara (“Panic In Detroit”) e confundir o amor com os efeitos colaterais da cocaína (The Thin White em “Station to Station”, quando canta: “It´s not the side effects of the cocaine/ I think it must be love”), ou então fazer os atos mais nobres, como assumir sua própria solidão (Ziggy Stardust em “Rock-N´-Roll Suicide”), pedir a Deus que aceite sua prece (a extraordinária “Word on a Wing”, em que Bowie mostra ser um compositor religioso de mão cheia) ou então proteger a sua amada a qualquer custo (o hino de todos os “beautiful losers”, “Heroes”, no qual o título é escrito entre aspas devido ao sentido irônico que Bowie quer dar aos seus “heróis”).

Talvez o deseperado em questão seja o próprio David Bowie, um sujeito que teve de se reconstruir constantemente para que o público notasse justamente a sua verdadeira fragilidade. Era um método brechtiano às avessas: quanto mais máscaras, mais se conhecia a sua alma e sua visão de mundo. Mas Bowie não era apenas um cantor que se preocupava com a performance – apesar de ser um ator de cinema e teatro bissextos e que mostra um inegável talento na frente dos palcos e das telas (vejam “Fome de Viver”, em que interpreta um vampiro agonizante ou lembrem-se da aclamada interpretação como o Homem Elefante nos palcos londrinos). Ele era, antes de tudo, um músico – e pode-se dizer que é um dos maiores experimentadores que a música em qualquer gênero já teve. Bowie rompeu barreiras musicais entre o rock e a ambient music com a trilogia Berlim, feita em colaboração com Brian Eno e Tony Visconti, que formam os álbuns “Low”, “Heroes” e “Lodger”; foi o primeiro a antecipar a soul music com com o funk branco de Philadelphia em “Young Americans” (1975); fez uma das distorções mais bonitas do rock em “Diamond Dogs” e provou que poderia se auto-parodiar (algo que faz frequentemente) em “Scary Monsters (And Super Creeps)”, com a canção “Ashes to Ashes”, que remetia ao seu grande sucesso, “Space Oddity”, também conhecida como a triste história do Major Tom flutuando pelo espaço sideral.

Depois da década de 80, os críticos e até mesmo os fãs achavam que ele estava liquidado no star system, chegando ao ponto de formar uma banda chamada Tin Machine, que deveria ser mais agressiva, mas acabava soando como Bowie até a última nota. Contudo, entre 1992 e 1994 o seu casamento com a modelo Iman (depois de um divórcio turbulento com Angela, a “Angie” dos Rolling Stones, que Mick Jagger cantou em homenagem porque ela havia flagrado o seu marido com ele na cama do casal) provocou uma mudança em seu temperamento. “Fiquei mais calmo, pensando que finalmente deveria formar uma família normal. No fim das contas, eu queria ser um cara normal, sem vícios, sem fama de superstar, um cara que vai ao supermercado e compra uma caixa de leite”, disse Bowie uma vez ao jornal londrino New Musical Express. Essa procura pela normalidade chega a ser comovente para um sujeito que teve de tudo, menos uma vida regrada (a mesma coisa aconteceu, por uma feliz coincidência, com Lou Reed). Mas também provoca um estranho paradoxo na alma do artista, que fica mais inquieto com o destino do mundo onde vive.

Foi o que aconteceu com “Outside” (1995), um dos grandes discos dos anos 90, talvez ao lado de “The Fragile”, da banda Nine Inch Nails, a obra que capta com perfeição os sons de angústia que cercavam a Geração X. Na verdade, Bowie já tinha feito um comeback ao velho estilo com “Black Tie White Noise”, um “Young Americans” amadurecido e melhorado, mas nada poderia supor que o mesmo cinqüentão que havia escrito “The Wedding”, feito em homenagem à sua nova esposa, poderia nos dar algo tão sombrio como “The Heart´s Filthy Lesson” ou “The Motel”.

“Outside” era para ser a primeira parte de uma trilogia que contaria as aventuras do detetive Nathan Adler em busca do assassino da pequena Baby Grace, multilada em mais de cem pedaços. A visão distópica que Bowie havia apenas esboçado em “Diamond Dogs” atinge níveis extremos de loucura, tudo graças ao piano clássico de Mick Garson e à influência de Trent Reznor, do Nine Inch Nails, que, por sua vez, influenciado pelo “Low” de Bowie, havia concebido um dos álbuns mais doentes da História, “The Downward Spiral” (1994). Em “Outside”, a música é composta por ruídos, o cheiro é de morte constante e as pessoas sequer se cumprimentam, preferindo serem tratadas como estranhos. Se você quer encontrar paz, não será neste mundo, parecia ser o que Bowie queria dizer.

A tendência pessimista continuou com “Earthling” (1997), um disco duro, difícil, inspirado nas batidas do trance e do drum-n´-bass, Bowie ia além da moda, pintando um universo dominado pela paranóia (“I´m Afraid of Americans”) e pela mentira como a única forma possível para os visionários (“Telling Lies”). A crítica odiou o que ele tentou fazer, chamando-o de “oportunista”. Bowie respondeu com uma turnê em que só cantava canções de seus dois últimos álbuns, além de criar o primeiro provedor privado na Internet com a BowieNet e comprar todas as ações dos direitos de suas canções, amealhando uma fortuna pessoal de quase 70 milhões de dólares.

Dois anos depois, lançava “Hours”, um álbum autobiográfico em que Bowie começava a fazer algo que só Bob Dylan havia feito com “Time Out of Mind”: o confronto com a velhice. Em “Tuesday´s Child”, uma das provas de que Bowie é um dos maiores crooners do nosso tempo, ele canta sobre remorsos do passado que não conseguem ser resolvidos no presente. Estes remorsos irão se disseminar no disco inteiro, que são curados apenas pelo tempo (as “horas” do título). A capa mostra dois Bowies, um morto e outro segurando o cadáver, numa citação da Pietá de Michelangelo. “Hours” tinha algo de transição, como se um novo Bowie fosse surgir, talvez sem a máscara e somente com sua verdadeira face.

A face está coberta de bronze e os olhos estão cegos na capa de “Heathen” (pagão em inglês), mas parece que agora temos somente a máscara da fragilidade. Em seu novo álbum, Bowie não hesita em mostrar que está com medo e que a única coisa que procura é uma luz, mesmo que esteja sob a forma de uma mulher que espera há muito tempo e que não vem. O encarte mostra quadros de Nossa Senhora rasgados e, numa foto reveladora, três livros encadernados no estilo século XIX: “A Gaia Ciência”, de Nietzsche, “A Teoria Geral da Relatividade”, de Albert Einstein e “A Interpretação dos Sonhos”, de Sigmund Freud. Ao lado os dizeres “I can feel die” (Posso sentir morrer). Num trabalho visual magistral, Bowie nos diz qual é o tema de seu disco: em um mundo dominado pela cegueira do paganismo, será que este mundo vai permanecer, será que ele vai continuar?

Ele chega à pior das conclusões: a de que este mundo, o mundo de Freud, Nietzsche e Einstein, está morrendo. Fica claro que Bowie foi um dos poucos artistas a compreender realmente os efeitos do Terror de 11 de setembro na história da Humanidade. Aquilo não só foi um fato terrível porque quase 4.000 pessoas morreram ou porque revelou um inimigo que nenhum Estado pode controlar. O Terror de 11 de setembro foi monstruoso porque mostrou com exatidão o Mal Lógico, o Nada que tem um sentido, que é justamente se alimentar do nada – e este nada somos nós mesmos, nossas almas, nossas vidas e, enfim, a nossa cultura.

Roger Kimball, em seu brilhante ensaio “The Fortunes of Permanece”, publicado na The New Criterion, lembra com muita propriedade o que C.S.Lewis disse em circunstâncias similares em 1939:

“O 11 de setembro precipitou uma crise na qual ainda não podemos ver qual será o fim. Parte da tarefa que nos enfrenta agora é reconhecer a profundidade do barbarismo que desafia a sobrevivência da cultura. E parte deste reconhecimento se baseia em reafirmar os valores centrais que estão sob ataque. Ultimamente, a vitória no conflito que nos cerca será determinada não por armas inteligentes mas sim por mentes inteligentes. Isto é para dizer que o conflito não é apenas – e não é unicamente – um conflito militar tanto quanto um conflito de visões-de-mundo. É conveniente comandar grupos de batalha e mísseis teleguiados; é essencial ter a vontade de usá-los e a fé que a nossa causa, a causa da cultura, é a melhor esperança para a humanidade. Mark Steyn se exprimiu bem ao escrever: ‘Se estamos tão envergonhados como insistimos que estamos – de nós mesmos, de nossa cultura, de nossa história – então inevitavelmente nós estaremos convidados para a nossa própria destruição’. A matança horripilante de 11 de setembro nos tenta a marcar uma linha divisória em torno daquele dia e tratar as suas conseqüências imediatas como um caso excepcional. Há, contudo, um sentimento muito profundo em que os ataques terroristas marcaram não a fragilidade da normalidade, mas sim a normalidade da fragilidade. Este é um ponto que C.S. Lewis deu com grande eloqüência num sermão que ele pregou em Oxford em 1939. “Acho importante”, ele disse,

’em ver a calamidade presente numa perspectiva verdadeira. A guerra não cria nenhuma situação nova: ela simplesmente agrava a situação humana permanente que não podemos mais ignorar. A vida humana sempre viveu à beira de um precípicio. A cultura humana sempre teve de existir sob a sombra de algo infinitamente mais importante do que ela mesma. Se os homens tivessem adiado a busca pelo conhecimento e pela beleza até que estivessem seguros, a busca nunca teria começado.

Estamos enganados quando comparamos a guerra com a ‘vida normal’. A vida nunca foi normal. Mesmo aqueles períodos em que nós pensamos serem os mais tranqüilos, como o século XIX, revelaram-se, se olharmos mais de perto, cheio de crises, alarmes, dificuldades, emergências. Nunca faltaram as razões mais plausíveis para desistir das mais mundanas atividades culturais até que algum perigo iminente foi evitado ou alguma injustiça gritante fosse resolvida. Mas a humanidade escolheu há muito tempo negligenciar estas razões plausíveis. Eles queriam conhecimento e beleza agora e não iriam esperar pelo momento oportuno que nunca chegou. A Atenas de Péricles não nos deixou somente com o Parthenon, mas, significativamente, deixou também a Oração Fúnebre. Os insetos escolheram algo diferente: eles procuram a segurança material e a segurança do ambiente e então eles têm a sua recompensa.

Mas os homens são diferentes. Eles propõem teoremas matemáticos em cidades sitiadas, conduzem argumentos metafísicos em celas condenadas, fazem piadas em porões, discutem o mais novo poema enquanto avançam para os muros de Québec e penteiam o seu cabelo em Thermopylae. Isto não é uma brincadeira: é a nossa natureza” ‘.

“Heathen” é o testamento de uma cultura que vai morrer para ver, no futuro, o seu renascimento e a sua permanência. Dessa maneira, realmente nada mudou – mas mudou para que tudo fosse renovado. A cultura do mundo dos sonhos que podem ser interpretados através dos instintos mais baixos, do mundo em que loucos dizem que Deus está morto e que o tempo e o espaço são relativos, deve morrer porque sua esterilidade acabou com a verdadeira cultura. Com o 11 de setembro, toda uma cultura de paganismo, criada pelo modernismo de Freud, Nietszche e Einstein, se revela como aquilo que Bowie sussurra em “Sunday”: “Nothing remains”. Em um álbum em que a homogeneidade musical surge com um rigor artístico muito sutil, as faixas se sucedem como se estivessem contando a história íntima de uma alma em busca de algum fiapo de luz: ao nada que permanece de “Sunday”, segue-se a do amante que quer ter uma lembrança de sua amada que, provavelmente, está morta (“Cactus”, uma cover do Pixies, banda que era influenciada pelo Ziggy Stardust de Bowie), lamenta-se porque todo um tempo de infância desapareceu (“Slip Away”, com um dos refrões mais esquisitos de todos os tempos – “Twinkle twinkle Uncle Floyd”), pergunta-se porque se sente tão pequeno em tempos em que o medo está em todo o lugar (“Slow Burn”, com Pete Townshend citando sem pudor a guitarra de Robert Fripp em “Heroes”), afirma que se sente desamparado e sozinho (“Afraid”) enquanto procura uma mulher que não peça ou ordene (“I´ve Been Waiting For You”, cover de Niel Young, outro sujeito que entende muito bem da fragilidade humana), pedindo-a que se mostre como é, para que seja apenas o seu escravo (“I Would Be Your Slave”, canção de amor ambígua, com direito a um delicado quarteto de cordas) e que pensará nela mesmo no espaço (“I took a trip on a gemini spacecraft”, outra cover em que, na verdade, Bowie faz uma auto-referência a “Space Oddity”, com um som copiado do seu “Black Tie White Noise”), uma vez que vive num mundo dominado pelo abandono divino e espiritual (“5:15 The Angels Have Gone”), ainda que ele tenha bons motivos para um pouco de esperança, com todo mundo cumprimentando todo mundo e esperando um futuro melhor (“Everyone says Hi” e “A Better Future”, duas canções aparentemente bobinhas, mas ficam só na aparência de serem isso), esquecendo-se, contudo, que a realidade nos prepara para a morte, como fala na última canção “Heathen (The Rays)”:

“And when the sun is low
And the rays high
I can see it now
I can feel it die”

(E quando o sol descer
e os raios subirem
Eu posso ver agora
Posso sentir morrer)

A visão da iluminação é também uma visão da morte, mas não da morte defintiva e sim, daquela que nos impele para uma outra vida – a vida renascida. Contudo, Bowie assume a coragem de enfrentar e aceitar a sua mortalidade e a mortalidade da cultura onde vive – aliás, a mesma cultura que ele também ajudou a criar com sua música e sua atitude – para que a vida de uma próxima geração continue. É notório que Bowie escreveu as canções de “Heathen” para a sua filha com Iman, Alexandra, preocupado sobre que tipo de mundo deixaria para ela quando morresse. Esta atitude seria impossível para o David Bowie de 40 anos atrás: mas o tempo ajuda a vida a se corrigir quando a pessoa aceita que existe algo além deste mundo, mesmo que ele esteja marcado pelo abandono e pela desilusão. No nosso caso, podemos sentir que nosso mundo também está morrendo, mas só podemos esperar que os raios que sobem não sejam oriundos da mais negra das escuridões.

(2002)

9 comentários em “A máscara da fragilidade

  1. Bowie, Einstein, Freud, Nietszche, 11 de setembro, Goethe, C.S. Lewis, o mundo em frangalhos.
    Estou completamente sem fôlego!
    Ultimamente parece que os melhores comentários que eu encontro sobre a (boa) música pop vem da D&C! Inesperado, para dizer o mínimo.

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  3. A referência aos livros de Freud, Nietszche e Einstein faz lembrar do final de um ouro livro: “A Máquina do Tempo”, de H.G. Wells, em que o viajante do tempo resolve voltar à sua bibblioteca e pegar três livros que poderão nortear a nova sociedade dos elois sob sua orientação. O autor deixa implícito ao leitor que estes livros seriam a chave se construir um senso de humanidade mais solidário e pouco afeito a um bucolismo ingênuo visto em sua primeira estadia no futuro. A impressão que se tem ao ler este texto é que um fim de uma era termina, mas seus resquícios acompanharam a próxima era até que se imiscuem nas bases de uma nova (recauchutada) ideologia a tomar as mentes e corpos dos humanos que permanecerem.

  4. Belo comentário, Martim. Vou ouvir com prazer o disco que ainda não tinha prestado atenção. Não estou convicto, porém, sobre como acontecerá esta travessia da alma da cultura contemporânea. Cito um trecho de A. Rizzi: “Assumere il negativo è la condizione per donare il positivo, donare il positivo è il fine dell’assunzione del negativo. Non si lotta con verità contro il negativo se non assumendolo, perchè assumerlo vuol dire sconfiggere la logica con cui è nato. Invece rifiutarlo vuol dire prolungare la sua logica, dunque non sconfiggerlo, ma potenziarlo.” (Gesù e la salvezza. Tra fede, religione e laicità, Città Nuova, p. 95.) Talvez Bowie esteja na linha de Rizzi, não?

  5. Ok, talvez meu comentário esteja atrasado considerando a data de lançamento do álbum, mas posso destruir todos os argumentos desse artigo apenas dizendo que, factualmente, o 11 de setembro ocorreu por uma mente com uma fé muito mais temerosa e muito mais densa em Deu do que a de qualquer outro ocidental. Portanto, como se explica (e pergunto isso ao autor do artigo, e também faria a mesma pergunta ao Bowie, que é meu ídolo artístico) atribuir esse acontecimento e a hipótese de que um mundo estaria morrendo aos pagãos? Sei que o “heathen” aí implica um caráter com crença no nada, em Deus nenhum, mas é de se considerar que a cultura dos neopagãs é a festa, é a alegria, o prazer coletivo (ao contrário das seitas satânicas onde o prazer a ser conquistado é individual). Como explicar tudo isso, como ficar cego diante disso? É a crença fervorosa em Deus que é perigosa socialmente; talvez essa crença no vazio seja prejudicial somente ao indivíduo. Se você for comentar essa minha opinião, por favor deixe-me saber enviando-me um email para fernando.280@gmail.com Abraços

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