Algo extraordinário está acontecendo…

Um dos trechos instigantes da República, de Platão, é o final da alegoria da caverna. Nele, o filósofo prevê que o homem que volta à caverna, depois de ter visto a realidade de fora, poderia não ser entendido pelos que continuaram na escuridão. Estes considerariam que não valeria a pena sair da caverna, e talvez até tentassem matar aquele que os procurava libertar das ilusões. Esse ódio contra quem vê além é, infelizmente, recorrente na história da humanidade.

Recentemente, veio-me à cabeça que a previsão de Platão se confirma, no seu essencial, com o que ocorre em relação ao Papa e boa parte dos seus detratores. Detestam-no porque, de algum modo, percebem que ele é intelectualmente superior. Em outras palavras, o que parece incomodar muita gente em Bento XVI é que ele atingiu a sapiência. E justo ele: o homem que está à frente da Igreja Católica; aquele que, quando auxiliar direto de João Paulo II, era acusado de ser uma espécie de buldogue obscurantista da ortodoxia; a pessoa que denunciou a “ditadura do relativismo” (não conheço expressão mais sintética e precisa para caracterizar a nossa época)!

Quando digo que ele alcançou a sapiência, não falo apenas de erudição, mas de algo bem mais sério. Ele entendeu as coisas, é isso. E entendeu-as a fundo. Não basta estudar para alcançar esse estágio, não é suficiente ler o que o espírito humano produziu de melhor, não adianta meditar durante horas buscando uma iluminação… Em certo sentido, abrange isso e muito mais. Principalmente, exige uma vida moral reta, um desprendimento pleno de si mesmo – no fundo, o orgulho é o maior inimigo da verdade dentro de nós –, e uma inteligência profunda, ampla e meticulosa. E sobretudo contar com a ajuda da graça, pela qual é derramado o dom da sabedoria, essa conaturalidade com Deus através da caridade.

Acredito ser muito difícil conseguir juntar todas as qualidades necessárias para ser um autêntico sábio. Aliás, penso que isso pode ficar sem acontecer por gerações. Nos dias de hoje, não conheço outra pessoa que, como ele, possa dissertar sobre os mais variados assuntos com uma maestria, uma simplicidade e uma profundidade desconcertantes. O que se lê dele sempre traz algo surpreendente, um ângulo inesperado, uma clarificação deliciosa. E isso acontece em teologia dogmática, em ética, em filosofia, em literatura, em arte, em política…

A sabedoria de Bento XVI se manifesta na visão de conjunto que esclarece o sentido de cada uma das partes, dando a elas um colorido diferente e uma compreensão mais aguda. A extraordinária amplitude com que esse homem examina os acontecimentos não prejudica, antes aperfeiçoa, a apreensão do detalhe. Ele une primorosamente o generalista com o especialista. É um autêntico pensador, no sentido de que ilumina tudo o que estuda.

O Papa escreveu dezenas de livros e centenas de artigos. No Brasil, foi publicada uma parcela diminuta. Apesar da pequena quantidade, a qualidade é ótima. Introdução ao cristianismo, Edições Loyola, 2006, e Fé, verdade, tolerância, Instituto Raimundo Lúlio, 2007, são livros para ler e reler: valem mais do que milhares de páginas de outros autores que versam sobre os mesmos temas. Depois, Jesus de Nazaré, Editora Planeta, no qual mesmo a tradução deficiente não impede de perceber que ali está algo excepcional,  uma obra-prima (em breve virá o segundo volume dessa biografia, aguardado com ansiedade). O diálogo com o jornalista Peter Seewald, recolhido em O sal da terra, Imago, 2005, é surpreendente, inclusive duro em alguns momentos, pela clareza com que examina a situação do mundo e da Igreja.

Ao mesmo tempo que temos os livros, sugiro a leitura dos discursos, homilias e aulas de Bento XVI, frequentemente publicados no site do Vaticano. Acredito que não há nada melhor sendo produzido hoje em dia, ao menos que eu conheça. Os discursos para bispos, para o corpo diplomático, para grupos que o visitam, as aulas em seminários, os diálogos com jovens, sacerdotes, crianças e pensadores, tudo isso é um tonificante intelectual e espiritual de primeira ordem.

Apenas como aperitivo, cito um trecho – um exemplo dentre centenas possíveis – de sua homilia da última Quinta-feira Santa: “A vida verdadeira é que Te conheçam a Ti – Deus – e o teu Enviado, Jesus Cristo. Com surpresa nossa, é-nos dito que vida é conhecimento. Isto significa antes de mais nada: vida é relação. Ninguém recebe a vida de si mesmo e só para si mesmo. Recebemo-la do outro, na relação com o outro. Se é uma relação na verdade e no amor, um dar e receber, a mesma dá plenitude à vida, torna-a bela. (…) Na filosofia grega, já existia a ideia de que o homem pode encontrar uma vida eterna, se se agarrar àquilo que é indestrutível – à verdade que é eterna. Deveria, por assim dizer, encher-se de verdade, para trazer em si a substância da eternidade. Mas, somente se a verdade for Pessoa, é que pode levar-me através da noite da morte”.

O trabalho que Bento XVI está realizando é de importância ímpar. Suas contribuições em relação à liturgia, ao ecumenismo e à preparação da Igreja para o futuro, para não dizer de outros temas, dificilmente podem ser sobreestimadas. Entretanto, as pessoas estão um pouco surdas ao que o Papa vem dizendo em virtude do barulho causado por fatos tristes e lamentáveis, diante dos quais esse gênio alemão agiu sempre de maneira exemplar, firme e sensata, como pouco a pouco vai sendo demonstrado de modo cabal. Todo esse ruído está fazendo com que se perca o fundamental: o que ele está nos indicando, as respostas intelectuais e espirituais que o homem de hoje procura, enfim, a luz que ele conseguiu atingir através da sapiência.

Com candura e gentileza, Bento XVI mostra que as respostas da Modernidade são insuficientes. Ele valoriza o que elas têm de positivo, não é um adversário, e sim alguém que deseja compartilhar com os outros as soluções mais ricas e abrangentes que sabe possuir. Isso humilha os intelectuais, que julgavam o cristianismo uma caveira à espera de ser enterrada e não admitem que nele possa haver tal vigor. E nada irrita tanto quanto mostrar que somos incompletos; preferimos estar rotundamente errados na grandeza, do que estar na mediocridade de quem “não chegou lá”. Por isso, não tenho esperança de que essas censuras injustas terminem tão cedo; se não o conseguirem atacar de uma maneira, descobrirão outra.

Não quero aqui esconder a verdade de algumas censuras a membros da Igreja, inclusive da hierarquia, porque não é disso que se trata. O que desejo ressaltar é que algo maravilhoso está ocorrendo, e as pessoas frequentemente não o percebem. Bento XVI está falando, e de modo sublime. Vale a pena escutá-lo, mesmo que seja para discordar dele; se isso for feito com educação e civilidade, que infelizmente não têm comparecido com a freqüência desejável no atual debate público, um grande bem virá para a inteligência e o coração dos homens.

11 comentários em “Algo extraordinário está acontecendo…

  1. Pingback: Tweets that mention Novo post no blog: Algo extraordinário está acontecendo... -- Topsy.com

  2. Em torno do “aperitivo”, da noção de vida verdadeira como conhecimento de Jesus Cristo, o gênio alemão (sim, exatamente) faz lembrar aquele achado de Jean Guitton em seu livro sobre o amor humano, dos anos 40 se não me engano: conhecimento, co(n)naissance, co-nascimento. Em registro pessoal, claro, à maneira do que sucede na regeneração do batismo, noção aliás peculiarmente cara à tradição beneditina.

  3. Em perspectiva afim com a do post – algo de extraordinário está acontecendo – em mais de uma ocasião (muito antes de 2010) o próprio Bento XVI refere seu entendimento de que passamos por uma “descida aos infernos”, um sábado de vigília pascal, que antecede o Domingo da ressurreição. Um sábado dilatado, que parece remontar ao menos ao século XIX. Ele voltou a tema em alocução do início deste mês, em Turim, onde o Santo Sudário encontra-se exposto (se não me engano até 23/5). Versão em inglês:

    http://zenit.org/article-29116?l=english

  4. Que grande bobagem: “Detestam-no porque, de algum modo, percebem que ele é intelectualmente superior”.
    Por causa desta frase e da seguinte, o artigo se torna em texto excludente, de católico para católicos somente.
    Eu substituiria a afirmação infeliz por algo do tipo: “Detestam-no porque ele ousa desafiar paradigmas da pós-modernidade, e o faz com sólida firmeza intelectual.”
    Sem fazer juízo de valor (se o papa é ou não superior intelectualmente, e essa questão parece estar contaminada por outra – a (in)fabilidade papal), o fato é que de maneira nenhuma o papa é percebido como intelectualmente superior.
    Detestam-no porque não o entendem, e só o podem entender numa perspectiva teológica ( o além da caverna ) que não encontra eco em um mundo secularizado.
    Detestam-no porque não entendem o direito canônico, que à luz do direito civil parece acobertar criminosos e abandonar vítimas.
    No mais, excelente artigo, não fosse a frase citada e a seguinte que lhe faz par.

  5. Renato

    Há em português outras obras de Ratzinger. Uma que li – infelzimente mal traduzida, mas definiivamente marcante – é “Dogma e Anúncio”, da Loyola.

    Lá Ratzinger fala de, entre tantos temas, sobre ‘criação e evolução’ e “critica” – para escândalos de muitos – a concepção clássica de Pessoa de Boécio.

    Traduzi ao português um dos discursos antológicos de Ratzinger, aquele dito em Subiaco na véspera da morte de João Paulo II. É uma das mais sagazes interpretações da sociedade moderna que já li. (http://www.deuslovult.org/2008/12/03/a-europa-na-crise-das-culturas-por-joseph-ratzinger/)

  6. De fato, Sua Santidade alcançou o píncaro. Já os hebreus e mesmo os gregos perceberam haver notável distinção entre ciência ou conhecimento e sabedoria. Pode-se dizer que a Bento XVI foi dada a sabedoria como a Salomão; o saber que vem do alto e que, justamente por isso, vê as coisas do alto ou, nas palavras do post, tem visão de conjunto.

  7. “Detestam-no porque não entendem o direito canônico, que à luz do direito civil parece acobertar criminosos e abandonar vítimas.”
    Bela frase do(a) senhor(a) Key…. Vê-se com clareza se tratar de alguém que, além de ter profundo conhecimento do que é o direito canônico, entendeu perfeitamente que a campanha orquestrada para manchar a imagem do Papa e da Igreja, não é senão mais uma arma daqueles que odeiam, perdoeme o clichê,
    a sociedade europeia cristã branca ocidental.
    Que animador!!!!

  8. Pingback: Deus lo Vult! » Comentários ligeiros

  9. Excelente artigo! Infelizmente nossa mídia só da voz aos inimigos de Ratzinger ou destacam alguma suposta “gafe” de Bento XVI, extraída de seu contexto verdadeiramente complexo.

  10. Key,
    “que à luz do direito civil parece acobertar criminosos e abandonar vítimas.”

    Muito feliz sua afirmação.

    “Parece” faz muita diferença.
    É a diferença entre algo contundente, incisivo e algo pobre.
    O “parece” é pobre, medroso, fraco, covarde.

  11. Excelente texto. Bento XVI é santo e sábio.
    A Igreja e a sociedade deveriam aprender com ele. Parabéns Renato. O livro Jesus de Nazaré é uma obra-prima!

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>