Vivemos em tempos em que não é mais permitido estabelecer um limite entre o que é arte ou não. Ou aceitamos a proposta do artista, seja qual ela for, ou não entendemos nada sobre arte. Pode ser uma cama desarrumada (“My Bed” da artista britânica Tracey Emin, que está com exposição em São Paulo até fevereiro de 2013 no White Cube) ou cocô enlatado (“Merda d’artista” do italiano Piero Manzoni); é preciso acolher toda forma de expressão, compreender e enxergar valor artístico em cada obra, por mais que possa nos parecer insignificante ou até mesmo desprezível. Nessas circunstâncias, só restam duas opções ao público: admirar, junto dos demais, a roupa nova do imperador ou então manter distância de museus de arte contemporânea. Mas se ainda é possível encontrar algo capaz de comover, o trabalho recente de Marina Abramovic oferece alguma esperança.
“Eu tenho 63 anos, eu não quero mais ser alternativa,” diz a artista sérvia no documentário Marina Abramovic – Artista Presente, exibido no Festival do Rio deste ano. No filme dirigido por Matthew Akers e Jeff Dupre, Abramovic utiliza o próprio prestígio na tentativa de tirar o ranço de “arte alternativa” da performance, tornando-a mais acessível àqueles que não são experts no campo. Foi só depois de quarenta anos de carreira, com muito do seu tempo dedicado à administração e ao marketing, que Abramovic conquistou, com o auxílio de ampla cobertura da mídia, o status de estrela do universo artístico – apenas as fotografias que ilustram momentos de suas performances são comercializadas por preços que vão de 25 até 50 mil dólares.
Em 2010, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) fez uma retrospectiva da carreira da artista, a maior da história do museu já dedicada à performance. Durante os três meses da exibição, alguns dos seus trabalhos mais importantes foram recriados por novos artistas enquanto a própria Abramovic apresentava “The Artist is Present”, obra em que permaneceu sentada, no meio de uma sala iluminada, durante todo o horário de funcionamento da exposição. O público formava uma fila e cada pessoa podia se sentar à sua frente pelo tempo que quisesse, sem conversar ou tocar em Marina, apenas olhando para ela. Depois de algum tempo (que podia variar entre cinco minutos até duas horas), alguns sorriam, outros começavam a chorar – na verdade, quase todos começavam a chorar.
No documentário, que acompanha a artista desde a preparação até o dia final da mostra, Marina diz, durante uma entrevista com um jornalista, que ninguém mais lhe pergunta por que isso é arte, que ou as pessoas passaram a entender ou todo mundo finge que entende. A performance, para Abramovic, seria uma abordagem direta e emocional, inferior apenas à música, em que o artista não se utiliza de qualquer suporte ou narrativa para se comunicar com o público – não importa tanto o que ele faça, mas com que estado de espírito ele o faz e que tipo de reação provoca nas pessoas.
“É muito difícil fazer algo que é quase nada,” diz Marina sobre “The Artist is Present”, obra cujo intuito principal é, levando o tempo que for necessário, estabelecer uma conexão direta e individual com o público, fazer com que cada um compartilhe de um mesmo estado mental que é muito menos apressado e mais voltado ao presente do que estamos acostumados. Por mais que muitas das performances anteriores de Abramovic possam parecer bobas hoje em dia (em “Art Must Be Beautiful, Artist Must Be Beautiful”, de 1975, ela penteia o cabelo obsessivamente enquanto repete o título da obra por 45 minutos como se fosse um mantra), “The Artist is Present” representa um marco na história da performance porque concretiza aquilo que todo artista pretende – seja um cineasta, um músico ou um escritor – que é criar algo que de fato comova as pessoas.
O documentário em si é também bastante emotivo. Em uma palestra na Itália, Marina lê seu manifesto. Muitos dos tópicos são discutíveis. Por exemplo, “um artista não deve fazer concessões”; Marina era famosa na década de 70 por uma série de performances violentas em que se cortou, perdeu a consciência, teve convulsões e quase foi assassinada. O abrandamento de sua obra compõe um processo natural de amadurecimento ou uma tentativa de ceder aos gostos de um público maior? Continua, “um artista não deve se tornar um ídolo”; com filas gigantescas de pessoas que chegaram a dormir na calçada para conseguir participar de “The Artist is Present”, é possível dizer que Abramovic não seja um ídolo? E, então, “um artista não deve se apaixonar por outro artista”; começa aí uma das partes mais comoventes do filme, que aborda o seu relacionamento com o artista alemão Ulay, com quem viveu e trabalhou por mais de dez anos.
Em 1988, depois de anos de tensão, a dupla resolveu se separar com uma última performance, em que os dois partiram das extremidades opostas da Muralha da China e se encontraram no meio para dizer adeus. Por anos, os dois ficaram sem se falar e só se reencontram novamente durante o documentário, quando, às vésperas da exposição de Marina no MoMA, são forçados a relembrar o passado, os trabalhos que fizeram juntos e os motivos da separação.
Ulay, como o resto do público, se senta à frente de Marina durante “The Artist is Present”. O silêncio entre os dois é um dos momentos mais eloqüentes e tocantes do filme: Ulay parece envergonhado, sorri e balança a cabeça constantemente, os olhos marejados; Marina chora, com um sorriso discreto nos lábios, mas não sem algum esforço e alguma dor. É um momento que é como uma performance dentro da performance – os que estão presente espelham suas experiências de relacionamentos românticos que já se acabaram ou então expectativas de algum que sequer começou, e é muito difícil não se emocionar. Ulay finalmente se retira, e sobra o público anônimo, composto por crianças, jovens e idosos, que parece reagir com a mesma intensidade de um ex.
Há uma parte curiosa do documentário em que Marina conhece o mágico David Blaine que lhe propõe uma participação em sua performance, mas adicionar o ilusionismo à sua arte seria como misturar água e óleo. O comprometimento de Abramovic com cada um que lhe visita durante a exposição é real. Não se trata de mágica ou atuação.
Como é bem vindo este amadurecimento. A arte lida com a emoção. Uma cama desarrumada pode sim trazer uma emoção assim como o c… enlatado. Mas a emoção que faz brotar lágrimas, como na exposição, não pode ser comparada. Quem já esteve diante da Pietá, como já tive a oportunidade, sabe que algo além, a mais, acontece. Não é um simples olhar e passar. É ficar, é contemplar, é parar no tempo. Arte é arte. Emoção é emoção. Mas que Arte há quando ela arte deixa de ser e emoção passa a viver!
Esse captcha que vocês usam é terrível, qualquer script vagabundo de OCR na internet quebra isso fácil.
Caro Peter, o que passa (não é muita coisa) já vai direto para a caixa de spam. Mas de fato é fácil quebrar; o prejuízo é que é inexistente. Obrigado e um abraço.