As entranhas do sistema, ou: o desabamento do Capitão Nascimento

1. Sem dúvida, Tropa de Elite 2 é melhor que o primeiro. Evitou-se deliberadamente o aspecto catártico do anterior. É uma continuação anti-climática. O capitão (agora coronel) Nascimento não se torna um Rambo brasileiro e resolve fazer justiça com as próprias mãos. Sim, ele espanca o Secretário de Segurança, mas eu faria a mesma coisa no lugar dele; de resto, ele age dentro da legalidade, quando faz a sua denúncia na assembléia.  Outra coisa interessante foi como resolveram o chamado “impasse ideológico” do primeiro filme – não havia  impasse nenhum, mas a crítica tinha visto alhos e bugalhos, seja do lado da esquerda como a de uma direita que nunca existiu neste país. Nesta visão tacanha que os realizadores souberam subverter de maneira admirável, Nascimento representaria a visão de “direita” enquanto Fraga representaria a da “esquerda”. Contudo, a tensão entre os dois personagens não é social ou política, mas sim pessoal – ambos têm a mesma mulher como objeto de desejo e ambos gostam do filho de um deles. Isso provoca, em especial no ato final, a reviravolta “ideológica”, em que Nascimento e Fraga têm de se unir não porque são de pólos opostos de um mesmo problema político, mas sim porque há um problema pessoal – a vida do filho – que os fazem esquecer as diferenças ideológicas e buscarem um denominador comum para o bem geral da sociedade. Ou seja, o filme não é de direita, nem de esquerda: é sobre dois pais que vêem o filho se tornando vítima da guerra do “sistema”.

2. O que impressiona no filme é a direção de José Padilha. Tem ritmo, não se perde nas diferentes histórias que se cruzam, sabe filmar como macho; desta vez, dá espaço para a reflexão (o que faltava no filme anterior, que caía na ação pela ação), sem deixar que a exposição dos personagens através da ação se perca em um emaranhado de informações pouco claras. O grande exemplo é a sequencia inicial da rebelião em Bangu, filmado com precisão de mestre, ouso dizer (e olha que eu digo isso de poucos, em especial diretores brasileiros, como todos sabem).

3. Não podemos esquecer de Wagner Moura. O olhar dele no momento da assembléia diz tudo; é o homem que perdeu todas as batalhas, mas não a sua dignidade. (Aliás, esquecem de dizer que Nascimento pode ser um homem truculento, mas sobretudo é um sujeito honesto e com uma noção profunda de uma consciência moral.)

4. O roteiro de Bráulio Mantovani e do próprio Padilha é muito bom, com uma carpintaria rara de se encontrar na dramaturgia visual brasileira; há pelo menos umas três cenas de diálogos – a conversa de Nascimento com Mathias na prisão militar, a conversa de Rosane com Fraga enquanto discutem a prisão do filho e a conversa de Nascimento com seu filho enquanto lutam judô – que são aulas sobre diálogos que dizem mais no silêncio do que as palavras em si. A elegância de como o espectador descobre os dados dos personagens é formidável; os detalhes da camiseta do Human Rights Aid e como sabemos que Fraga se tornou o marido de Rosane são engenhosos. Outra coisa que marca é como a visão do “sistema” é inspirada em The Wire, a fantástica série de David Simon;  o tema do indivíduo x instituição é abordado como uma tragédia grega, em que Nascimento se mostra impotente e, por isso mesmo, em um desabamento moral que desmistifica a figura icônica do primeiro Tropa.

5. Fica aqui meu repúdio à crítica de cinema ao analisar o filme; alegaram que ele seria niilista; acho que é duro, sombrio, mas não tem nada de niilista; afinal, em um filme que só mostra podridão, um pai ver o filho abrindo os olhos e saindo do coma é algo deveras esperançoso, não acha, meu caro leitor?

13 comentários em “As entranhas do sistema, ou: o desabamento do Capitão Nascimento

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  2. Filme muito bom, se for indicado ao Oscar, pode levar.

    Confesso que gostei mais do primeiro. Eu previa que este segundo filme seria uma “desculpa/mea-culpa” do Padilha por ter feito o primeiro (considerado fascista/violento/etc pelas ‘pessoas maravilhosas’), no início eu pensava estar enganado, mas a partir daí o filme seguiu o prognóstico que eu temia; por exemplo, note a sutil diferença no enterro do Neto no primeiro filme e no enterro do Mathias neste segundo.

    Garanto que não falarão deste o que falaram do primeiro e creio que este terá menos público que o primeiro.

    A cena dos milicianos-couveiros-dentistas me pareceu estúpida, mas a cena do diálogo entre Nascimento e seu filho foi genial.

    É isto, excelente análise Martim,

    abraços,

    Henrique Santos

  3. Depois que assisti este filme, lembrei das palavras do diretor em uma entrevista do primeiro filme quando dizia “é um filme sobre a violência da polícia” e tive a impressão que o 1º tropa era para ser um 174 da vida que por erro de execução teve caminhou para o lado “filme fasista para as camadas populares”.
    Sinceramente, contrapor o protagonista do filme com um clone de militante do Psol, e ainda por cima ceder a mulher e a razão para o segundo, “bonzinho”, foi ridículo. Típico filme esquerdista que retrata a ditadura de esquerda e de direita e, por fim, diz a última muito pior do que a primeira.
    Não gostei do post. Muito superficial.

  4. Tropa de Elite está para se tornar o Godfather brasileiro. Também me empolgou mais que o primeiro.

    Mas achei que um certo remorso do diretor de ter dado uma arma no primeiro filme para a “direita” bater nos apóstolos dos direitos humanos e nos esquerdistas marcusianos e foucaltianos, o levou a fazer uns afagos nestes últimos no segundo filme. Pelo menos o filme d’a a ideia de que eles tem razao em parte e que os direitistas a la Alborghetti e Bolsonaro tambem tem as maos sujas de sangue. Intocado so sai o BOPE.

    So achei incoerente que o “imortal” Capitao Fabio matasse o grande troglodita no fim, afinal sempre foi representadao como um pilantra boa praca, comico, mas nunca como um sujeito violento.

    Excelente post.

  5. Caro Martim.

    O Filme é genial. Eu apenas saí desapontado do cinema porque esperava um Capitão Nascimento herói como um rambo. Mas não. Aí está também o amadurecimento do filme, mostrando a vida dramática e complexa de um indivíduo real.

    Mas eu vim aqui apenas para dizer que sua resenha está demais!!! Li várias, mas nenhuma chegou perto da sua. Elegante e estonteantemente inteligente.

    Muito obrigado!

  6. Ainda sobre o filme: ele é impressionante, um soco no estômago, mas com uma mensagem certeira: contra a corrupção e impessoalidade do sistema, somente a redenção pessoal e individual.

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  8. Eu gostei do post e da análise, mas uma coisa crucial do filme deixou de ser dita: a dissolução de tudo, ao final, no “sistema”, coisa que esquerdista adora até o talo e quase que só serve para eles.

    Não retiro as qualidades que o Martim indicou.

    Mas o final estraga o filme, como que tirando a responsabilidade das pessoas e deixando tudo para o sistema. Essa é a impressão que fica, e não fui só eu que percebeu isso.

    Além das críticas da Monica acima (comentário 5), bem colocadas, esse final do filme é intolerável, horrível, reducionista.

  9. Caro João (post 11),

    A luta do Nascimento foi contra o “sistema”. Ele fala isso repetidas vezes. Talvez seja exagero dizer que esse viés da crítica do Cap. Nascimento seja “intolerável”. Note-se que ele mesmo lutou contra o sistema e que deixa claro na película a luta de um indivíduo contra o “sistema”. E no fim das contas, o indivíduo venceu.

    Quanto à palavra “sistema” ser um clique esquerdista, bom, isso é assim com 100% do vocabulário político. Agora uma análise do que consiste o “sistema”, veremos que a excrescencia está no ambito da política, a qual os liberais, principalmente os libertários, fornecem uma crítica bastate sólida do modus operandi do tal sistema. Basta ler Mises, Hayek, para não mencionar os arrebatadores Rothbard e Hoppe.

    Entretanto, para vencermos na area do debate público, sim, antes há que se corrigir toda a linguagem, para então começar a discussão.

    Abraço,

  10. Para além de toda a polêmica em torno dos símbolos religiosos nas repartições públicas, devo dizer que, mesmo que não servissem para mais nada, uma das cenas finais do filme justifica sua presença ali. O efeito irônico proporcionado pelo crucifixo ao fundo enquanto o deputado corrupto alega ter sido legitimado pelas urnas dá o tom do ambiente em que vivemos.

    Retire-se o crucifixo com uma canetada, e uma cena belíssima como aquela perderia todo o seu efeito…

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