A Tetralogia do Poder de Sokurov

Nesta sexta-feira, estreia Fausto. O filme, que foi um dos mais disputados na 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, encerra a “tetralogia do poder” do diretor de A Arca Russa, Aleksander Sokurov – composta por Moloch (1999), Taurus (2001), O Sol (2005) e, finalmente, Fausto (2011), uma interpretação bastante livre da obra de Goethe sobre a lenda do homem que vendeu a alma para o demônio. Moloch mostra um breve período em que Adolf Hitler visitou os alpes da Bavária, acompanhado da amante Eva Braun e de seus comparsas nazistas Goebbels e Bormann. Taurus tem Vladmir Lenin como protagonista, já afastado das decisões do partido e gravemente doente. O Sol acompanha o Imperador japonês Hirohito nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, forçado a reconhecer a derrota em meio a destruição do país. Fausto parece um estranho no ninho porque não retrata nenhum líder político, nenhum período histórico – ele seria um arquétipo do homem que, sedento por poder, compromete a própria alma, a própria moral. Mas a associação é um pouco mais complicada.

Na versão de 1926 do diretor alemão F. W. Murnau (Nosferatu, Aurora), o diabo faz uma aposta com um anjo pela bondade da alma de Fausto, um médico ancião que, seduzido por Mefistófeles (interpretado pelo grande Emil Jannings, de O Anjo Azul), vende a alma para, primeiro, poder curar os que estão morrendo a sua volta, segundo, ser jovem novamente e, terceiro, conquistar uma moça por quem se apaixona. Sua corrupção (que degrada também quem encontra pelo caminho) provaria que o homem é essencialmente mau e faria com que o demônio ganhasse a aposta, mas Fausto acaba se redimindo graças ao sacrifício do amor. Já no filme de Sokurov não há anjo ou pureza a ser corrompida. O demônio, que tem outro nome, é figura conhecida na cidade, coleciona inúmeras almas e tem muitos seguidores. Quem ainda não vendeu a alma, está numa lista de espera que já ultrapassa uma centena. O paraíso, ou a virtude, parece uma opção que nunca existiu. Não há grande diferença, afinal, entre a terra e o inferno.

Outro problema do filme de 2011 é a motivação forçada e simplória de Fausto: Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Oras, o dinheiro e o poder dificilmente são os objetivos principais de qualquer pessoa; são quase que inconscientes ou secundários, atrelados em geral a outros de aparência mais nobre ou bela. Os mais miseráveis desejam uma vida melhor, e não simplesmente dinheiro. No filme de Murnau, Fausto quer deter a cura da praga que assola as pessoas, ele quer salvá-las e receber gratidão, reconhecimento. Há, é claro, uma vaidade disfarçada de boa ação, mas é a intenção dúbia do personagem que faz toda a diferença, que o torna real. Sokurov conseguiu a proeza de retratar Hitler de forma humana, ignorante dos horrores de Auschwitz, sonhando com uma raça pura e com um futuro onde até a morte seria superada; um Lenin doente e arrependido porque seus bens são todos roubados, porque nada fez afinal pelo povo e já não pode mais fazer nada; um Hirohito ciente do preço que fez os japoneses pagarem por sua própria arrogância. Fausto, nesse sentido, é uma regressão: é um tratamento alienígena da sede pelo poder, porque até as atrocidades mais terríveis nascem com uma boa intenção equivocada.

De longe, o melhor filme dos quatro é O Sol. Complexo, humano, provido até de senso se humor (aquilo que não o tem dificilmente pode ser humano), retrata tão bem a alma japonesa que muitos não conseguem compreender – mas está lá, para quem quiser se debruçar sobre ela. Numa das cenas, o imperador japonês é levado de carro até o quartel general dos americanos. No caminho, percebe enfim a destruição do país, a pobreza extrema. Uns três ou quatro homens estão brigando sobre escombros, talvez por causa de comida, mas quando percebem o imperador passando, todos param e se perfilam em respeito. Não há questionamento, por parte do povo, das ações do imperador. O seu fracasso não é tanto pessoal como nacional. Não percebo a mesma grandeza, a mesma percepção nos outros filmes. Moloch não fala sobre os alemães e tampouco Taurus sobre os russos. São obras curiosas porque mostram pessoas de suposto poder já enfraquecidas, às vezes ridicularizadas – como se a busca pelo poder fosse, de fato, inútil e qualquer conquista uma efemeridade. Mas é só. Em O Sol há uma beleza que não existe nos outros filmes.

Fausto, por sua vez, é quase um suplício. Desnecessariamente longo, simplista na intenção do protagonista, sem qualquer redenção ou esperança, começa a ficar interessante na última meia hora e, então, acaba. Sem quase nada que possa ser aproveitado, simplesmente acaba. Também, o que esperar de um filme que começa com o céu e logo corta para o close do pênis de um cadáver? Fausto de Sokurov ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Talvez Mefistófeles tenha feito um pacto com os juízes.

9 comentários em “A Tetralogia do Poder de Sokurov

  1. “Oras, o dinheiro e o poder dificilmente são os objetivos principais de qualquer pessoa”. Huh? A realidade mandou um abraço.

  2. “o que esperar de um filme que começa com o céu e logo corta para o close do pênis de um cadáver?”

    Putz! Não me lembro de ler isso no livro.

    Acho que irei vê-lo assim mesmo, pois sou teimoso.

    A propósito, a adaptação parece ser bem livre, não é?

  3. É bem livre, Doni. É um treco meio (note: MEIO) David Lynch – você joga vários elementos no liqüidificador, bate bem e vira uma gororoba que dá uma azia que só. Milkshake de filé mignon.

  4. Ieda,

    acabo de chegar do cinema após ter deixado a sala antes da meia hora final, porque foi impossível ver (e nem dava pra pagar pra ver, afinal, já tinha pagado.)

    Vim procurar resenhas e só me identifiquei com a sua! Disse logo após sair: “um filme que começa com o pênis de um defunto tem que ter MUITO a dizer”.
    E foi isso.
    abraço!

  5. Primeiro: a filmografia é maravilhosa, para quem não busca apenas cenas bonitas. Veja-se o jogo de luz e sombra e as semelhanças com diversas obras de mestres como Bosch e outros…
    Segundo: o filme em si tem muito do expressionismo alemão. Em minha opinião, em razão da qualidade dos efeitos e equipamentos, aliada aos ângulos, distorções e do senso artístico do diretor, parece até uma evolução da escola expressionista.
    Terceiro e para concluir: vi hoje o filme pela primeira vez e acredito que ele tem algo mais a dizer do que eu simplesmente coloquei aqui ou sequer captei, bem como do que foi escrito nesta página. Gostaria de assistir novamente, em uma tela que não fosse a do meu note.

    Gosto muito de tudo que gira em torno do mito Faustico e já li várias obras. A torrente de idéias, dúvidas e sentimentos tormentosos que seguiu ao filme, já mostra, para mim, que valeu a pena.

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