A redescoberta da filosofia no Brasil III – Vicente Ferreira da Silva

Por Felipe Cherubin

Vicente Ferreira da Silva nasceu em São Paulo e formou-se em Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, mas nunca exerceu a profissão, tendo-se dedicado inteiramente a vida acadêmica.

Em 1933, aproximou-se do grande matemático italiano Fantappié, então professor em São Paulo. Torna-se logo um dos primeiros leitores dos Principia mathematica de Russel e Whitehead e com a publicação de seu primeiro livro, Elementos de Lógica Matemática torna-se o primeiro a publicar um livro sobre este assunto no país. Com a vinda, em 1942, do lógico Willard Van Orman Quine, da universidade de Harvard, Vicente é convidado para ser seu assistente.

O contato com a filosofia alemã promove uma guinada em seu pensamento, que o aproxima cada vez mais das reflexões existenciais e conscienciológicas que tomam corpo em seu segundo livro, Ensaios Filosóficos (1948). Paralelamente, desenvolveu uma atividade importante que o aproxima da pedagogia filosófica de Ortega y Gasset: o jornalismo.

Em 1949 representa o Brasil no Congresso de Filosofia de Mendonza, ao lado de Eugen Fink, Nicolau Abbagnano,  Delfin Santos, além de exercer o cargo de diretor da divisão de Difusão Cultural da Reitoria da USP e de organizar os Seminários de Filosofia do Museu de Arte Moderna. Ainda neste ano funda, com Miguel Reale e outros intelectuais, o Instituto Brasileiro de Filosofia e, em seguida, a Revista Brasileira de Filosofia.

Seu terceiro livro, Exegese da Ação, sai em 1950, ano em que finaliza um de seus mais importantes trabalhos Dialética das Consciências, onde expressa de modo definitivo sua fenomenologia da existência. Esta obra é apresentada na Faculdade de Filosofia da USP para o concurso de professor, mas sob o vão protesto de intelectuais, Vicente é impedido de concorrer ao cargo com o aviltante pretexto de não possuir diploma de Filosofia. Em 1951 publica Idéias para um novo conceito de homem, em 1953 Teologia e anti-humanismo e em 1954 colabora na organização do primeiro Congresso Internacional de Filosofia realizado no Brasil, nos quais se reúnem Enzo Paci, Julián Marías, Leopoldo Zea; Vicente é escolhido para fazer parte do Conselho Cientifico da coleção Rowohlts Deutsche Enzyklopaedie, ao lado de Mircea Eliade, Romano Guardini, Karl Kerényi, Robert Oppenheimer.

Em 1955, funda em São Paulo, juntamente com sua esposa, a poetiza Dora Ferreira da Silva, e Milton Vargas a revista Diálogo, na qual publica seus ensaios mais importantes sobre Filosofia da arte e religião. Em 1963, morre prematuramente de acidente de automóvel aos 47 anos de idade.

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Rodrigo Petronio, organizador das obras completas do filósofo Vicente Ferreira da Silva, fala a seguir em entrevista exclusiva concedida à Dicta.com, sobre o homem e a obra.

Quem foi Vicente Ferreira da Silva?

Vicente foi muitas pessoas. Ele foi um pensador brasileiro marcado por uma atitude filosófica original. Não estava só preocupado em submeter o texto filosófico a um trabalho técnico ou a uma exegese filosófica, mas também incorporar os conceitos e as obras da filosofia a isso que eu chamo de uma atitude filosófica e a obra dele é um testemunho desta atitude, seja do ponto de vista da lógica matemática, em que ele está mais preocupado com o instrumental do pensamento, seja no período posterior, nos seus estudos ligados a fenomenologia e ao mito.

Como organizador da reedição das obras completas, você a organizou não só no conteúdo por meio de ensaios introdutórios e notas, mas também fisicamente (em 3 Volumes) ressaltando as 3 fases da filosofia de Vicente. Você poderia comentar esse processo de reorganização da obra?

A divisão da obra de Vicente em três fases é quase um consenso entre os especialistas que eu li e conheço no sentido de a identificarem, mas sempre didaticamente. O Antônio Brás Teixeira, que editou uma seleção da obra de Vicente em Portugal, fala dessas três fases; Constança Marcondes César, talvez a maior estudiosa de Vicente, também a sinaliza.

Na primeira fase, dedicada aos estudos da lógica matemática Vicente deixou algumas importantes contribuições, rendendo um elogioso ensaio do lógico brasileiro Newton da Costa e reconhecendo o valor desses estudos. Você poderia comentar essa fase?

O interesse de Vicente pela matemática começou desde a adolescência, mesmo tendo cursado Direito depois; desde o colégio já começou a tomar aulas particulares de matemática e se interessar por Filosofia. Essa primeira incursão dele pela lógica matemática foi um pouco natural e muito precoce; aos 20 anos ele já estava lendo os Principia Mathematica de Russel e Whitehead, ou seja, já estava incorporando um tipo de lógica, a chamada lógica formal, lógica simbólica, logística, isto é, são diversos nomes dados a uma lógica que tenta reestruturar e dar respostas àquilo que a lógica aristotélica não contemplava. Esse pioneirismo do Vicente é muito importante e Newton da Costa fala disso. Há um ensaio, por exemplo, do Euríalo Canabrava sobre o Vicente lógico, e diz que ele também já está esboçando muitas questões da lingüística que só viriam a tona nas décadas de 50 , 60 e 70. É como se ele já estivesse lidando ali com paradigmas ou com limites da linguagem que depois vão se tornar questões mesmo de debate internacional. Para mim, o importante do Vicente lógico, além do pioneirismo, é a maneira prudente que ele lida com lógica, ou seja,  não quer dar um golpe de estado na filosofia, substituindo toda a filosofia e toda a metafísica pela lógica, o que às vezes, em minha opinião, é o caso de Wittgenstein.

Vicente foi assistente do filósofo Willard Van Orman Quine, professor de Harvard, que foi aluno de Rudolph Carnap e A.N Whitehead, enquanto passava uma temporada no Brasil. Além disso, seu livro sobre lógica foi uma espécie de marco.

Sim. O livro Elementos de Lógica Matemática foi o primeiro livro no Brasil que trata de lógica matemática, ou seja, que trata da lógica desde esse ponto de vista novo, que tenta reformular – eu não diria romper – mas operar uma reformulação bem drástica com a lógica clássica. Há ensaios de estudos lógicos do Padre Feijó, Amoroso Costa tem estudos sobre lógica, mas o pioneiro – o primeiro livro de lógica matemática no Brasil – foi do Vicente e é de 1940.

Em sua segunda fase, a fase da filosofia da existência, Vicente foi um precursor do estudo da obra dos fenomenólogos e um interprete original do filósofo alemão Martim Heidegger. No entanto, o estudo de Heidegger lhe rendeu problemas, já que estávamos numa época em que este filósofo era visto com reservas nos meios acadêmicos brasileiros. Como foi isso?

Bom, tem um episódio que vale a pena comentar. Por exemplo, o professor Cruz Costa, que assumiu a cátedra de Filosofia da USP no lugar de Vicente e que foi o responsável pela formação de várias gerações, proibia seus alunos de citar Heidegger em qualquer circunstância em trabalhos acadêmicos. O limite da polarização ideológica chegava nesses termos. O Vicente como um heideggeriano era um pressuposto que já o isolava de alguns círculos, instituições e etc.

Primeiro, Vicente faz uma apologia ao trabalho fenomenológico de Sartre; contudo, depois ele o critica por ter se rendido a uma politização da filosofia de forma gradual, escapando assim do livre pensamento, tornando-se um ideólogo e fazendo de seu pensamento servo de determinados sistemas políticos. Qual foi a relação do Vicente com a filosofia de Sartre?

Há dois ensaios de Vicente sobre Sartre. O primeiro que é muito elogioso e um segundo chamado Sartre: um equivoco filosófico. Nesse segundo ensaio, para o Vicente, Sartre transformou a filosofia da existência numa peça dentro da dialética material histórica, operando o que Marx operou com Hegel. A idéia de autonomia de Vicente é como se a filosofia fosse autotélica: a questão filosófica é a questão investigativa e não pode ser uma plataforma ideológica ou instrumentalizada. Ele foi um crítico ferrenho da razão burguesa instrumental; está a todo o momento tratando do clássico tema filosófico da autenticidade e da inautenticidade.

Na jornada intelectual do Vicente ele transparece ter sido um homem muito audaz, curioso, criativo e sempre perseguindo um caminho próprio, respondendo por seus próprios atos e por meio de suas próprias palavras, e isso ficará muito evidente na terceira fase (a fase mítico-aórgica) – uma fase marcada pela busca do divino, uma admissão da transcendência – ainda que tampouco religiosa no sentido de filiação a alguma das grandes tradições religiosas, marcado por um toque muito pessoal e peculiar.

Esta fase, que é porosa comparada à anterior, é a que mais me toca pela ousadia. É uma fase mais inacabada, em que os ensaios não são tão bem estruturados como o Dialética das Consciências. Todavia, a quantidade de lampejos e de aberturas ali presentes para a questão do pensamento são muitas. Vicente irá trabalhar muito na chave de Heidegger, Max Scheler, Schelling e do poeta Hölderlin: entre as noções do ser e do sagrado, da finitude e da dimensão transcendente. Nesta fase, irá enfatizar cada vez mais o mito, a arte e a poesia. Para ele, o mito não é um ornamento, não é a mitologia dos povos arcaicos propriamente ditos, não é um epos literário, não é um princípio ornamental e nem estético – o mito é um principio de inteligibilidade do mundo, ou seja, uma espécie de raiz de onde brotam todas as representações, é o fundamento ontológico do real de onde brotam todas as configurações. Para Vicente, o mito é o radical, a raiz que uniria todas as perspectivas e cosmovisões, e mesmo a ciência dependeria da Mitologia, pelo menos como o Vicente a compreende.

Por que a preferência de Vicente pelo ensaio como estilo literário para exprimir sua filosofia?

Uma das virtudes do Vicente é que ele é um pensador muito sugestivo, e ele é breve. Nós percebemos uma quantidade muito grande de leituras, mas as conexões que ele estabelece com as leituras não fica evidente em todo encadeamento lógico que haveria para se chegar de A até Z. Há uma tendência para condensar. O próprio gênero do ensaio é um gênero em aberto, um gênero inacabado. Essa é a grande virtude do ensaio – não é exaustivo e também não é um tratado, ou seja, você não vai documentar tudo de existente, não vai expor passo a passo, não é demonstrativo. Acredito que foi essa a razão de sua escolha.

Quais foram os pensadores que mais contribuíram para a formação do Vicente? E quais intelectuais nacionais e internacionais ele manteve contato e amizade?

Vicente dialogou com as filosofias da existência e a fenomenologia, incorporou elementos da história das religiões, da antropologia, arte e literatura. Ele começa com a lógica matemática na linha de Russel e Whitehead, mas a abandona tão logo se embrenha na fenomenologia das consciências seguindo os passos de Husserl, Scheler, Heidegger, Berdiaev, Zubiri e Ortega. Por fim, acolheu ainda contribuições de Schelling, dos mitólogos Bachofen, Kerényi, Eliade, Otto e Frobenius e dos poetas Rilke , Lawrence e Hölderlin. No Brasil, cultivou amizade e diálogo com Eudoro de Souza, Agostinho Silva, Miguel Reale, Hélio Jaguaribe, Vilem Flusser e Guimarães Rosa. Do exterior, ele manteve grande amizade e contato com Gabriel Marcel, Julian Marias, Bagolini, Grassi, entre outros.

Vicente fez parte de um capítulo importante do pensamento brasileiro, que se desenrolava em São Paulo entre as décadas de 40 a 60 do século XX. Qual era o panorama da intelectualidade paulista neste período?

Havia basicamente quatro núcleos. O primeiro gravitava em torno de Miguel Reale e do Instituto Brasileiro de Filosofia, um segundo se concentrou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Rua Maria Antônia, embrião da futura USP. Um terceiro, que foi o grupo de Vicente, e por fim o do filósofo Mário Ferreira dos Santos, trabalhando de forma quase que totalmente independente.

Vicente foi contemporâneo de Mário Ferreira dos Santos. Como você compararia a obra desses dois pensadores?

São dois dos pensadores mais importantes de língua portuguesa no século 20. Em termos de estudos metafísicos e pitagóricos, o Mário é o um dos maiores do mundo, o Vicente talvez seja um dos mais audaciosos e originais, em nível internacional também. As matrizes deles são diferentes, porque o Vicente vem de uma crítica da metafísica enquanto o Mário é um continuador e aprofundador excepcional da Metafísica. O Vicente parte do pressuposto que o pensamento de tipo metafísico está muito preso a raiz aristotélico-tomista, um pensamento de certa forma substancialista. A idéia dele é resgatar nos pré-socráticos, poetas e mitos arcaicos uma nova perspectiva do pensar. Também está o tempo todo dialogando com Kant, Fichte, Hegel, os Românticos, Heidegger e a fenomenologia. O Mário dialoga com uma filosofia muito antiga, que é o pitagorismo, mas que é uma filosofia que estrutura toda a unidade do mundo real, a partir dos matema, a Mathesis Magiste, os arithmoi arkhai, ou seja, os princípios arcanos, que são princípios arquetípicos: leis invariáveis, eternas, universais. O Mário solidifica mais a idéia de uma tradição, de um retorno. Já a fundamentação do Vicente é mais fluida, mais próxima de um Heráclito, por exemplo, do que de um pitagorismo ou da escolástica. Ambos são filósofos no sentido mais profundo da palavra. O Vicente dizia que o pensador é aquele que chega na tradição mas ao mesmo tempo tem que ser uma espécie de colonizador do futuro, está sempre propondo novos conceitos, arriscando mais, no sentido da fluidez, do condensado de idéias e de novas perspectivas.

Rodrigo Petrônio é escritor, editor e professor.

O desenho acima foi criado por Cido Gonçalves, caricaturista, ilustrador e infografista. Iniciou a carreira no jornal Folha de S. Paulo no inicio da década dos anos 90,  passando depois pelas redações do jornal O Estado de S. Paulo e revista Veja. Blog do Cido: ciddogonn.blog.uol.com.br

Felipe Cherubin é jornalista, formado em Direito e estudou Filosofia na Harvard Extension School.

2 comentários em “A redescoberta da filosofia no Brasil III – Vicente Ferreira da Silva

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