Ainda sobre Lang Lang

Lá vou eu discordar de quem sabe mais do que eu. Mas que fazer se não concordo com a crítica do maestro?

Leandro fez uma longa análise do papel da música clássica e do artista na cultura contemporânea. Falou, e falou bonito. Mas o que me chamou mesmo a atenção foi atribuir tamanho mal ao nosso pianista. “Lang Lang faz mal ao ouvinte clássico” – diz Leandro.  Com a devida vênia, maestro, queria saber por quê? Não vou ao concerto ouvir o valor dos contratos, credibilidades, ou fama. Vou ouvir música e tudo o que posso contar são as duas vezes que assisti ao Bang Bang em ação.

A primeira foi no Carnegie Hall, num concerto da Orquestra da Philadelphia regida por Charles Dutoit. O espetáculo começou com a Pavana de Fauré e terminou (brilhantemente) com a Sinfonia No. 10 de Shostakovich. Lang Lang entrou no meio com o Concerto No. 2 de Beethoven. Não entendo nada de música mas sou “um burro esforçado”, e nesse caso tinha feito toda a minha lição de casa com umas três ou quatro audições da peça.  Estava com ela fresquinha na cabeça.

E eis que entra Lang Lang e começa a competir com a orquestra. O primeiro movimento foi uma guerra, as frases não batiam, os acentos estavam no lugar errado. E a pose do pianista literalmente regendo a orquestra pelas costas do maestro me parecia uma afronta a todos: ao maestro, aos músicos e ao público. Fiquei até um pouco irritado, pensando: “quem esse japonês pensa que é?”(No ofenses, mas não resisto a essa troca de nacionalidades quando estou nervoso).

O segundo movimento foi melhor, e o terceiro bom até onde meu ouvido chega. Terminada a música começaram os aplausos de praxe. Intensos, longos, com toda força de quem tem a fama ao seu lado.  Lembro de ter pensado algo assim ao final: “ele sabe tocar, mas é um exibicionista sem conserto”.

Só que em seguida aconteceu algo muito raro por aqui. O pianista voltou para um bis antes do intervalo – fui a mais de 15 apresentações sinfônicas em Nova York e esse foi o único a que assisti. O chinês tocou e quando terminou o Carnegie Hall inteiro imediatamente pulou da cadeira e aplaudiu freneticamente. Nunca vi nada igual, antes ou depois. Eu inclusive, num movimento praticamente instintivo (juro, juro, juro), pulei da cadeira sem entender o que estava acontecendo.

A peça tocada no bis foi La Campanella, de Liszt, mas isso dito assim não quer dizer nada. O que aconteceu foi – pro inferno o medo de parecer caipira – mágico. (Peço desculpas aos leitores refinados, tentei evitar essa palavra. Mas o clichê nesse caso é mais forte do que eu).

Minha primeira tentativa de compreender aquilo foi pensar que Lang Lang havia finalmente encontrado um compositor mais exibicionista do que ele. Mas não, havia algo muito estranho ali e Liszt não era o culpado.  Esse impasse me fez se interessar por essa figura esquisita: ao mesmo tempo em que exala aquela cafonice de todo restaurante chinês, consegue tirar um coelho da cartola e trazer uma dimensão mágica que, me parece, toda boa música deve ter. Alguém que certamente quer aparecer a qualquer custo, mas que também tem uma técnica impecável. Com a consequência de que só Deus sabe o que vai sair dessas duas coisas.

Fiquei intrigado, mas sou cabeça dura e não me apaixono assim tão fácil. Queria entender quem era esse pianista que  dividia tanto as opiniões.

Só isso já seria o suficiente para mostrar o meu espanto quando li a critica de Leandro. Entendo que Lang Lang seja amado ou odiado, mas a tensão e atenção que ele cria é genuína e positiva. Pelo menos foi para mim, me fez pensar muito sobre interpretação e música. Não me fez um fã incondicional de Lang Lang, mas alguém que não quer perder suas apresentações.

Então lá estava eu três meses depois no Lincoln Center para assisti-lo, dessa vez com a Filarmônica de Nova York regida por Alan Gilbert. No programa também um Concerto No. 2, mas dessa vez o de Bartók.

Acho que estava nas notas ao programa uma citação de Sei-lá-quem dizendo que “o pianista sai deste concerto com os dedos cheio de sangue”. Não é música para fracos, e ao contrário do Beethoven não tinha feito muito bem minha lição de casa – apenas assisti a aula que precede o concerto no Lincoln Center (um detalhe: as da OSESP são melhores. E não puxo o saco de quem discordo).

Era uma peça difícil, dura, mas que ali soava musical e prazerosa. O primeiro movimento (sem cordas) poderia ter sido um desastre se o piano competisse com os metais, mas os dois iam juntos. Bang-Bang bateu, mas ele estava ali para isso. Mais uma vez ovacionado, mais uma fez um concerto que me ensinou muito.

Mas o impasse continua. Existe esse pianista que alguns execram e outros veneram. Mais de um crítico sério já disse que ele é capaz de milagres numa noite inspirada e tragédias em dias ruins. Será que dá para arriscar uma idéia a mais, quem sabe uma explicação?

Eu arrisco um palpite. Que Lang Lang é um exibicionista todo mundo sabe. Mas o exibicionismo dele é fruto de uma relação completamente infantil com a música. Daí todos os problemas que sabemos: como uma criança, Lang Lang presta menos atenção do que deveria às regras, gosta de chamar a atenção agradando ou irritando, certamente não é um intérprete criterioso nem consistente. Todas características ruins. Mas também como uma criança ele tem uma relação absolutamente imediata com a música. Essa disposição quando acerta, acerta em cheio porque apesar de todas as piruetas mantém a pureza e a simplicidade infantis.

Sobre o lado celebridade, sinceramente não estou interessado. Quer dizer, mais ou menos. Mês passado ele fez um recital no Carnegie Hall e eu não pude ir. Vendi os ingressos pelo dobro do preço…

4 comentários em “Ainda sobre Lang Lang

  1. Deixo claro desde o início: não gosto de Lang Lang. Não por causa do pose de popstar, do tênis colorido, das apresentações em mega eventos como abertura de Olimpíada; não: o problema é de estilo. Muita técnica e pouca sutileza. Ou, ainda, um falso cerebralismo. Não se trata de um problema específico do pianista, e sim uma enorme linhagem na tradição da música erudita. Virtuoses sempre dividiram opiniões e, particularmente, prefiro Brendel e Kempff a Horowitz e Rubinstein. Troco o Bach de Glenn Gould pelo de András Schiff ou Angela Hewitt sem peso na consciência. Dos pianistas contemporâneos, dentre aqueles com menos de 40 anos, prefiro Paul Lewis e Till Fellner a Lang Lang e Yuja Wang. Mas se trata, repito, de uma preferência pessoal.

    Após deixar isso claro, posso dizer que não entendo qual é o mal que Lang Lang faz à música. Ele programa uma peça e a executa do início ao fim. Ponto. Sem vulgarizá-la, sem deixar passagens de fora, sem desrespeitar o compositor. Toca com orquestras indiscutivelmente tradicionais (vide Filarmônica de Viena) e maestros importantes (Gergiev, Barenboim, Mehta, Eschenbach). Se alguém que não conhece música trava contato com Lang Lang porque o viu na abertura das Olimpíadas e então resolve assistir a um concerto seu, terá a chance de parar e ouvir composições de Schubert, Bartók e Liszt como foram escritas. Não é meu estilo predileto, sou obrigado a insistir, mas temos que entender as diferenças interpretativas que às vezes existem até entre grandes amigos, como Martha Argerich e Nelson Freire.

    André Rieu é um caso diferente. Posso falar porque tive a extrema infelicidade de ir, por motivos de trabalho (quem mandou virar jornalista…), a uma de suas apresentações em SP. Rieu nunca educará ninguém. Posso ter certeza de que nenhum dos espectadores que estavam no Ginásio do Ibirapuera foi no dia seguinte ver a Osesp tocar a Oitava do Bruckner com Frank Shipway. Não vai acontecer. Rieu tem uma orquestra medíocre, aposta em clichês, mutila composições de gênios e, sobretudo, recorre a gente medíocre (Johann Strauss, por Júpiter…). No momento em que três tenores resolvem encarar juntos um tremendo microfone amplificado, quase fiquei surdo. Lang Lang não fará isso. Ele pode até tocar as últimas sonatas de Schubert como se estivesse diante de uma Rapsódia Húngara, o que a meu ver é um escolha tremendamente errada, mas Schubert estará lá. Interpretação se discute: troco a qualquer momento o Mahler de Bernstein pelo de Kubelik, mas não acho que Bernstein traia Mahler em qualquer momento.

    Comparar André Rieu e Lang Lang é como comparar Paulo Coelho e Paul Auster.

  2. Olá Jonas! Opa, gostei disso aqui “Rieu nunca educará ninguém.” Afinal, quem vai para um concerto se educar? Se for para ser educado, e somente neste caso, como aliás deixei claro no texto, o efeito Bang é infinitamente pior. E é pois, afinal, ninguém espera ser educado pelo Rieu – para ter idéia, sequer chamamos seu espetáculo de concerto. Enquanto isso, muitos de nós, como você mesmo admite de forma inconsciente, acreditam que Lang está lá para nos educar – mas como educador ele é, exatamente pela falta de requinte e invenção, muito pior. A provocação é necessária exatamente nos termos que você sugeriu. E cá entre nós, comparar Paul Auster e Paulo Coelho é o que devemos fazer o tempo todo como críticos culturais – o ruim é comparar Lang Lang com Paul Auster!

  3. Uma das justificativas em favor do Rieu seria a suposta capacidade de levar o público leigo ao universo erudito, por isso usei o termo educar. No caso de quem não vai a um concerto para se educar, como é o nosso caso (talvez eu e você, Leandro, sejamos os dois mais assíduos nos bons concertos da cidade), de fato o que se espera é qualidade estética. Acho que não discordamos nisso. Como o Rieu não possui qualidade estética – crianças, eu vi – e não oferece a oportunidade de alguém ascender a algo melhor, não lhe resta qualquer função. Se você me disser que a função dele é entretenimento, responderei que existe na música séria entretenimento de qualidade, que diverte e faz pensar ao mesmo tempo (“Falstaff”, “Così Fan Tutte”, “Rosenkavalier” etc).

    Agora, se você vier com qualquer argumento relativista – p.ex., de que o público tem o direito de se divertir com o Rieu tocando Michel Teló, que dizer o contrário é elitismo etc etc etc -, não há qualquer motivo para debatermos. Tampouco qualquer motivo para a Dicta&Contradicta existir. Não responderei a qualquer argumento dessa natureza, pois George Steiner não me perdoaria. Que as pessoas têm o direito de consumir algo ruim, não se discute; estamos numa democracia. Nosso papel aqui, contudo, é advogar pela alta cultura. Ao pelo menos sempre imaginei que fosse a função da Dicta (afinal, http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-1/editorial/). Deixemos o relativismo para quem acha que Lady Gaga e Wagner têm o mesmo valor.

    Resgato a sua frase: “Enquanto isso, muitos de nós, como você mesmo admite de forma inconsciente, acreditam que Lang está lá para nos educar – mas como educador ele é, exatamente pela falta de requinte e invenção, muito pior.” Vamos lá. Digamos que um leigo conheceu Lang Lang ao vê-lo tocar na abertura da Olimpíada de Pequim. Se esse leigo comprar os cds do pianista, terá a chance de ouvir Liszt, Schubert e Bartók com o acompanhamento de uma Filarmônica de Viena ou uma Filarmônica de Nova York, a regência de um Valery Gergiev, um Daniel Barenboim, um Christoph Eschenbach. Se esse leigo foi ao concerto do Lang Lang pelo Cultura Artística, teve a chance de ouvir a última sonata de Schubert, a D960. Você vai ter que concordar que estamos falando de um pilar indispensável da música ocidental, e se eu for entrar aqui na discussão da importância da produção tardia de Schubert fico até amanhã escrevendo. Ou seja, se tudo der certo, teremos ao fim do processo um novo ouvinte de boa música. Repito: não aprecio o estilo de interpretação de Lang Lang, por mim todo mundo dedicaria tempo ouvindo Brendel ou Kempff, mas as obras não são maculadas por ele.

    Quanto aos Pauls Rabbit e Auster e a comparação com Rieu e Lang: apenas quis ilustrar a diferença entre uma figura tosca que quer divertir o público entregando a ele um material assumidamente diluído (Rabbit, Rieu) e outra repleta de defeitos mas que tenta navegar na qualidade, embora nem sempre consiga, e que talvez possa ser considerada uma figura mainstream, entre o tosco e o brilhante (citei o Auster, mas poderia ser o Jonathan Franzen).

  4. Quem precisa de Bang Bang se o mundo já nos deu Gould, Argerich, Pollini, etc? Particularmente, prefiro a Martinha, muito mais sutil, bela e sombria.

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