A pureza do desespero

Todos sabem que eu acredito que Clint Eastwood é o maior diretor vivo. Escrevi isso uma vez neste blog e alguns acharam minha afirmação um tanto impensada. Talvez sim, talvez não – confesso a vocês que não há uma linha minha que não tenha sido minimamente pensada. Portanto, quando vi Gran Torino, o novo filme dirigido e interpretado por Eastwood (lançado três meses depois do admirável A Troca), achei que tinha cometido algum equívoco.

O motivo foi simples: saí profundamente acabrunhado do cinema depois de tê-lo visto. A minha consorte perguntou o que eu achara e somente respondi que tinha de dar um prazo de dois anos para revê-lo e então decidir qual era a minha opinião definitiva.

Minha tristeza se devia ao fato do filme não apresentar nenhuma catarse emocional – aliás, característica marcante dos últimos filmes de Eastwood, de Bird, passando por Um Mundo Perfeito, até Menina de Ouro. Exceto por Unforgiven, em que a catarse vem por meio do anjo vingador (representado pela figura emblemática do próprio Eastwood, rementendo-nos ao Estranho Sem Nome dos westerns de Sergio Leone), apenas para denunciar o ciclo vicioso da violência, mas não para resolvê-lo, a obra do ex-prefeito de Carmel mostra sempre anti-climaxes, impasses, impotências, desilusões e – sobretudo – renúncias que culminam na auto-destruição. Como fã de carteirinha do homem, já deveria estar acostumado. Mas não fiquei. Talvez pelo fato do filme ser uma espécie de elegia a uma persona que Eastwood construiu na sua carreira, talvez porque tudo indica – afinal, o homem que masca arame farpado tem 78 anos de idade – que falta pouco para seu definitivo adeus, Gran Torino me deixou com um sabor amargo na boca.

Nada disso faz sentido se o leitor não tiver visto o filme e, por isso, saber o final surpreendente que nocauteia o espectador na sua meia hora final. Logo, se você NÃO viu o filme, PARE AGORA PARA NÃO RECLAMAR DEPOIS.

Esta amargura surge não só do final, mas também da história como um todo, aparentemente esquemática. Eastwood interpreta Walt Kowalski, veterano da Guerra da Coréia, ex-funcionário da Ford, recém-viúvo, sozinho em sua casa em Detroit, cercado de chineses, coreanos e negros. Sua insatisfação com o mundo e, em especial, com a própria família – que, por sua vez, não consegue se comunicar com ele, em um abismo geracional que só é cômico porque não há mais lágrimas para chorar – revela-se numa rabugice ímpar, em um mau-humor e em um aparente racismo contra seus vizinhos que não deixa pedra sobre pedra.

Walt tem como objeto de estimação um Gran Torino 1972 em que ele próprio ajudou a colocar o eixo de direção. Quando o filme começa, estamos no funeral de sua esposa – e a família (especialmente a neta, toda modernete e cheia de piercings) só pensa no que vai ser feito com a casa, a poltrona bacana e, claro, o Gran Torino. Na casa ao lado, mora uma família aparentemente chinesa ou coreana (descobriremos depois que vieram de Laos; são vietnamitas que lutaram ao lado dos EUA): uma mãe viúva, uma senhora já idosa e dois adolescentes, Sue e Thao. Este último, numa espécie de rito de iniciação para entrar numa gangue formada por seus primos, é pego no flagrante por Walt no momento em que tentava roubar o Gran Torino.

Thao é um sujeito tão excluído quanto Walt, um estranho no ninho. Se Walt não consegue se comunicar com a própria família, Thao é visto pelos parentes mais velhos como um menino que não tem condições de virar um homem. Ele envolve-se com a gangue não porque é o seu desejo, mas sim porque não há mais nenhuma alternativa.

Ao impedir o roubo de seu carro, Walt aparece como essa alternativa. Apesar de sua rabugice e de seus apelidos politicamente incorretos em relação a Thao (o mais leve deles é chamá-lo de “Toad” – sapo), o americano veterano e o jovem imigrante desenvolvem uma relação de amizade e de confiança.

Paralelamente a isso, há a história de Walt com um padre, que, ao tentar realizar o último desejo da falecida sra. Kowalski, quer convencer o grumpy old man a fazer uma confissão sacramental. Walt despreza o padre não por ser um clérigo, mas sim porque ele é “um virgem de 27 anos” – ou seja, por causa de sua juventude. Walt acredita que a nova geração não sabe nada sobre a vida – e que este jovem padre não sabe nada sobre a vida e sobre a morte. Mas o pároco é persistente e tenta várias vezes convencer Walt a realizar o que sua esposa queria que fizesse.

A relação entre Walt e Thao se aprofunda e se torna próxima a de um mestre com seu discípulo. O velho ensina ao jovem como se comportar dentro do ambiente macho dos EUA, dá conselhos sobre confiança e honestidade; ao mesmo tempo, Walt também se afeiçoa pela irmã de Thao, Sue, muito mais adaptada ao ambiente americano.

A gangue continua a provocar Thao e, depois de sua iniciação fracassada, resolve vingar-se queimando um cigarro em sua bochecha. Ao saber disso, Walt contra-ataca no melhor estilo “soldado da Primeira Cavalaria”: batendo em um dos marginais e avisando-o para não fazer importunar os seus amigos novamente.

Conseqüentemente, a casa de Thao e Sue é atacada com uma rajada de metralhadoras – e, como se não bastasse, Sue é espancada e estuprada. Amargurado e com um intenso sentimento de culpa, Walt decide revidar – mas não do modo como Thao espera, através da vingança pura e simples. Walt apronta um terno sob medida, faz cabelo e barba no barbeiro do bairro, corta a grama da sua casa e – finalmente – realiza a confissão que sua falecida esposa tanto queria. Ao fazer isso, confessa ao jovem padre (que intui que pode haver um derramamento de sangue naquele mesmo dia) que nunca se afeiçoou à sua família, em especial aos filhos. De volta à casa, encontra Thao, sedento de vingança. Pede ao rapaz buscar uma medalha de honra que ganhou por bravura na Coréia, mas o engana, prendendo-o no porão e confessando seu verdadeiro pecado: a morte de um coreano inocente na guerra. “Estou sujo, Thao. Você tem a sua vida inteira pela frente e eu – eu termino as coisas”, diz. À noite, vemos o veterano na frente da casa da gangue, incitando-a a sair. Finge que está armado e, através de um gesto simbólico, aponta para cada um dos marginais e imita que vai atirar. Na hora em que busca o que seria a verdadeira arma, Walt recita o início da Ave Maria, saca o seu isqueiro Zippo e morre metralhado.

Sue e Thao ficam sem saberem o que fazer (junto com o jovem padre) ao verem o corpo do amigo dentro do saco de mortos. A polícia os avisa que há testemunhas e, com o ato dele, Walt levou a gangue para a cadeia. O filme termina como começou: na mesma igreja onde sua mulher foi velada, lá está o caixão de Walt. E, na hora da abertura do testamento, sabemos que o tão desejado Gran Torino foi para as mãos de Thao.

Esta é a história em linhas gerais – e desculpem-me se não consegui contá-la melhor. Na verdade, Gran Torino, o filme, tem duas linhas narrativas – e a confusão de interpretação que surgiu de muitos de seus comentadores mais perspicazes, como Reinaldo Azevedo e Luiz Felipe Pondé, vem do fato de que elas aparentemente se misturam.

A narrativa número 1 é a trama que acabei de contar mal e porcamente, a trama em que identificamos com o que o personagem de Eastwood – Walt Kowalski – quis fazer dentro de suas aparentes intenções.

A narrativa número 2 é a história secreta da película e trata de temas que preocupam o artista e diretor Clint Eastwood e que estão deliberadamene jogadas para que o espectador os perceba e comece a pensar.

Como diretor, Eastwood brinca com o espectador dentro dos moldes de uma simplicidade enganosa. Há clichês, caricaturas, auto-referencias (a homenagem a Dirty Harry é evidente), pistas falsas – mas há também espaço para cenas admiráveis e com aquele humanismo que só Eastwood é capaz de fazer quando retrata um relacionamento. No início parece-se uma comédia; no final, temos uma tragédia.

A narrativa 1 é o que nos impacta na primeira visão. Ela se encaminha para uma catarse, que, segundo Aristóteles, é aquela expiação do público sobre os temas mais comuns e universais do ser humano. Contudo, uma catarse, como bem descobriu René Girard, é também um mecanismo dramático que encobre a verdadeira violência para que a sociedade continue a sua existência – enfim, para que ela dê a impressão que tudo voltou à sua devida (e aparente) ordem.

Mas o que seria a verdadeira violência em um filme que termina com seu personagem principal metralhado por uma gangue de imigrantes?

Aqui entramos em território espinhoso. A primeira reação de alguém que vê Gran Torino, seja um liberal, seja um conservador, seja da esquerda ou da direita, é que Walt Kowalski sacrificou-se por seu amigo. Alguns católicos inclusive – padres que citam a Patrística e scholars que fazem referência ao próprio René Girard, talvez o único pensador que refletiu com propriedade sobre os temas tratados por Eastwood em seus filmes – vêem no personagem uma espécie de figura de Cristo, especialmente porque, quando Walt é metralhado, ele cai na forma de uma cruz, com sangue saindo pelos braços.

Bem, lamento em informá-los, mas não se trata nada disso. O que Walt Kowalski fez não foi um martírio ou um sacrifício. Foi nada mais nada menos do que um ato de desespero calculado.

Este dado inverte toda a perspectiva anterior do filme – e isso não o minimiza nem um pouco. Ao contrário, engrandece-o – e confirma o que já havia escrito anteriormente: o de que o homem que masca arame farpado é, sem dúvida, o maior cineasta vivo. A próxima pergunta a ser feita é: Clint Eastwood, o diretor e artista, pensou nisso conscientemente?

Minha resposta parece ser positiva quando, em primeiro lugar, revemos os filmes do próprio Eastwood. Lembremos de Mystic River e Million Dollar Baby, carregados de iconografia religiosa. Eastwood se auto-declara como anglicano e libertário, mas ambos os filmes lidam com o catolicismo. E trata-o com um misto de respeito e zombaria: tanto Walt como Frankie Dunn tratam mal seus respectivos padres, mas, no final, acabam rendendo-se a eles de alguma forma. O tema do sacríficio está lá, subvertido pela intençao interior do personagem, que, em nenhum momento, o diretor Eastwood julga a respeito, apenas limita-se a narrá-lo. A intenção de um Walt, de um Frankie ou de Jimmy (Sean Penn em Mystic River) é calcada na pureza do desespero. Eles querem fazer o bem, mas sempre realizam o mal.

Escrevi certa vez que Clint Eastwood era o diretor do discernimento moral e da ambiguidade das coisas. Isso se repete em Gran Torino – desta vez, disfarçado pela simplicidade do roteiro. Para o artista, é óbvio que o discernimento moral cabe ao espectador; já a ambiguidade da vida está no próprio conteúdo da obra, indissolúvel de sua forma. Eastwood cumpre as duas funções como o bom aluno que foi de Sergio Leone, Don Siegel, John Ford e Howard Hawks. Em Gran Torino, a narrativa 2 está nos detalhes e nas fissuras da narrativa 1, como, por exemplo, as tosses de Walt (que indicam uma doença incurável), o fato de comer apenas roastbeef e não controlar a quantidade de cervejas, a sua solidão que observamos somente quando está na companhia de sua cadela Daisy ou quando encontra com o barbeiro italiano com quem troca ofensas. Mas as pistas também estão nos diálogos, em especial nas cenas com o jovem padre. Walt afirma que “os homens mais fortes do que eu procuraram pela salvação” (ou seja, ele se vê como um fraco), que “entende mais da morte do que da vida” e, claro, que “está imundo e que sou eu quem termino as coisas”.

Além disso, há o fato de que ele é um recém-viúvo e de que sua família é basicamente composta de otários (reclamam sempre que Eastwood usa e abusa da caricatura, mas quem nunca encontrou pessoas iguais a eles?)

Enfim, Walt é um homem à beira do abismo. Thao aparece como a possibilidade de legar alguma coisa – mesmo sendo estrangeiro, mesmo sendo apenas um garoto.

Seu sacríficio não é uma expiação. É um ato de desespero puro e simples. Reparem como Eastwood filma os acontecimentos anteriores à sua morte: é a despedida de um suicida. Além disso, no momento do sacramento da sua confissão, Walt se arrepende somente de assuntos relativos à família, indicando que está fazendo aquilo pela esposa falecida. Sua verdadeira confissão – e filmada da mesma forma que um confessionário (um primoroso trabalho de Tom Stern) – se dá quando prende Thao no porão e revela que matou um inocente na guerra da Coréia. Na sua cabeça, é culpa sua o que aconteceu com Sue; portanto, a única forma de encobrir a verdadeira violência, que, no fundo, é o fato de se sentir sem nenhuma esperança para reparar os seus erros, é ir de encontro à morte.

No fim, o sacrifício de Walt pode ser uma catarse para a narrativa 1; mas na brecha aberta pelos detalhes da narrativa 2, é anti-catártica, expondo não só o ciclo de violência que existe entre os imigrantes e os americanos, como também explicita a violência do desespero de Walt transformada em aparência de pureza.

Uma pergunta que fica no ar é a seguinte: o que Walt fez não libertou o garoto? Em termos exteriores, a resposta é sim. Mas prestem atenção, no final do filme, na cena do velório de Walt, os olhares da família americana dirigidos aos dois jovens vietnamitas. Não há bondade neles; é um misto de incompreensão e de inveja. Ao fazer o seu tão esperado sacríficio, Walt pode ter libertado exteriormente Thao, mas o condenou, ao dar o seu Gran Torino, a ser mais uma vítima daquela mesma geração.

Portanto, o que seria um filme que, segundo seus comentaristas mais perspicazes, deveria reafirmar os valores da tradição e da América, revela-se como uma obra profundamente pessimista, sombria e triste. Gran Torino não é apenas sobre a morte de uma determinada América, representada na própria persona de Eastwood. É sobre a tragédia da velhice. É sobre o fato de que, quando você ficar velho, o que sobrou são pessoas com quem não tem nenhum parentesco, mas somente uma linha tênue de confiança – e olhe lá.

É claro que Clint Eastwood não deve ter lido René Girard, muito menos Mário Vieira de Mello. Contudo, como sempre acontece nessas coisas da vida espiritual, uma idéia se conecta a outra e não podemos deixar de repararmos em suas ligações. Mas parece-me que o comentário que Gran Torino faz a respeito da América é a confusão entre “liberdade exterior” e “liberdade interior” sobre a qual Vieira de Mello medita em seu O Cidadão. Walt acha que libertou Thao do círculo vicioso da violência, mas, na verdade, apenas aprofundou a sua escravidão interior (e é interessante notar que a sua posição de “crucificado” é filmado no mesmo ângulo da crucificação de São Pedro – ou seja, de ponta-cabeça). A América passa a sua herança para uma geração de imigrantes que sempre terá o olhar vicioso dos nativos como obstáculo. E, enquanto isso, a pureza do desespero faz as suas travessuras, sempre a enganar os homens de boa-fé como Walt Kowalski e outros.

27 comentários em “A pureza do desespero

  1. Acho que é marca do grande filme estar aberto a diferentes interpretações.

    Por isso não tenho muito receio em dar minha opinião, diametralmente oposta, quanto ao significado do filme.

    A ação final de Walt não é movida pelo desespero. Ela é, ao mesmo tempo, duas coisas: em primeiro lugar, um ato de redenção do protagonista. Culpado de matar um inocente, agora morrerá, inocente, nas mãos dos culpados. E é esse ato que, ao mesmo tempo, trará a condenação aos culpados (os membros da gangue) e a libertação dos inocentes (Thao e sua família).

    Em segundo lugar, seguindo aqui a narrativa 2 que você aponta, um questionamento ao comportamento esperado dele. Toda a platéia aguarda ansiosa um desfecho climático, um tiroteio magistral que termine com a morte dos membros da gangue. O próprio Thao quer isso.
    Essa era a lei dos filmes do Eastwood enquanto ator: tanto dos faroestes quanto dos policiais. Tal atitude, ainda que carregue consigo uma boa dose de justiça (e é por isso que é tão satisfatória para a platéia), e seja justificável num ambiente sem leis, tem seus problemas morais.
    Numa sociedade de leis, outra saída é possível, que não passe pela vingança pessoal como forma de estabelecer a justiça.

    Ao quebrar o ciclo de violência, Walt contribui para manter, e quem sabe reconstruir, a sociedade que ele via se desmoronar na sua frente. Ver o bandido algemado e preso é menos satisfatório emocionalmente do que vê-lo tomar um tiro na cara, mas, falando sobriamente, é melhor que seja assim. Talvez o que a sociedade precise não de um justiceiro, mas da justiça que vem das leis.

    Thao termina o filme livre; livre dos bruta-montes que o assediavam e da rígida tradição familiar que o levava a estagnação. Os parentes de Walt podem torcer o nariz para ele o quanto quiserem, but there’s no stopping him now.
    Seu futuro depende de sua competência e determinação.

    Thao, no Gran Torino, pronto para enfrentar honestamente a vida, encarna melhor os valores que fizeram os EUA do que a família de Walt, que vive numa rede de enganações, desonestidades, medo de assumir responsabilidades. É uma questão de espírito, e não de raça.

  2. Belíssimo comentário Martim!

    Gostaira de pensar sobre o que diz o Joel: sobre “o quebrar o ciclo de violência, Walt contribui para manter, e quem sabe reconstruir, a sociedade que ele via se desmoronar na sua frente.”

    Colocado pelo Joel, gostaria de refletir sobre apenas uma questão: mas o ciclo não foi inteiramente quebrado, há a gangue que estuprou Sue – (pelo menos fiquei com a impressão de que foram os negro). Se foi a gangue dos negros, eu não estiver enganado, fecha-se um ciclo, mas um ciclo aparente, porque o verdadeiro cíclo é constantemente vicioso.

    Um forte abraço e parabéns pelo site.

  3. Martim,

    Também discordo, mas discordo concordando com alguns aspectos. Coicidência mas nestes últimos tempos tenho pensado em algumas crucifixões de ponta-cabeça, como as fizeram Francis Bacon e em Zurbarán, vide http://francis-bacon.cx/crucifixions/triptych_1965.html e http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/04/Francisco_de_Zurbar%C3%A1n_027.jpg

    E a coincidência se aprofunda se pensarmos no quadro de Zurbarán, que ilustra a visão de São Pedro Nolasco na qual São Pedro apóstolo aparece lhe pedindo o resgate dos cristãos que tinham sido escravizados pelo mouros de então. S. Pedro Nolasco funda uma ordem e trabalha pelo resgate dos cativos. Até aí, seria forçar a barra pensar uma ligação deste episódio da fé com o filme, porém creio que em termos de uma interpretação figural, caberia identificar a vida da igreja com a morte de seu primeiro pontíficie, a crucifixão de ponta-cabeça. Então para mim é claro que o que estará em jogo até o assassinato de Walt no filme é o drama de sua conversão. Pois o drama moral só cessa com o fim da vida, e apesar de ter sido quase um suicídio, na realidade não o foi. Lembremos de quando o padre pergunta se Walt tinha chamado a polícia. Walt diz ter rezado para que ela viesse, o que é absurdo e retrata a meu ver a situação de Walt antes que decidisse ir conversar e conhecer seus vizinhos. É estranho que Walt consiga amar o vizinho próximo e desprezar os parentes distantes, mas creio que esta é a realidade com a qual ele teve de lidar. E no mais, ele tentou falar com o filho depois que fez os exames médicos… O padre é, para mim, a insistência para que ele abandone a violência, mas a violência não o abandonará e nem nos abandona ainda que a abandonemos. Para conversão, em suma, é preciso o ato de um, e se outros não o seguem, é fatal que haja sacrifício ainda hoje. O detalhe é que este sacrifício só pode ser feito por imitação do sacrifício perfeito, e o lugar central (por direito e forma) da imitação de Cristo é a igreja. A genialidade do filme está em não deixar claro nem as causas nem as conseqüências do ato de Walt, fazendo assim o filme imita a vida, que espera no juízo final conhecer a explicação definitiva destas ambiguidades.

  4. Errou feio garoto,

    Um antidepressivo não lhe faria mal

    Grande abraço e melhor sorte na próxima.

    Caro Sr. Agnaldo:

    Antes de me receitar um antidepressivo, que tal o sr. me explicar onde errei?

    Rgs,

    Martim

  5. Caro Martim,
    parabéns pelo post. Mesmo concordando mais com o Prof. Pondé, não nego que a tua interpretação do filme é extremamente inteligente. É para se pensar e refletir… Assistirei novamente e voltarei aqui!

    Um grande abraço,
    Pedro

    PS – O comentário do Sr. Agnaldo é representativo daquilo que Bruno Tolentino na famosa entrevista denunciava: a pessoalização da discussão no Brasil. E o que tem a ver se alguém precisa de anti-depressivos com os argumentos expostos e com a interpretação de uma película? Nada, absolutamente nada. Mas “eles” não conseguem pensar assim.

    Sr. Agnaldo, recomendo a leitura de “Contre Sainte-beuve”, do inerrarável Proust.

    Post PS – Há previsão para o terceiro volume da Revista??

  6. ninguém achou que o rapaz que interpreta o personagem thao é um péssimo ator? e as cenas em que o padre aparece?, aqueles cortes e de repente o padre ali, subindo as escadas em frente à porta da casa de walt ou aparecendo no bar ou em tantos muitos lugares. a forma, que não sei se é providencial, em que o padre aparece é muito, seilá, o padre já não é esse personagem de volume e essas aparições não o tornam menos caricatura — só piora as coisas, mesmo.

    (alguém poderia fazer um comentário mais técnico sobre o filme, boto fé)

    gostei de todas as interpretações acima e, não sei, mas *realmente* ocorre que walt não confessou a morte do coreano inocente ao padre — o que significa que estava, pelo menos para ele, walt, fora de cogitação a idéia de se salvar –, o que me deixa com um pé atrás quanto à interpretação do joel, falta uma explicação melhor disso — falta entender melhor o que foi aquele ato final lá. mas por que o suicídiosacrifício de walt não é uma libertação interior, também, do rapaz thao? ele está livre agora do ciclo de violência que acompanha os hmong, não? ele não criou *efetivamente* uma confiança?, ele não percebeu, ou o filme não sugere, no final das contas, que, pô, agora rola, ainda que a vida seja essa coisa muito difícil às vezes, eu tenho chance de conseguir?

  7. “Seu sacríficio não é uma expiação. É um ato de desespero puro e simples. Reparem como Eastwood filma os acontecimentos anteriores à sua morte: é a despedida de um suicida. Além disso, no momento do sacramento da sua confissão, Walt se arrepende somente de assuntos relativos à família, indicando que está fazendo aquilo pela esposa falecida. Sua verdadeira confissão – e filmada da mesma forma que um confessionário (um primoroso trabalho de Tom Stern) – se dá quando prende Thao no porão e revela que matou um inocente na guerra da Coréia. Na sua cabeça, é culpa sua o que aconteceu com Sue; portanto, a única forma de encobrir a verdadeira violência, que, no fundo, é o fato de se sentir sem nenhuma esperança para reparar os seus erros, é ir de encontro à morte.” 2) Assisti hoje ao filme, excelente. Talvez esteja querendo um motivo para concordar com o MVC, mesmo discordando aqui e ali; mas o fato é que também gostei muito do post e dos comentários, e mais além me parece que sim, que há sustentação na “segunda narrativa” para a maneira como ele assistiu ao filme. Elucidativo o post. Bela sacada, entre outras, essa da maneira como é filmada a “verdadeira confissão.” 3) Da minha parte, ainda assim eu prefiro notar que, mesmo assumindo as grandes linhas da leitura do MVC, continua clara a perspectiva de redenção no filme, ainda mais clara porque amarga, ligando consistentemente o segundo e o primeiro sermões do padre(o primeiro meio “virgem”, aludindo ao bittersweet da morte; o segundo traduzindo uma experiência de aprofundamento que não desmente a singeleza do primeiro). Ou seja, talvez o desespero da personagem de Eastwood exista e reflita pureza, mas simples esse desepero não seria não. 4) Falando de Dostoievski, Pondé observa que nele o “sofrimento psicológico enquanto tal, é revestido de uma certa sacralidade, pois é (…) nessa não-identificação consigo mesmo (em vez de mentir sobre isso), que encontramos o sentido construtivo da travessia.” Combinado ao desesperador movimento de enceradeira de uma autonomia que tromba com a não-identificação do sujeito consigo próprio, há um incontornável tropismo para Deus, e portanto uma possibilidade de expiação. Com o devido desconto pela banalidade, sacrificar é tornar sagrado. Se me lembro bem, as últimas palavras de Walt incluem o começo da Ave Maria e seu último gesto é reach for a light. 5) Enfim: grande filme.

  8. É verdade, João, a confissão dele ao padre é enigmática. Ainda assim, encaro a decisão final dele de enfrentar desarmado a gangue como o ato de redenção que contrabalanceia os pecados da guerra. A violência é redimida pelo ato de não-agressão.

    Acho que o fato dele rezar também enfraquece a interpretação dele como desesperado (sem esperança). Quem não tem esperança nenhuma, reza, pede perdão e ajuda?

    Mas por que confessar o pecado a Thao e não ao padre? Acho essa uma boa questão.

  9. Po Martim! – agora você me deu um nó. Tava certo de que o Clint tinha morrido por sacrifício, aí vc veio com o lance do desespero, amargura e suicídio com roupagem-fake-cristã. Porra, vou ter que ver de novo, e de novo e de novo. Parabéns pelo Grande artigo e um abraço do seu amigo Pretzel.

  10. Boa noite Sr. Martim,

    Perdão pela demora em responder (compromissos profissionais).

    Em primeiro lugar não tive a intenção de ofendê-lo com a “prescrição” de antidepressivo, aquilo foi, tão somente, uma provocação, no melhor sentido do termo. Se dei outra impressão peço-lhe minhas mais sinceras desculpas.

    Pois bem então vamos lá: “que tal o sr. me explicar onde errei?”

    Acredito, Sr. Martim, que a segunda narrativa a qual o sr. faz alusão sequer exista, pelo menos nos termos em que o sr. a trata. Acredito que não faz sentido o diretor ter se utilizado de tal profussão de símbolos Cristãos (Católicos), sem que realmente tivesse em mente, transmitir a idéia de que houve, sim, um sacrifício nos moldes do sacrifício Cristão.

    Também não consigo concordar com a expressão “desespero calculado”, pessoas desesperadas (com a possível excessão de doentes mentais), não conseguem agir com tanta frieza.

    Não acretito, portanto, que Walt tenha se suicidado. O suicídio é um ato de desespero puro e simples, provoca, evidentemente, efeitos colaterais, mais nunca são planejados com o intúito de ajudar alguém, é algo, absolutamente, autocentrado.

    Se o Sr. tiver razão, e eu acho que não tem, o filme se transforma numa peça de ironia e sarcasmo sem par (pelo menos que eu tenha conhecimento).

    Um grande abraço e, uma vez mais, desculpe pelo mal-entendido.

    Agnaldo.

    PS:Sr. Pedro, quem seriam “eles”? Eu sou eu, Agnaldo, um “Indivíduo”, aliás, como o senhor. Não exatamente como o senhor, evidentemente, mas tão indivíduo quanto o senhor.

    PS2: Obrigado pela dica de leitura “Contre Sainte-Beuve”, do “inerrarável” Proust. Mas eu ainda estou tentendo entender o Northrop Frye.

    De qualquer forma um abraço.

    Agnaldo.

  11. O ato final parece mesmo o sacrifício de um materialista durão. E o estoicismo puro, no fundo no fundo, não deixa de ser a versão humanista do desespero.

    “Quem quiser salvar sua vida, a perderá. Quem perdê-la por causa de Mim e do Evangelho, a salvará”. Sem o “por causa de Mim e do Evangelho”, o negócio fica um pouco complicado.

    E, enfim, a “Ave-Maria” pode indicar uma conversão real no último segundo, ou só mesmo um refelexo do pavor final diante da morte iminente. Quem sabe?

  12. Rodrigo,

    Se levarmos em conta “o que fizerdes a cada um desses menores é a mim que o fazeis”, de certa forma Walt perdeu a vida pelo evangelho, uma vez que Thao é um desses menores, a solução de prendê-lo no porão preserva uma vida, era patente que Thao ia sujar as próprias mãos com o gosto amargo da vingança. Isso o Martim esqueceu. Creio que outro elemento não foi considerado no comentário do Martim e no seu comentário: Walt vai resgatar a honra de Sue, não tão somente consertar um erro que cometera. Quanto ao fato de encomendar um paletó e cortar com mais apuro o cabelo, bem, aí vocês passam a ter razão, ele estava certo que ia morrer e poderia não ter acendido o cigarro da forma como quis acendê-lo.

    (O debate aqui se aproxima da famosa querela da salvação ou pelas obras ou pela fé.)

    Quanto à catarse, bem, antes de ler o que o Martim escreveu eu estava certo de que havia uma catarse expressa no gesto de alguém que deu a vida por outra pessoa. Mas confesso que a leitura do Martim não é só possível como faz sentido. O que não me parece verdade é que o lance final de um certo desespero calculado apague o que Walt tinha vivido até ali com os humong ou com o padre.

  13. O homem se deixou matar para ajudar alguém, por uma causa.

    Não foi, de forma nenhuma um ato de desespero. Toda a ação pensada dele e a serenidade com que procede parecem descartar a possibilidade do ato desesperado. Por que prender Thao na casa dele? Porque ele visava exatamente ajudar o garoto; deixar-se macular pelo assassinato destruiria sua alma, como havia ocorrido com o próprio Walt.

    Sua vida amarga e solitária fora de certa forma conseqüência de seus pecados, e agora, finalmente, ao conseguir sair dessa prisão de ressentimento e vazio (pela ajuda de Thao, do padre, da menina), ele se torna capaz de ajudar o menino de forma a salvá-lo e evitar que ele faça as mesmas escolhas erradas.

    Se ele quisesse morrer, se fosse apenas um desesperado, poderia ter se matado no próprio quarto. Poderia sair num último ato de destruição e fúria contra a gangue, atirando para todos os lados. Não fez assim. Aceitou a própria morte, mas este não era sua finalidade; era uma conseqüência da ação que salvaria outra pessoa.

  14. Catholic Comments:

    “Whatever stage of life you’re in, when you sense the devil up in your face, threatening your eternal salvation, just borrow a line from Walt Kowalski: ´Get off my lawn!´”

    http://www.catholiccomments.com/?p=188

    New York Times:

    “Made in the 1960s and ’70s, the Gran Torino was never a great symbol of American automotive might, which makes Walt’s love for the car more poignant. It was made by an industry that now barely makes cars, in a city that hardly works, in a country that too often has felt recently as if it can’t do anything right anymore except, every so often, make a movie like this one.”
    http://movies.nytimes.com/2008/12/12/movies/12tori.html

  15. Boa noite,

    Desta vez o pedido de desculpas e para todos e para a língua portuguesa também…

    É exceção e não excessão.

    Agnaldo.

  16. Pingback: ‘Gran Torino’ e a Civilização Que o Vento Levou - Cinema

  17. O auto-sacrifício de Clint Eastwood é uma tentativa desesperada de expiar seus pecados pela chacina que promoveu em Unforgiven e pelo assassínio consentido da boxeadora

  18. Encontrei hoje na rede uma adorável frase atribuída a Clint Eastwood, bem ao estilo Walt Kolakovisky:

    “Michael Moore e eu temos muito em comum, nós dois apreciamos viver em um país com grande liberdade de expressão. Mas Michael, se você chegar na frente da minha casa com uma câmera, eu irei matar você”

  19. véi, é tão curioso pensar no porquê do ‘kolakovisky’, foi tão free-style. e cola aí a fonte da frase, cara, plz.

  20. Ele ter rezado justo a Ave Maria é algo que não indica desespero: “rogai por nós pecadores agora e na hora de nossa morte”. Ele parece que já sabia que iria morrer e pede que Nossa Senhora rogue por ele.

    Achei bem interessante a visão do Martim, mas estou mais de acordo com a do Joel. E faço a mesma pergunta deste: “Mas por que confessar o pecado a Thao e não ao padre?”

  21. Até onde eu possa ver, o Clint Eastwood tem uma visão de religião menos institucionalizada. Assim, é mais importante, e espiritualmente relevante, se arrepender e pedir perdão à vítima (nesse caso, ao que representa a vítima para ele), ou a alguma pessoa que o conheça de forma mais profunda, do que ao padre no confessionário.

    Note que as conversas do personagem com o padre fora do confessionário são mais profundas e revelam mais da alma dele do que os pecados que ele confessou (que, não obstante, ainda sim tinham sua relevância, ao menos a parte de ter se afastado da família).

  22. Ontem (09/01/2010), finalmente, consegui assistir a esse magistral filme.
    Confesso que minhas impressões batem muito mais com as do Joel Pinheiro (2 de abril de 2009 @ 3:29 pm) do que com as do Martim, a quem considero um excelente articulista.
    E sim, Eastwood é o maior cineasta vivo.

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