Ainda as Experiências de Quase Morte

Qualquer alteração na sensibilidade humana, qualquer experiência possível que um homem possa ter, é produtível por meio de uma alteração dos neurônios necessários para produzi-la. E mais: depende dessa atividade neurológica para ocorrer. Pode, portanto, ser produzida  naturalmente ou, se ocorrer de estarmos sob o poder de um neurocientista perverso o bastante, artificialmente.

Por isso, o principal ponto de Oliver Sacks no artigo citado pelo Julio não deveria surpreender a ninguém. Sim, quando uma pessoa tem visões, essas visões se produzem nela mediante atividade cerebral. E não poderia ser de outra forma. Sem olho não é possível ver; e sem o aparato neurológico que produz nossa experiência visual também. Alguém esperaria que um indivíduo tivesse visões (um fenômeno sensorial, físico) sem que o aparato neurológico que faz com que ele veja funcionasse?

A questão de se uma visão é sobrenatural ou não passa, a meu ver, por outras considerações. A primeira é se existem motivos naturais para a visão ter ocorrido, isto é, para o cérebro do visionário se comportar do jeito que se comportou. Imagino que, na imensa maioria dos casos, existam. É isso que Sacks mostra ao tratar das NDEs/EQMs : trata-se de um fenômeno normal pelo qual o cérebro passa e que produz experiências desse tipo.

Outra consideração ainda é sobre o conteúdo das visões. Se, ao voltar de uma visão, o visionário tenha adquirido informações impossíveis de terem sido adquiridas de qualquer outra forma, então tem coelho nesse mato! O experimento citado dos médicos da Universidade Federal de Juiz de Fora, nesse sentido, é muito bem bolado: não é apenas algo que o paciente não teria como saber; é algo que ninguém que não tenha poderes mágicos de voo ou que não faça parte da própria equipe que pendurou as imagens no teto poderia ver. Como todo experimento, está aberto a falsificações; espero que não ocorram!

Pessoalmente, não acredito que o resultado confirmará a tese das experiências fora do corpo, que se adéqua mais a uma concepção espírita do que tradicionalmente cristã de alma: uma entidade sutil mas de alguma maneira física, com experiências sensoriais. Houve autores da história do cristianismo que defenderam essa concepção (agora só me ocorre Tertuliano, mas deve haver outros), mas o normal, ao menos no Catolicismo, é a visão mais intelectual da alma, segundo a qual a alma sem corpo não desempenha nenhuma atividade biológica ou sensorial, que dependem necessariamente do corpo. (É por isso, aliás, que se acredita que os bichos não têm vida eterna: cessando a operação de seus corpos, não há nenhuma outra atividade que sua alma desempenhe; ela simplesmente deixa de existir.)

Mas voltando ao tema: se ficar provado que pessoas que passaram por NDEs têm informações impossíveis, então fortalece-se muito a tese de que há mais para nossas almas do que afirma o naturalismo materialista. Mas essa informação tem que ser externamente verificável; ter visto os parentes mortos não prova nada; para quê apelar para o sobrenatural se a memória e a imaginação normais dão conta do recado? E a verificação tem que ser rigorosa: ter visto o pai rezando usando uma roupa habitual sua não me parece prova de que realmente teve-se acesso a uma nova informação; pode apenas ser a própria memória afetiva trabalhando. Agora, se ele viu o pai respondendo um jogo de palavras-cruzadas e é capaz de dizer quais palavras são essas, daí sim temos algo interessante. A probabilidade um conteúdo imaginado desses bater com a realidade é praticamente zero; há, portanto, algo mais em jogo. Nessa questão, é preciso também examinar o decorrer da história que o paciente conta de suas visões. Todo mundo que já sonhou sabe como é fácil se confundir depois; “Será que isso estava no meu sonho ou estou adicionando agora?” O espaço para adulterações involuntárias é alto.

Por fim, mesmo admitindo o caráter puramente natural dessas experiências, elas nem por isso precisam deixar de ter um significado maior. Não é no mínimo curioso que, bem no momento em que o cérebro pifa e começa a desligar, tenhamos experiências com um sentido humano tão forte? Digo, as experiências criam para o indivíduo quase que um fechamento narrativo da sua vida (revê seus “melhores momentos”, as pessoas mais queridas, dirige-se a uma luz final); e bem sabemos como a natureza, de maneira geral, trata o homem de uma forma tenebrosamente alheia a qualquer desejo de narrativa coerente de nossa parte. Se Deus existe, nada que acontece em nossa vida é sem sentido; tudo é obra dele, e carrega consigo lições e oportunidades. A experiência em si pode ter um grande significado para quem passa por ela, mas é irracional basear-se nela para fazer uma afirmação metafísica.

Essa afirmação depende de uma prova que vá além de qualquer sentimento de convicção interna que a visão possa produzir; todos os quais são, afinal, produtíveis naturalmente. Não desprezemos, portanto, os médicos de Juiz de Fora; mas não afirmemos a realidade das OBEs antes de o estudo deles (ou de outros) revelar alguma evidência concreta. Fora disso, relatos emocionados podem ser seu valor, mas não como indícios da realidade.

PS: encontrei esta reportagem que fala sobre o grupo de estudo das EQMs da UFJF. Devo admitir uma primeira má impressão: as imagens que eles escolheram são surpreendentemente próximas daquilo que esperaríamos que um agonizante, com acesso apenas às imagens de seu próprio inconsciente e nada mais, visse: a Virgem Maria, Cristo, um bebê, céu azul. Onde estão os dinossauros, os personagens de HQs obscuras, os logos de marcas desconhecidas, ou mesmo figuras geométricas neutras e de cor sólida?

2 comentários em “Ainda as Experiências de Quase Morte

  1. Apesar do Julio ter zombado de mim, o que eu quis dizer no post anterior é só isso: pq imaginar uma alma que voa e atravessa paredes? Pq não imaginar uma percepção expansiva como um campo, ou uma participação intelectual em outra percepção existente? E pra todo mundo que é católico: pq desconsiderar a possibilidade de bilocação?

    Enfim…

  2. Não zombei de você, Roberto. Só tentei mostrar que premissas religiosas (ou teológicas) não podem ser trazidas numa discussão filosófica sobre resultados da ciência e hipóteses não científicas. Tenho por certo que você não aceita premissas da umbanda. Daí a minha observação, talvez sutil demais.

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