A redescoberta da filosofia no Brasil I – Panorama Geral

A Dicta.com começa a publicar uma série de artigos e entrevistas a respeito do tema “A redescoberta da filosofia no Brasil”, feita por um de nossos colaboradores, Felipe Cherubin. Hoje teremos um pequeno panorama histórico de um problema que até agora parece ser insolúvel: temos ou não temos condições de entender o que realmente significa a Filosofia? Somos capazes de pensá-la e, sobretudo, fazê-la como os mestres da tradição? Para Cherubin, este impasse é resolvido com a redescoberta das obras de Mario Ferreira dos Santos e Vicente Ferreira da Silva. (M.V.C.)

Por Felipe Cherubin

A reedição das obras dos filósofos Mário Ferreira dos Santos e Vicente Ferreira da Silva dão novos ares ao estudo da filosofia no país e demonstram que é possível um pensamento original e de alcance universal em terras brasileiras.

Mário Ferreira dos Santos (1907-1968) e Vicente Ferreira da Silva (1916-1963) estão entre os filósofos brasileiros mais importantes do século 20. Foram pensadores independentes que trataram dos mais importantes temas da filosofia com impressionante interdisciplinaridade, dialogando tanto com a tradição quanto com o que havia de mais importante e atual no debate intelectual de seu tempo. A redescoberta de suas obras lança novas bases para a construção de uma cultura mais refinada e autoconsciente, recolocando o Brasil, definitivamente, no cenário global da história da filosofia.

***

Em 1986, o Embaixador Mário Vieira de Mello publicava O Conceito de uma Educação da Cultura, retomando a reflexão de seu livro anterior sobre o tema do esteticismo na formação da cultura brasileira e como a partir daí lançar bases para a criação de um espírito ético no Brasil.

Seguindo o espírito da letra de Vieira de Mello, podemos compreender de que a proposta de transformar a consciência que temos da realidade brasileira, de uma percepção estética para uma percepção ética, nada tem de um empreendimento moralista e tampouco se trata de menosprezar as realizações e experiências brasileiras no campo das artes e do sentimento nacional.

O problema que se coloca é se devemos manter nossa auto complacência ao repetir erros que nos saltam aos olhos ou se não seria a hora de tentarmos uma arrancada, elevando o nível de nossas realizações e da nossa inteligência combinando assim fatores culturais mais sólidos e abrangentes.

A educação é um processo limitado que se encerra onde começa a cultura que nada mais é que o reflexo social do esforço intelectual de cada ser humano de educar os outros e a si mesmo. Educação e cultura são as duas faces de uma mesma moeda chamada pedagogia e não se deve confundida com o que hoje entendemos por ensino, esse rito social intimamente ligado com o mercado de trabalho e com as pressões da empregabilidade e nos discursos recheados por palavras de ordem como “educação para a democracia”.

A questão não é polarizar a discussão entre democracia versus aristocracia ou em educação de elite e educação para as massas, mas sim entre poder versus cultura e reconhecer que a pedagogia deve ter independência em relação a democracia, assim como de qualquer regime político, como bem perceberam Sócrates e Platão quando criticaram os sofistas por exercerem um magistério à revelia da sociedade, abrindo um perigoso espaço para corrompê-lo por distorções da vida democrática e as exigências do poder, na perda a longo prazo da noção exata do que realmente é a educação.

No século 21, países colonizados como o Brasil vêem-se diante do dilema em optar entre o artificialismo de uma cultura cerrada no passado e o funcionalismo de uma cultura desvinculada da tradição. Como equacionar esse desafio? Para um país da dimensão do Brasil recorrer ao mito da brasilidade e das formas mais esdrúxulas de provincianismos apenas produz documentos para etnólogos do futuro e nunca expressões de alta cultura e patrimônios para a humanidade.

Esse comportamento, muitas vezes travestido de falsa inovação e rebeldia resultam, segundo Vieira de Mello, numa emulação que produziu apenas uma caricatura pueril daquilo que de pior herdamos de nossos pais portugueses, o medievalismo mais retrógrado e residual daquela Portugal dos séculos 16 até Pombal, que havia assimilado o lado mais reacionário da Contra Reforma e decretava sua incapacidade em absorver o que de melhor o Renascimento oferecia.

Diferentemente, os espanhóis e depois os países hispano americanos, desenvolviam-se culturalmente de forma mais harmoniosa e integrada ao ponto de surgirem escritores de importância universal como Gárcia Marquez , Borges , Cortázar, Neruda e Vargas Llosa. A cultura espanhola ainda foi capaz de abrigar uma série de filósofos de grande envergadura como Unamuno, Ortega Y Gasset, Julian Marias e Xavier Zubiri.

Dessa forma, não sem razão, com a emancipação política do Brasil, fomos bombardeados pela cultura francesa sem a menor condição de assimilá-la, uma cultura mais modernizada que em terras brasileiras teve efeitos traumáticos e pouco benéficos como mostra Paulo Arantes em seu livro Um Departamento Francês de Ultramar.

Expressões de alta cultura no Brasil, como a filosofia, tornaram-se ao longo de nossa história um enredo mal digerido de tomismo, comtismo, marxismo e desenvolvimentismo. A história da filosofia no Brasil ainda é uma das histórias mais obscuras e a espera de uma sistematização, não obstante os esforços heróicos de contribuições histográficas de Sílvio Romero, dos Padres Leonel Franca e Stanislavs Ladusãns e mais recentemente por Antônio Paim e Jorge Jaime, para citar as principais.

Tratar sobre o tema da Filosofia no Brasil é sempre algo problemático. O primeiro problema que enfrentamos diz respeito ao critério do que é e do que não é filosofia. Como separar o joio do trigo?

Depois, nos perguntamos se a originalidade é o único critério válido ou exige-se também uma profundidade de temas e enorme erudição, ou mesmo, se a chave da questão não estaria na enunciação de um novo problema ou a solução definitiva e racional de problemas clássicos.

Até que ponto a simples exposição de uma filosofia alheia transcende a uma verdadeira criatividade? Como se reconhece um filósofo e como se determina se ele é digno ou não de figurar no rol da história da Filosofia?
Essas são perguntas que precisam ser feitas. A filosofia precisa dialogar com a tradição, ocupar-se dos problemas atuais e lançar bases para um futuro mais consciente. No Brasil, muitos se lançaram a essa tarefa e corroboraram com respostas a velha questão “Quem somos nós?”, fazendo da cultura brasileira mais consciente e preparada para a Grande Conversação, nos termos de Mortimer Adler.

A rigor, a filosofia no Brasil, segundo Jorge Jaime no seu volumoso História da Filosofia no Brasil, começa já na fase colonial com a instituição do governo-geral em 1549 e o desembarque do padre Manuel da Nóbrega com a armada de Tomé de Sousa, dando inicio à missão jesuítica no país e à construção dos alicerces fundamentais que moldariam a sociedade brasileira.

Neste inicio, a contribuição da Companhia de Jesus foi enorme. Os primeiros mestres gramáticos no Brasil foram os padres Blázquez e Anchieta sendo que o Padre Anchieta escreveu o primeiro tratado filosófico no Brasil expondo seu pensamento, hoje infelizmente perdido.

Assim, a fase colonial é marcada pelas influências da tradição filosófica e cultural portuguesa e os esforços no sentido de civilizar uma terra virgem e antropofágica. Na fase imperial, a grande influência será o positivismo de Comte, inspirador da nossa Republica com o lema “Ordem e Progresso”, o surgimento da escola de Recife e a presença de homens do quilate de Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e José Bonifácio. Daí em diante, o Brasil entrou na onda do desenvolvimentismo, tendência ambígua que foi capaz de absorver linhas tão distintas que vão do marxismo ao neoliberalismo.

Portanto, a reedição das obras de dois filósofos brasileiros do século 20, Mario Ferreira dos Santos e Vicente Ferreira da Silva acendem velas nessa penumbra e jogam um material ainda incompreendido daquilo que de melhor realizamos em termos de alta cultura ao longo do século 20.

(Continua amanhã)

Felipe Cherubin é jornalista, formado em Direito e estudou Filosofia na Harvard Extension School.

14 comentários em “A redescoberta da filosofia no Brasil I – Panorama Geral

  1. Sempre é bom lembrar que a redescoberta de Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira da Silva e Mário Vieira de Mello, deve-se ao esforço solitário do Professor Olavo de Carvalho, que há anos vem inisistindo no estudo e na grandeza intelectual desses nomes. Não se deve esquecer aqueles que lutar corajosa e solitariamente para resgatar a intelectualidade brasileira das trevas em que, sorridentemente, mergulhou.

  2. Parabenizo a Dicta pelo tema da série vindoura, e também pela ênfase nesses dois filósofos brasileiros, praticamente desconhecidos dos nossos estudantes de filosofia.
    Mas no domínio desta “redescoberta”, o mérito é, em primeiro lugar, de Olavo de Carvalho, que há anos divulga e comenta (em seus artigos, cursos e podcast) Mário Ferreira dos Santos. Não é mera coincidência que a maioria das reedições deste, seja da mesma editora (É Realizações) da maioria das obras daquele.

  3. Caros Valder e Rodrigo:
    Não se preocupem que o mérito de Olavo de Carvalho será reconhecido na história recente da filosofia brasileira aqui no site da Dicta. Aguardem. Abraços, Martim.

  4. Obrigado, Martim, por nos responder e adiantar tal reconhecimento. Boa sorte a todos que fazem Dicta & Contradicta nesta tão necessária tarefa de nos obrigar a sair do diz-que-me-diz habitual dos pseudo-intelectuais que aqui balbuciam.

  5. “Los críticos patriotas les inventan genios a las literaturas pobres. Nada daña más el gusto que el patriotismo.”

    Nicolás Gómez Dávila

    Espero que não seja o caso. De qualquer maneira, é preciso resgatar aqueles que tem um alcance realmente universal, como no caso de Vicente Ferreira da Silva.

    Parabéns pela iniciativa.

  6. Não tenho erudição e maturidade para julgar mas creio que Vilém Flusser tem também um lugar de destaque no panorama filosófico brasileiro do século XX. Ainda me lembro o impacto que causou em mim e nos meus amigos “A História do Diabo”. Era diferente de tudo aquilo que eu lera até então, finalmente a filosofia falava da vida de forma lúcida e irônica. Qual não foi minha alegria ao descobrir depois o Olavo de Carvalho e, um tempo depois, encontrar no site do Olavo um texto com grandes elogios ao pensador tcheco-brasileiro. Parecia-me que a verdade, como em feixes, convergia do mais profundo dos sebos e esquecimentos nacionais.

  7. Também não é assim. Eu pelo menos não sei como o autor do texto chegou aos três filósofos brasileiros, poderia ter sido por outra via que não o Olavo. O Olavo mesmo, se não me engano, descobriu o Mario Ferreira não solitariamente, mas através de um aluno. E suas obras por anos estiveram acessíveis em sebos, pelo menos os cariocas, onde adquiri boa parte de suas obras. Se fosse eu o autor do texto, por exemplo, seria justa a reclamação, cheguei a vários autores por indicação do Olavo. Fica parecendo que ele tem o copyright do elogio aos três, e a outros autores.

  8. É bom frisar que a grande contribuição de Olavo de Carvalho em relação a estes autores não foi a de tê-los redescoberto, mas de reposicioná-los na hierarquia de importância da alta cultura nacional. Olavo não veio reclamar apenas de que eles foram esquecidos, mas de que foram esquecidos, embora fossem os mais importantes, segundo sua cosmovisão cultural. De um certo modo, Mário Ferreira dos Santos jamais foi de todo esquecido. Era totalmente ignorado na academia e na mídia cultural, porém seus livros estão espalhados por bibliotecas públicas de todo o país e não é difícil imaginar que nas Faculdades de Filosofia dos grotões da nação seu pensamento seja estudado. Miguel Reale e seu Instituto Brasileiro de Filosofia (alternativas à USP) também não o ignoravam completamente, apenas diminuíam sua importância, afirmando que Mário Ferreira era apenas um expositor de Filosofias, que não trouxera nenhuma inovação. Certamente, foi Olavo que veio a colocar Mário Ferreira num patamar muito superior de importância, chegando a afirmar que ele não foi só o maior filósofo brasileiro, mas o maior do século XX em todo o mundo. O mesmo ocorre com Mário Vieira de Melo. Jamais foi totalmente ignorado. Já li um artigo de Antônio Cândido que o cita, sem lhe dar muita importância. Creio que muitos dos estudiosos hoje de Mário Ferreira dos Santos, Mário V. de Melo e Vicente F. da Silva e Vicente F. da Silva talvez pudessem um dia ouvir o nome destes autores, talvez até mesmo tivessem seus livro em mãos, mas só se disporiam a estudá-los a fundo depois que um outro filósofo contemporâneo de prestígio tivesse atestado a alta qualidade dos mesmos. Foi o que Olavo fez.

  9. A apresentação do texto não exagera no vocábulo “importante”? Coisa sem importância, só questão estilística, há coisas mais importantes a se importar. Mas, como é logo no começo, a importância é maior porque é uma primeira impressão, que às vezes é a mais importante, não é?

    Mas nada importante, podem ignorar 😉

  10. Mauro de Sá-Martino, desprovido de luz própria, só veio a compreender algo da filosofia de Mário Ferreira dos Santos após ter lido a minha introdução à “Sabedoria das Leis Eternas” (É-Realizações, 2001). onde pela primeira vez a complexidade da obra imensa desse filósofo foi reduzida a uma ordem inteligível. Ao publicar anos depois suas introduções ao “Tratado de Simbólica” e à “Filosofia Concreta”, Sá-Martino confessou ao editor Edson Manoel de Oliveira Filho que não reconhecera em público o pioneirismo do meu trabalho por medo de perder seu emprego universitário. É irônico que esse sujeito venha não só a posar de pioneiro, mas a parasitar o mérito do próprio Mário, louvando-o por “viver para a filosofia e não da filosofia”, enquanto ele próprio faz exatamente o contrário e até pior, acrescentando ao carreirismo a usurpação. Ele exemplifica às mil maravilhas a “boutade” de Albert Einstein: a fama intelectual consiste, na maior parte dos casos, em saber ocultar as fontes. Não pense, caro Martim Vasques, que a “Dicta&Contradicta” vir um dia a “reconhecer os méritos do Olavo de Carvalho” a desculpará do vexame de ter promovido, antes deles, os falsos méritos de um ususpador tardio.

  11. O quê??? Vocês vão dar alguma atenção ao Olavo?? Olavo deve ser esquecido!! Pouca gente faz tão mal para estepaiz quanto ele. Nem o Lula chega perto.

    A revista vir a “reconhecer os méritos do Olavo de Carvalho” está apenas promovendo “os falsos méritos de um usurpador tardio”. Usurpador, sim, porque se diz “o maior educador do país”. Fala sério…

    Agora vocês perderam pontos comigo… tsc, tsc… E eu nunca vou perdoá-los por isso, viu? Seus bobos, chatos e feios!!

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