A ordem do universo prova a existência de Deus?

Muito comum o maravilhar-se com a ordem do cosmos e ver, por detrás dela, uma inteligência divina. Afinal, para que todas as coisas se encaixem tão bem, produzindo ordens desde o maior até o menor plano que a inteligência humana alcança, deve haver algum ordenador externo.

Contudo, considerem um exemplo pequeno de ordem: jogamos água num copo cujo interior é completamente irregular e, voilà, depois de alguns instantes a água adquiriu o exato formato, muito complexo, do interior do copo. Onde está a inteligência para garantir que a água adquira precisamente esse formato, e não outro?

Sabemos que pela leis da física, ela tem que adquirir esse formato. Muito bem; mas então precisamos de uma inteligência para garantir as leis da física! Não tão rápido! Aquilo a que chamamos de leis da física são expressões abstratas de como os seres se comportam. E eles se comportam de acordo com suas naturezas, isto é, de acordo com o que são. Logo, a lei da física não é algo exterior, imposto aos corpos, mas algo que decorre, que emerge, de suas naturezas. Podemos discutir isso aqui também, mas me parece uma opção bem mais parcimoniosa do que dizer que existem dois tipos de coisa independentes: corpos e as leis, entidades imateriais, que determinam seus movimentos, de forma que seria teoricamente possível manter os corpos idênticos mas operando sob leis completamente diferentes.

Portanto, é da natureza da água que ela se comporte de forma a adquirir o formato de seu recipiente. E dado que tudo é aquilo que é, então seria impossível que a água não manifestasse essa ordem. Tendo a água as propriedades que tem, é impossível que ela não adquira o formato do copo.

Isso vale para todos os seres. Tudo é aquilo que é. Portanto, não importa como fosse o universo, não importa que seres existissem, todos se comportariam de uma dada maneira e o conjunto teria uma ordem. “Quem garante que, dando um passo para frente, não chovam donuts de chocolate vindos do nada e que o sistema elétrico que usávamos até ontem simplesmente pare de funcionar embora nada tenha quebrado? O universo poderia ser completamente caótico.” Isso é ilusão verbal. Dado que a realidade é como é (ou seja, que o universo seja composto de tais e tais seres), tais eventos são impossíveis, pois envolvem contradições. Envolvem que, digamos, os elétrons deixem de ser elétrons, que uma natureza seja e não seja ela mesma.

Você me dirá “Ok, mas como e por quê esses seres existem? É preciso um Criador”. E daí concordo plenamente. O que discordo é que, para além da existência, seja necessária uma inteligência para garantir a ordem, pois, conforme meu argumento, dada a existência do que quer que seja, a ordem se segue necessariamente.

Há, contudo, um motivo pelo qual acho que a ordem do cosmos aponta (embora não prove) a existência de Deus. O motivo é um argumento que sempre me pareceu meio fraco, mas que hoje reconsidero. Sim, o universo necessariamente tem ordem. Mas isso não nos diz qual ordem, ou melhor, qual o nível de ordem, ele de fato tem. A sopa entrópica final à qual nosso universo se dirige terá uma ordem, mas comparada com a realidade de hoje em dia mais se assemelha ao puro caos. A ordem de nosso universo não precisava ser tal como ela é, e incluir coisas como a vida, muito menos a vida humana (negar isso é afirmar que a matéria produz a vida humana necessariamente – o que já é, na minha opinião, uma teologia). Aliás, chama a atenção a improbabilidade da vida humana, que é algo substancialmente superior a tudo o mais que existe no universo (não quer conceder a superioridade? Tudo bem, conceda pelo menos a peculiaridade: de todos os seres do universo, o único que pensa sobre os demais é o homem).

E há algo que fere nosso senso de justiça (no sentido menos usual do justo como aquilo que “encaixa perfeitamente”, que faz sentido e está no lugar certo) mais profundo em se dizer que um universo tal como o nosso, que permite nossa existência, seja um fruto do acaso sem finalidade. Apesar da imensa improbabilidade de estarmos aqui, aqui estamos. Claro que esse senso não prova nada, e por isso o argumento não demonstra a existência de Deus. Mas, se concedermos que nossa mente e nossos modos de pensar não são completamente alheios à realidade das coisas, ele ao menos a indica.

22 comentários em “A ordem do universo prova a existência de Deus?

  1. Interessante, você ensaiou o argumento aristotélico-tomista que já vi por exemplo, em Edward Feser, a quinta via, o argumento teleológico.

    Outro interessante é o argumento Kalam (que é um teólogo islâmico) é bem forte para inferir a existência de Deus, como que com o universo foi criado a matéria, quem criou o universo tem de ser imaterial, como que com o universo se criou o tempo, a causa tem de ser atemporal etc.. tudo isso são características do Deus cristão (Seria fácil ter a noção dos gregos, de que deuses são apenas super-homens que existem dentro do universo e deixar ateus felizes com seu materialismo, e afirmar o universo eterno, deixando gregos felizes).

  2. É verdade. Podemos especular sobre a existência de Deus com base na ordem do Universo, mas não há prova de tal existência. Não sei por que os filósofos gastaram tanta tinta com esse assunto. Além disso, mesmo que houvesse razão para aceitar as provas propostas pelos filósofos, ainda não estaria provada a existência do Deus bíblico, que ordena massacres.

  3. Um típico exemplo de wishful thinking. Se levarmos em conta que o tempo é infinito e que, portanto, houveram infinitas oportunidades de arranjo entre as partículas da matéria, é perfeitamente possível pensar que a existência atual do Universo é fruto do mero acaso. Sem mencionar que não é um consenso que a vida humana seja a grande maravilha da criação. Qualquer estudante segundanista de medicina poderia redesenhá-lo melhor do que é.

  4. Com relação ao mencionado pelo colega Marco Aurélio Antunes, o Deus bíblico que ordena massacres deve ser entendido dentro da concepção daquela época (em que os textos foram escritos). Precisavam regular a sociedade e a vida em família com base em uma autoridade suprema, daí um Deus superpoderoso e vingativo, benévolo com quem segue suas leis. No mais, a existência de argumentos “a favor” de Deus segue outro raciocínio: o filosófico.

  5. Tadeo,

    E não há problema em se supor que o tempo é infinito para trás? Isto é, que não teve um início?

    Pois se ele não teve início, então para que se chegasse o dia de hoje seria preciso que se transcorresse um número infinito de períodos t iguais. Só que o tempo necessário para se transcorrer um número infinito de períodos iguais é infinito. E um tempo infinito, por definição, nunca pode ter sido transcorrido. E portanto jamais chegaríamos no presente, pois seria preciso que uma infinidade tivesse sido transcorrida a partir da origem para que se chegasse até nós (e por “presente” entenda-se qualquer momento de sua escolha). Portanto, parece haver um problema com a ideia de que o tempo é infinito “para trás”.

    Quanto aos estudantes segundanistas, não basta afirmar; tem que mostrar. E dado que ainda somos incapazes de fazer sequer uma mão sintética que funcione tão bem quanto a real, tenho ampla convicção de que sua afirmação é falsa.

  6. Sou estudante quartanista de Engenharia Elétrica.

    Assino embaixo do Joel. Na minha opinião redesenhar o ser humano em laboratórios de engenharia genética só pode conduzir a resultados catastróficos como previsto em Blade Runner ou Admirável mundo novo.

    Já criar um novo homem nem se fala. Já estamos com problemas suficientes com esses computadores e robôs que inventamos…

    Abraços!

  7. Eu acho que não entenderam meu ponto quanto à suposta perfeição do corpo humano. O que eu quis dizer é que qualquer observador mais atento, ou mais gabaritado, pode perceber que ele está muito longe de ser perfeito. O próprio cérebro humano, que muitos já disseram ser o aparato mais complexo do Universo, vive “dando pau”, sem mencionar a fragilidade extrema do conjunto. Em nenhum momento propus que realmente se construísse um novo corpo humano, como num filme de ficção científica.

  8. Tadeo,

    Ninguém defendeu que o ser humano é perfeito (pelo menos não nesta página), porque isso realmente não é verdade. O ser humano se destaca do restante da criação porque é um ser criativo, e por isso pode superar suas limitações biológicas montando ferramentas, construindo abrigos, curando doenças, etc. Ou seja, ele participa ativamente da criação.

    Por redesenhar eu entendi reescrever ou recriar um ser humano com “atributos” (RPG feelings) mais desenvolvidos: força física, resistência a doenças, velocidade, regeneração completa, longevidade, inteligência, etc.

    Na visão cristã, perfeito é só Deus, e o homem é um ser imperfeito que busca ou anseia a perfeição.

    Abraços!

  9. Tadeo, tenho a impressão que realmente o cérebro humano é algo notável. Não temos ideia de como funciona vários de seus mecanismos, por exemplo, como reconhecemos padrões.

    A técnica atual está tremendamente longe da capacidade humana.

    É evidente que talvez fosse melhor que isso ou aquilo fosse diferente, vá lá. Mas não deixa de ser que o ser humano, particularmente seu cérebro, sejam provavelmente a estrutura mais organizada do Universo – não afirmei, mas provavelmente é.

    Abraços.

  10. Essa ideia de um passado infinito me faz lembrar do Paradoxo de Aquiles do Zenão, e creio que se o Paradoxo não fosse um paradoxo, a sua situação poderia ser exatamente esta: Aquiles partiria de um passado infinito pra nunca alcançar a tartaruga.

    E Joel, seria o seu texto uma mistura de fine tuning com o argumento da contingência da existência (que fala sobre o fato das coisas existirem ao invés de não existirem)?

  11. São parecidos mesmo, Leonardo! Só que no Paradoxo de Aquiles e a Tartaruga tem-se o problema de se transcorrer uma distância finita mas dividida em infinitas partes. Esse problema de como uma soma com infinitas parcelas positivas pode dar um resultado finito foi resolvido pela matemática (são as séries convergentes), embora ainda não seja trivial resolver o paradoxo em si com esse conhecimento em mãos. Já o problema do tempo sem início é o de transcorrer uma distância (ou melhor, um tempo) em si mesma infinita.

    É, o argumento que dou na parte final do texto é sim um de fine-tuning: a probabilidade de existir o homem é baixíssima. No entanto, aqui estamos. Isso não prova nada; mas certamente faz pensar. O da contingência da existência eu já considero uma prova mais sólida.

  12. “Bendiga ao Senhor a minha alma! Ó Senhor, meu Deus, tu és tão grandioso! Estás vestido de majestade e esplendor!

    Envolto de luz como numa veste, ele estende os céus como uma tenda,

    e põe sobre as águas dos céus as vigas dos seus aposentos. Faz das nuvens a sua carruagem e cavalga nas asas do vento.

    Faz dos ventos seus mensageiros e dos clarões reluzentes seus servos.

    Ele firmou a terra sobre os seus fundamentos para que jamais se abale;

    com as torrentes do abismo a cobriste, como se fossem uma veste; as águas subiram acima dos montes.

    Diante das tuas ameaças as águas fugiram, puseram-se em fuga ao som do teu trovão;

    subiram pelos montes e escorreram pelos vales, para os lugares que tu lhes designaste.

    Estabeleceste um limite que não podem ultrapassar; jamais tornarão a cobrir a terra.

    Fazes jorrar as nascentes nos vales e correrem as águas entre os montes;

    delas bebem todos os animais selvagens, e os jumentos selvagens saciam a sua sede.

    As aves do céu fazem ninho junto às águas e entre os galhos põem-se a cantar.

    Dos seus aposentos celestes ele rega os montes; sacia-se a terra com o fruto das tuas obras!

    É ele que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva, para da terra tirar o alimento:

    o vinho, que alegra o coração do homem; o azeite, que faz brilhar o rosto, e o pão que sustenta o seu vigor.

    As árvores do Senhor são bem regadas, os cedros do Líbano que ele plantou;

    nelas os pássaros fazem ninho, e nos pinheiros a cegonha tem o seu lar.

    Os montes elevados pertencem aos bodes selvagens, e os penhascos são um refúgio para os coelhos.

    Ele fez a lua para marcar estações; o sol sabe quando deve se pôr.

    Trazes trevas, e cai a noite, quando os animais da floresta vagueiam.

    Os leões rugem à procura da presa, buscando de Deus o alimento,

    mas ao nascer do sol eles se vão e voltam a deitar-se em suas tocas.

    Então o homem sai para o seu trabalho, para o seu labor até o entardecer.

    Quantas são as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A terra está cheia de seres que criaste.

    Eis o mar, imenso e vasto. Nele vivem inúmeras criaturas, seres vivos, pequenos e grandes.

    Nele passam os navios, e também o Leviatã, que formaste para com ele brincar.

    Todos eles esperam em ti para que lhes dês o alimento no tempo certo;

    tu lhes dás, e eles o recolhem, abres a tua mão, e saciam-se de coisas boas.

    Quando escondes o rosto, entram em pânico; quando lhes retiras o fôlego, morrem e voltam ao pó.

    Quando sopras o teu fôlego, eles são criados, e renovas a face da terra.

    Perdure para sempre a glória do Senhor! Alegre-se o Senhor em seus feitos!

    Ele olha para a terra, e ela treme, toca os montes, e eles fumegam.

    Cantarei ao Senhor toda a minha vida; louvarei ao meu Deus enquanto eu viver.

    Seja-lhe agradável a minha meditação, pois no Senhor tenho alegria.

    Sejam os pecadores eliminados da terra e deixem de existir os ímpios. Bendiga ao Senhor a minha alma! Aleluia!”

    Salmo 104

  13. Nenhum argumento racional pode provar a existência de determinado deus ( nem do Deus cristão, no qual creio) simplesmente porque a razão não pode alcançar o transcendente. Demonstrar a necessidade de um criador do universo é fácil; determinar sua identidade por dedução é impossível. Assim como nunca poderemos saber a identidade do pintor de uma determinada obra se ele não assinar seu nome (porque o pintor transcende à tela), assim nunca poderíamos identificar Deus se Ele não se revelasse a nós. Daí a importância da Revelação.

  14. Como apontado no post e no thread, ainda que admitida, a noção de ordem não pressupõe a de criação – e por tabela tampouco a de Criador.

    Admitir essa noção – é fácil lembrar – não implica de resto fazê-lo em perspectiva judeu-cristã; e mesmo nessa perspectiva não implica aliás admitir a de início temporal do universo.

    Concordo porém: a ordem que observamos ou queremos observar nas coisas corresponde defensavelmente a algo que podemos associar no conhecimento a um “senso de justiça” – justiça que na cosmologia antiga e medieval manifestava-se dinamicamente, e quando associada à noção de Criador implicava também todo um trabalho de mediação a partir d´Ele.

    Ou seja, antes de remeter diretamente ao Criador a ordem visível observada, nessa “episteme” antiga e medieval o sujeito que refletia sobre essas questões pensava na relação existente entre a ordem visível e a invisível. Santo Tomás, vg, recorre com frequência a Dionísio Areopagita e a suas hierarquias de executores (invisíveis) da vondade do Criador (vg novamente ST, I, 103, art. 8).

    É um recurso vedado “a priori” em nossa episteme, o que talvez dificulte um pouco o exame da questão “ordem x não ordem / Criador”. Por outro lado, se não invalidar o mesmo exame, essa exclusão “a priori” pode muito bem fazê-lo correr por outras vias; e nós não somos os únicos na história a trabalhar com base em indicações (para referir-me ao final do post do Joel Sampaio).

  15. Sobre o comment 16, alguém poderia objetar que mesmo São Paulo, no famoso primeiro capítulo da Carta aos Romanos, opera com a noção de que a inteligência vê o que os olhos não veem, ok, mas a partir do visível (Rm 1,20). A esse invisível aberto à “inteligência do coração” e àquela da mente só temos acesso de qualquer maneira (ou em circunstâncias normais) pelo visível.

    Sucede que, epistemicamente, para São Paulo como para qualquer romano pagão de seu tempo, estudioso ou não dos filósofos, de saída a natureza visível é subordinada ou inscrita em determinada ordem finalística.

    Famosamente, Aristóteles por exemplo pensa a natureza visível como forma intrínseca ao ente natural – mas divide com Platão e até com o homem da rua do período helenístico a noção de que a) “physis” não é um princípio absoluto, e b) nela se verifica uma dinâmica orientada por uma finalidade “justa”.

    O que fazem os filósofos cristãos é operar um deslocamento desse pólo finalístico, bem claro no diálogo Santo Tomás/Aristóteles: muito “grosso modo”, para o Aquinate, há um plano superior ao dos processos de geração e de suas dinâmicas (nas quais percebemos com a inteligência causas invisíveis); e este plano superior é o da Providência.

    De certa maneira, nossa episteme lembra mais aquilo que teorizaram os naturalistas pré-socráticos, sobre uma physis que no limite é irracional e é também a causa última de tudo. As leituras nietzscheanas dos pré-socráticos são esclarecedoras a esse respeito.

    Uma natureza que do ponto de vista humano ficaria fechada ao invisível de que é ícone (para os cristãos) e com o qual pode guardar uma relação causal (mesmo que ontologicamente fechada, como vg para Aristóteles). Sujeita, porém, ao acaso e à vontade – mas essa é outra discussão.

  16. GRACAS EU DOU A DEUS POR CRER NELE,AS COISAS DE DEUS PARECE LOUCURA PARA O HOMEM NATURAL,ISSO ESTA ESCRITO NA BIBLIA.LEIAM A BIBLIA.

  17. É por causa desse princípio de dúvida que não me tornei ateu mas também sou ferrenho crítico da religião cristã. O homem não chegou no pico da montanha do conhecimento e ainda está longe disso, vai que pelo caminho ele não encontra algo que nos tire as dúvidas. Por outro lado é impossível aceitar a imposição de dogmas manipuladores e contraditórios em nome da divindade.

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