Agressão e Sensibilidade

Filme: Plano de Fuga (Get the Gringo)

 

Em um longínquo episódio de Os Simpsons, Mel Gibson representava o charmoso ator e diretor de sucesso, pai de família e homem-modelo que tenta refilmar o clássico de 1939 A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith Goes to Washington) de Frank Capra. No episódio, Gibson faz uma exibição-teste do filme na cidade Springfield e, entre os elogios exaltados, dá atenção justamente ao comentário de Homer reclamando da chatice do filme, fazendo com que  obedeça seus conselhos cinematográficos para “consertá-lo” – o resultado, óbvio, é desastroso.

Menciono o episódio para relembrar que houve uma época em que Mel Gibson era considerado não só um galã, mas um arquétipo de herói exemplar, comparável a James Stewart. Hoje, podemos talvez compará-lo a John Wayne, figura atacada por muitos, defendida por outros tantos, e certamente polêmica. Se em O Homem Que Matou Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, filme de 1962 dirigido por John Ford, que com certeza serviu de inspiração para Batman – O Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan), John Wayne sacrifica a própria imagem para beneficiar James Stewart, é impossível saber quem Mel Gibson tem beneficiado, fora os tabloides, com a derrocada de sua persona pública.

Não me entendam mal. Sou fã inveterada dele, tanto como ator como diretor. Acredito que Paixão de Cristo e Apocalypto são filmes dignos de entrar para o cânone ocidental. Mas sempre que um escândalo novo surge (nos últimos anos, foi preso por dirigir embriagado, acusado de antissemitismo, racismo e violência doméstica) fico tentando criar desculpas, pensando que aquilo não foi bem assim, que não era bem verdade e que a mídia não o retrata com justiça. De qualquer forma, são eventos que poderiam ter sido evitados, justamente para não dar material aos detratores. Estou falando, por exemplo, do mais recente escândalo; uma gravação de Gibson gritando furiosamente com um roteirista que não entregou um trabalho prometido. Sobre isso, ele tenta se explicar:

“Talvez você não saiba isso sobre mim, mas eu tenho um probleminha de temperamento”, ele diz rindo do eufemismo. E, mais adiante, “Hey, acabei de ter uma ideia, e se os tabloides gravassem minhas ligações? Mas não façam isso com outros porque pode ser ilegal. Eu que sou especial”. Há aí duas questões: Gibson admite que pode ter um problema, que pode explodir ocasionalmente; mas, ao mesmo tempo, ele é visto e tratado de forma diferente das outras celebridades. Por erros passados, já se cansou de pedir desculpas publicamente, foi defendido pelas colegas Jodie Foster e Whoopi Goldberg, mas nada parece apaziguar o juízo que a mídia em geral passou a ter dele – e que é uma pena porque prejudica a recepção de seu trabalho.

Durante a turnê de divulgação de Sinais (Signs, 2002, de M. Night Shyamalan), Gibson declarou que se afastaria um pouco da carreira de atuação, que só aceitaria papéis que realmente lhe interessassem. Mas, ao retornar, pouca atenção foi dada ao competente O Fim da Escuridão (Edge of Darkness, 2010, dirigido por Martin Campbell, diretor do excelente Casino Royale) ou ao notável Um Novo Despertar (The Beaver, 2011, dirigido por Jodie Foster). Os títulos adotados no Brasil poderiam sinalizar um novo recomeço na carreira, mas não foi bem o que aconteceu. Ridicularizaram O Fim da Escuridão pela trama nuclear supostamente ultrapassada – isso foi antes de Fukushima – e a internet se divertiu com fotos do ator correndo pelas ruas com um fantoche de castor na mão. Poucos deram o devido crédito a suas atuações.

Plano de Fuga (Get The Gringo) é sua mais nova tentativa. Escrito e produzido por Mel Gibson e dirigido por Adrian Grunberg, assistente em Apocalypto e O Fim da Escuridão, Plano de Fuga é um filme de ação com ares de cinema nacional – só que bom. Estão presentes os elementos de um filme brasileiro típico (palavrão, crime, sacanagem, pobreza, gente feia, etc.) mas que funcionam porque são voltados essencialmente ao filme de gênero de qualidade e não aos discursos ideológicos de sempre. Sem falar na presença carismática de um Mel Gibson que não é totalmente inocente, mas que ainda segue algum código de conduta – mesmo sendo um bandido.

O filme começa com uma perseguição de carros; a polícia americana atrás do carro de fuga de dois bandidos vestidos de palhaço que acabaram de roubar milhões de dólares e seguem rumo à fronteira com o México. Um está ferido no banco traseiro, sangrando e deixando algumas notas voarem janela afora; Gibson é quem está no volante. Esta sequência tem um quê de Cowboy Bebop, anime estiloso de Shinichiro Watanabe que mistura elementos de faroeste, ficção científica e filmes de ação em geral; as sirenes, o deserto, as fantasias de palhaço e os caubóis que observam à distância dão um agradável ar de irrealidade animesca, mas não menos cinematográfica. Gibson consegue cruzar a fronteira, mas cai na mão dos policiais mexicanos que ficam felizes em “confiscar” o dinheiro roubado e jogá-lo em uma prisão mexicana de péssima qualidade.

Na prisão (que se assemelha a uma favela, com direito a comércio irregular, residências improvisadas, mulheres e crianças morando no local), ele precisa conhecer quem são os poderosos locais para lentamente descobrir alguma forma de escapar e reaver seu dinheiro – a esta altura já parcialmente gasto com carros e prostitutas. É lá que ele conhece um garoto que o ajudará com seu plano, mas logo acaba envolvido com sua história e a de sua mãe que residem na prisão.

Há, aqui, algumas semelhanças com Drive e também os faroestes de Leone. O personagem de Mel Gibson, como o de Ryan Gosling e também o de Clint Eastwood, não tem nome. Nos créditos, ele é identificado apenas como “driver” – isto é, “motorista”. Além disso, há o elemento em comum do homem supostamente corrupto, um criminoso, um bandido, que parece operar sozinho e apenas por interesse próprio, mas que acaba criando laços afetivos e interferindo na vida daqueles com quem se preocupa ou que simplesmente merecem ser defendidos contra o verdadeiro mal. Seus métodos são igualmente corruptos, mas servem a um propósito moral – salvar inocentes.

Não é só isso que remete aos faroestes. Os personagens secundários, como os dos filmes de Leone, são interessantes, possuem traços e comportamentos marcantes. Há um bom senso de humor pelo filme todo, raramente forçado ou sem graça. E também uma sequência com três caubóis matadores de aluguel que, ao som de música mexicana triunfal, tentam matar o “driver” e acabam ferindo uma série de inocentes pelo caminho, como naquelas cenas em que os bandidos devastam toda uma cidade do Velho Oeste.

O personagem principal (assim como o ator) apanha tanto no decorrer da vida e em sua estadia na prisão que acaba criando uma pele mais grossa, uma armadura para sobreviver à corrupção geral instaurada, mas ainda há um canto vulnerável – e é isto que o torna um herói. Há um certo jogo de dureza e sensibilidade, afeição e agressão, entre os bandidos que são parentes, mas que precisam lucrar, e também entre o “motorista” e dois completos estranhos. Há uma cena muito bonita em que Gibson observa no escuro uma mulher saindo de um cassino (dentro da prisão!). Ela está cansada, frustrada, encosta a cabeça contra uma parede, a luz ilumina seu contorno, e suspira. Gibson, então, parece finalmente tocado por alguma beleza. Ela percebe uma presença, vê que ele está olhando-a e reage agressivamente com um soco. O resultado é cômico, mas também significativo. Em um ambiente opressivo, ou em uma situação perigosa, todos reagem com agressão – e isso explica um pouco da persona de Mel Gibson nos últimos anos.

14 comentários em “Agressão e Sensibilidade

  1. em que planeta apocalypto e paixão de cristo são filmes dignos de nota. Fala sério tive que parar de ler aí. Não consegui continuar…

  2. Mel Gibson é apenas um babaca tremendamente rico e famoso. Talvez um pouquinho talentoso. Mas dizer que ele está apenas reagindo a um “ambiente opressivo” é uma piada. E essa história de falar que Paixão de Cristo e Apocalypto deveriam entrar para o cânone ocidental (!) foi de matar. Provavelmente o pior texto que já li no site da D&C.

  3. A Paixão de Cristo é um dos filmes de terror mais assustadores que já assisti em minha vida. Só perde para O Exorcista.

  4. Tadeo, sei que você quis falar pejorativamente, mas você não está completamente errado.
    Estudei em colégio católico e quando eu tinha uns 9 ou 10 anos, todas as crianças foram reunidas em um salão e, então, os professores descreveram com detalhe todos os sofrimentos de Cristo (de como aquele suporte para os pés, por exemplo, não era uma gentileza, mas uma forma de tornar a morte mais lenta, etc.). Tudo isso foi feito para que a gente compreendesse a dimensão do sacrifício de Cristo. Paixão de Cristo funciona da exata mesma forma. Se você não é cristão, óbvio, o filme não surte nenhum efeito em você, seria como assistir O Albergue. Mas para os cristãos o significado é completamente diferente.

  5. Não sou nenhum cinéfilo e nem me considero em condições de julgar se “A Paixão de Cristo” e “Apocalypto” são ou não dignos de figurar em um “canône ocidental”, mas parece-me óbvio que Gibson é vítima do preconceito do “politicamente correto” e, para mim, fruto de suas posições conservadoras. Não é por seus deslizes morais.

  6. Faltou explicar que o “um roteirista” é ninguém menos que Joe Eszterhas (aqui), o que torna o mico ainda mais lamentável…

    Vi o filme ontem, gostei; e na hora também passou-me a impressão de um “Cidade de Deus” bem feito…algo que os filmes brasileiros poderiam ser tivéssemos aqui “cineastas” que soubessem o que comeram no almoço…

  7. Como já falaram, só porquê o cara tem umas posições consideradas conservadores é que ficam enchendo o saco com as besteiras que ele faz com a vida dele.

    O filme é muito bom, me diverti mais do que com “Os Vingadores”. Esta análise é que está meio capenga ao começar com uma ficha corrida do Mel Gibson, mas prefiro isto ao que temos tido recentemente (^p¬q~p) nestas páginas.

    Para “defender” o Mel Gibson, inspirado por Nelson Rodrigues.:

    Homem só bate na mulher que ama.

    E sim, Paixão de Cristo faz parte do cânone ocidental.

    Abraços,

    Henrique Santos

  8. O conservadorismo cristão de direita agora deu pra bancar a vítima também. Aderiu à modinha. Se sou um babaca, faço cagada, mas sou um cristão conservador, então é óbvio que estão me criticando apenas por minhas posições políticas e religiosas… Tá bom, então.

  9. Meu Deus, Ieda, agora sim você mostrou a que veio. Este seu texto está impecável e beira o brilhantismo. E eu não costumo elogiar. Tente não se achar muito.

  10. Tadeo, esta é a última vez que respondo porque já percebi que você está num plano próprio de argumentação, de forma que fica difícil estabelecer alguma base em comum pra se chegar em algum lugar de fato. Ninguém disse que ele é uma vítima ou um coitado. O que foi dito foi que ele cometeu uma série de erros, pagou por todos eles, pediu desculpas repetidamente por todos eles, e, mesmo assim, ninguém aceita essas reparações – por conta de quem ele é. É diferente, por exemplo, do caso do Chris Brown que espancou a Rihanna e ainda é venerado como um astro (pior ainda: fizeram um apanhado de todas as meninas que disseram, no twitter, que não se importariam em levar porrada do Chris Brown se ele fosse o namorado delas). São crimes parecidos com tratamentos diferentes e é disso que estamos falando.

  11. Ieda,

    Desculpe minha insistência, mas veja meu ponto de vista: durante a divulgação da “Paixão de Cristo”, Mel Gibson fez questão de dizer que estava gravando o filme porque Deus havia dado essa missão para ele. E como ele poderia cumpri-la a contento, se já haviam sido feitas inúmeras versões cinematográficas sobre o mesmo tema? Ora, deixando de lado toda a parte dos ensinamentos de Jesus e focando numa violência gráfica absurda, jamais vista em uma qualquer versão anterior. O resultado é conhecido. Pessoas saindo do cinema às lágrimas, prometendo que, a partir dali, seriam cristãs melhores etc.
    Agora a minha grande dúvida. Como você pode considerar um filme tão assumidamente panfletário uma obra digna de entrar para o cânone ocidental?

  12. A violência gráfica é justamente uma das coisas que torna a obra digna do tal cânone ocidental. Porque nunca o sofrimento de Cristo foi mostrado dessa forma, mas principalmente porque o evento em si foi mesmo violentíssimo. Não se trata meramente de efeito, de levar as pessoas às lágrimas. Com tudo que é sabido sobre as crucificações romanas, foi verdadeiramente terrível e doloroso. Que isso faça as pessoas chorar é apenas natural – mas é uma conseqüência, não um propósito. Outro motivo é a forma com que o Mel Gibson usa os flashbacks, em vez de contar a história de Cristo linearmente, as coisas tem mais peso quando o passado, referente ao ato presente, é mostrado imediatamente (por exemplo, quando Pedro nega conhecer Jesus e, no flashback, Jesus avisa Pedro na Santa Ceia que ele irá negá-lo três vezes antes do dia amanhecer e Pedro parece abismado, como se isso não fosse possível – é nesse momento, depois de negá-lo três vezes, que ele se lembra do que Cristo havia dito e ele se sente, enfim, um desgraçado). Outra coisa: Há um tratamento todo especial dado a Maria. Numa das quedas de Cristo pela via crucis, o Gibson usa o flashback novamente para falar da memória de seu filho quando criança, caindo e sendo amparado por ela. No momento, ela está hesitando em ir até Cristo, por medo, dor, etc., mas ela se lembra de sua função como mãe e vai até Cristo e fala “estou aqui”. Tudo isso, o peso que o filme tem com a violência gráfica, os flashbacks, etc, acabam tratando da figura de Cristo e do próprio cristianismo como nunca havia sido feito antes e é claro que isso toca as pessoas e que diz muito sobre nós. Toda minha educação católica, por mais atribulada que tenha sido, fez sentido com esse filme.

  13. Mais uma coisinha: O filme do Gibson não deixa os ensinamentos de Jesus de lado. É bem evidente, por exemplo, a questão de amar os inimigos. Esse sermão aparece (em flashback) ENQUANTO ele está sendo torturado – isso é levar o ensinamento ao máximo, apresentá-lo em prática.

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