As igrejas dos árabes

No último sábado faleceu o Papa. Refiro-me, obviamente, ao Papa Shenouda III, primaz da Igreja Copta, comunidade de cristãos egípcios que se separou (junto com outras comunidades) do restante dos cristãos no Cisma ocasionado pelo Concílio de Calcedônia, em 451. Shenouda reinou por mais de 40 anos a Igreja egípcia, tempo no qual ela se fortaleceu e expandiu tanto em casa quanto ao redor do mundo. Um líder ao mesmo tempo carismático e contemplativo, sua morte foi lamentada por autoridades políticas e eclesiásticas ao redor do mundo, recebendo condolências de figuras como o Arcebispo de Canterbury Rowan Williams e do Papa Bento XVI (Papa, por sinal, é um título honorífico, tradicionalmente dado tanto ao primaz de Roma quanto ao de Alexandria; não representa, de forma alguma, uma tentativa de usurpação nem nada do tipo).

Os últimos anos de Shenouda III dão uma boa mostra das dificuldades e complexidades da situação política, cultural e religiosa do Oriente Médio. O Cristianismo oriental é tema pouco visível, mas é de capital importância para o futuro das sociedades e da convivência cultural e religiosa da região. E o fato que tem ficado cada vez mais patente mesmo para a grande mídia, é que a dicotomia ditadura-democracia não basta para explicar o processo pelo qual passa o Oriente Médio. As ditaduras seculares ou semi-seculares que caíram e estão em risco de cair não eram exatamente pró-cristãs ou defensoras ardorosas das minorias que existem em seus territórios; mas mantinham conflitos religiosos sob algum controle. As democracias populares que supostamente as sucederão são muito mais suscetíveis a surtos e movimentos fundamentalistas ou islamistas sem nenhum respeito por direitos e minorias tradicionais. Para se ter ideia do tipo de mentalidade que pode prevalecer, tenha-se em mente que o grão-mufti da Arábia Saudita afirmou recentemente, sem nenhum receio, que “é necessário destruir todas as igrejas” da Península Árabica.

É por isso que autoridades cristãs, como o próprio Shenouda III, eram ou muito reticentes ou mesmo contrárias às revoltas populares (que, todavia, também uniram cristãos e muçulmanos jovens e esperançosos nas ruas). O patriarca Gregório III Laham (que é líder da Igreja Melquita, uma igreja bizantina árabe em comunhão com Roma, ou seja, parte integrante da Igreja Católica) vê na Síria de Assad, essa mesma que é capaz de brutalidades indizíveis contra manifestantes, um exemplo de convivência religiosa a ser imitado; ele pede que o Ocidente não ajude a mudar o regime, mas ajude o regime a mudar. O patriarca ortodoxo antioqueno é da mesma opinião.

Esses regimes, cuja derrubada tem sido apoiada pelas potências ocidentais, representam uma proteção a populações não-islâmicas (ou, se islâmicas, de vertentes minoritárias, como é o caso do grupo dos alawitas ao qual o próprio Assad pertence) que, sob um regime muçulmano sunita mais devoto, seriam extirpadas sem grandes remorsos, e sob um governo enfraquecido ficam à mercê de turbas fanáticas, terroristas e outros males. A título de ilustração: a população cristã do Iraque (que chegava a 1,5 milhões) caiu para menos da metade desde a invasão americana; um êxodo em massa que reflete a piora da situação para os cristãos, vítimas de terrorismo constante, embora o governo seja agora aliado do Ocidente. Já viraram corriqueiros, também, os ataques a igrejas e indivíduos cristãos egípcios desde a queda de Mubarak.

Em certo sentido, a própria existência de cristãos árabes e orientais (que se dividem em quatro grandes grupos institucionais: católicos de vários ritos, ortodoxos, pré-calcedonianos como os coptas – também chamados de ortodoxos, o que às vezes gera confusão – e assírios) é uma refutação da tese do embate civilizacional entre árabes muçulmanos e ocidentais cristãos. Para os governos ocidentais, são um inconveniente, vítimas de violação de direitos por parte (ou pela negligência) de governos aliados, radicalmente contrários à presença estrangeira em seus países e apoiadores da causa palestina. Pelos islamistas, são pintados como uma verdadeira quinta coluna ocidental.

Enfim, a situação é delicada, crítica e tem se deteriorado. Shenouda III foi um homem que, devotamente, liderou sua Igreja em meio a um ambiente hostil, que exige cautela e prudência constantes. É fácil criticar líderes como ele (e como os demais, sejam católicos ou ortodoxos, cujo posicionamento é o mesmo) pela subserviência aos poderes estabelecidos e ao Islã em geral (são unânimes em dizer que o Islã não é o problema) e pelo ânimo antiocidental e anti-Israel que frequentemente demonstram. Ao mesmo tempo, é graças a homens como esses que perdura a esperança de uma coexistência pacífica entre cristãos e muçulmanos pertencentes a uma mesma cultura.

17 comentários em “As igrejas dos árabes

  1. Maniqueísmos e idealizações simplistas não ajudam mesmo a entender o que está acontecendo. Mérito do post sintetizar com clareza um quadro complexo e frequentemente objeto de distorções.

    O link abaixo, a propósito, remete a entrevista concedida à Al Jazeera pelo Cardeal Tauran, responsável no Vaticano por contatos com o mundo islâmico.

    O fato da entrevista em si já é significativo. Adicionalmente, ao refletir sobre esses “cristãos esquecidos”, ele ajuda a preparar a visita de Bento XVI ao Líbano, já programada.

    Menciono a visita e proponho o link porque o tema não é nada paroquial.

    http://www.aljazeera.com/programmes/talktojazeera/2012/03/201231705416701698.html

  2. Não pelo mesmo motivo que o citado grão-mufti da Arábia Saudita , eu também acho que todas as igrejas em países árabes deviam ser extintas;

    Os cristãos em países árabes devem reconheçer somente o vaticano e somente a ele se reportar; Eles deveriam fazer isso se quiserem ter mais apoio

    Mas tem que ver também se o vaticano tem interesse em recebê-los sob sua tutela. É que pode ser um presente de grego…

  3. À margem do tema substantivo, acho que cabe a pergunta: será que do ponto de vista da comunicação de imagem essa entrevista do Cardeal rende algum fruto?

  4. É uma boa pergunta, Ricardo (Leal)!

    Todas as fichas da aposta estão na hipótese de haver um Islã moderado e com visão positiva do Cristianismo, que afirme com todas as letras que os cristãos têm um papel positivo a desempenhar dentro do mundo de maioria islâmica. Por essa entrevista, o grande problema está na visão deturpada que ocidentais têm do Islã, e não no Islã em si. É muito parcial.

    Por outro lado, uma abordagem combativa seria um retrocesso e, politicamente, desastrosa; daí é melhor fingir que o problema não existe, pois os cristãos históricos de lá ficam menos em evidência e ninguém mexe com eles.

    Ao outro Ricardo: os cristãos históricos em países incluem aqueles em união com o Vaticano; e os problemas deles são os mesmos que assolam os demais. É artificial e até injusto separá-los. Fora que, reconhecendo ou não o Vaticano, o Vaticano reconhece a todos eles, e afirma o valor de suas igrejas mesmo que continuem sem comunhão mútua. Por fim, são todos seres humanos, e independentemente de religião, deveriam ter o direito de praticar e viver suas crenças em seus países de origem. Essa causa ressoa em todos aqueles que prezam pelos direitos humanos mais básicos.

  5. Apesar de todos os crimes e de todo o esquerdismo, o fato é que, diante do que há de vir, chegaremos ao ponto de sentir saudades do pan-arabismo de Nasser e de seus epígonos — Saddam, Mubarak, Gaddafi, a família al-Assad.

    Dias sombrios estão chegando. E com o decisivo apoio das potências ocidentais — que combateram e continuam a combater em prol da pior das opções, como a cada dia fica mais evidente.

    A era do fundamentalismo, decerto, também haverá de passar; também as suas promessas serão descumpridas e a sua força sedutora se desgastará aos olhos do povo.

    Contudo, as igrejas cristãs do mundo árabe conseguirão sobreviver até lá?

  6. E ao Ricardo (não o Leal): muitos cristãos árabes não católicos (ortodoxos calcedonenses, ortodoxos não calcedonenses, assírios) consideram que a fidelidade a princípios teológicos e eclesiológicos tradicionais é incomparavelmente mais importante do que o “maior apoio do Vaticano”.

    Opiniões como a sua soam aos ouvidos desses cristãos como uma insultuosa e desprezível tentativa de convencer Esaú a vender sua primogenitura por um prato de lentilhas. É em Cristo, e não no papa romano, que eles depositam as suas esperanças.

    Ademais, diante da alvorada islamista que vislumbra no Levante, o futuro dirá se o “maior apoio do Vaticano” fará qualquer diferença prática para a sobrevivência das igrejas católicas de rito oriental, na comparação com as demais igrejas cristãs do Oriente Médio. Os militantes islamistas não atribuem nenhuma importância às divisões entre a cristandade; eles são rigorosamente equitativos no seu ódio a todas as confissões cristãs. Definitivamente, esses extremistas não reconhecem no papa romano uma autoridade moral maior do que a do papa alexandrino. De resto, no próprio Ocidente, o prestígio político do pontífice romano também é minguante: o tempo em que o seu apelo podia mobilizar exércitos ocidentais contra os sarracenos já passou há muito.

  7. Gostaria apenas de fazer uma menção à situação dissonante do Líbano em relação aos demais países da região. Lá, boa parte da população – mais de 40% – são cristãos maronitas, que estão em plena comunhão com Roma. Aliás, ao que me consta, foi a única igreja a nunca ter entrado em cisma…

    Lá, os cristãos necessariamente sempre terão forte representação política. Mas é que, também, ao contrário de demais localidades, não são minoria…

    Enfim, parece que a situação na maioria dos países não toma um bom rumo…

  8. Joel, não afirmo que os cristãos em países árabes devam desapareçer, ou serem deportados em vagões (cenário provável). Mas sim, digo que para evitar esse acontecimento, eles devem renunciar às suas igrejas locais, e que elas sejam extintas pois fragmentam o poder papal. Então os cristãos locais passariam a prestar tributo à Roma, e não mais às nano-igrejas cristãs em que se fragmenta a cristandade árabe

  9. Entendo seu ponto, Ricardo. Mas ainda acho que a decisão de ser membro desta ou daquela Igreja não pode ser feita com base na expediência política. Claro, eles estariam em melhores condições de negociação e teriam a quem recorrer mais facilmente; mas esse benefício é pequeno se comparado a estar na Igreja que se considera verdadeira.

  10. No link abaixo, texto sobre os jeitos de ser cristão no Oriente Próximo. Por um desses acasos, pude ouvir há pouco o autor, um acadêmico chamado Sidney Griffith, em palestra para não-iniciados.

    Griffith basicamente expôs a maneira como em Bagdá (“Babel” dos judeus, daí o Talmude da Babilônia), aí pelo século X, scholars das três religiões ditas abraâmicas (sem juízo de valor no qualificativo) podiam interagir do modo mais razoável e sem perder suas identidades.

    Como seria Paris no século XIII à sua maneira, Bagdá no século X era um lugar onde se filosofava como (geralmente) se entendia o que fosse filosofar na Antiguidade e na Idade Média, inclusive com seu gosto por lógica.

    Sucede que naquele pequeno intervalo histórico a língua empregada nessa interação filosófica era o árabe; e intelectuais cristãos e judeus podiam tranquilamente discutir em um califado regido pela “sharia” sobre o que seriam as melhores formas de organização social.

    À parte simplificações ingênuas, típicas de nosso tempo, não é impossível topar com quem pergunte: será que o problema é o “Islã em si”, digamos, em termos culturais? Será que o solapamento da própria identidade ocidental não contribui para roubar também do espaço cultural islâmico a chance de encontrar e engendrar diálogo, diálogo que particularmente no caso da esfera pública em países islâmicos implica recuperar o uso de razão que não se esgote em si mesma?

    Contra “apocalípticos e integrados” (para lembrar do Umberto Eco meio fora de contexto), Griffith e outros me parecem argumentar: se foi possível naquele espaço-tempo (Bagdá no século X), mesmo que circunscrito, não será possível também construir esquemas de “networking” inter-religiosos (ou agora também inter-culturais), igualmente razoáveis em nosso tempo?

  11. Acho que o diálogo era possível na Bagdá do século X porque a conquista islâmica ainda estava em andamento. Philip Jenkins, em “The lost history of Christianity” pondera que a Igreja do Oriente (também conhecida como Nestoriana) decai apenas no século XIII-XIV. Durante uns seiscentos ou setecentos anos, foi uma Igreja atuante e com forte papel missionário na Ásia. Além disso, os islâmicos se utilizaram durante muito tempo dos intelectuais cristãos do oriente como mão de obra qualificada.
    Além disso, lá no século X, ainda havia uma população cristã substancial no Oriente Médio, o que certamente deveria incentivar uma atitude mais pragmática do califa.
    Por fim, as Igrejas do Oriente não precisam aderir ao comando do bispo de Roma para existirem. Elas já aderiram a algo muito mais importante, a fé em Cristo. As provações que têm sofrido há séculos devem ser motivo de admiração e respeito por parte de nós ocidentais.

  12. Os cristãos não católicos do mundo árabe certamente se sentem gratos pelo apoio moral do Vaticano. Porém, o fato é que, no mundo de 2012, o Papa romano simplesmente não exerce grande influência sobre as potências ocidentais, e o apelo da Igreja Católica Romana não parece ser capaz de induzi-las a providências concretas de proteção das populações cristãs árabes. O pontífice de Roma pode exprimir aberta e sinceramente o seu desejo de paz para todos os cristãos da região, católicos ou não, e sem dúvida essa solidariedade não passa despercebida aos acatólicos; mas não vejo o que mais ele possa oferecer além de palavras de alento — e de orações, pelas quais seguramente os acatólicos também são gratos.

    As potências da OTAN, sobre as quais o Papa teria alguma influência teórica, ou se omitem ou apoiam abertamente a derrubada dos antigos regimes remanescentes do pan-arabismo (que, certamente, causaram-lhes muito incômodo no passado) — e nisso necessariamente se acumpliciam com a sua substituição pelos radicais islamistas, que constituem a única oposição organizada nesses países despidos de tradições democráticas. O programa islamista para as minorias cristãs é bem conhecido.

    A única potência militar que está tomando atitudes concretas em sentido contrário — e que portanto, consequentemente, está se engajando pela proteção das minorias cristãs — é… a Rússia, tão desprezada por alguns meios cristãos ocidentais, que dá apoio diplomático ostensivo ao regime de al-Assad na ONU e já despachou reforços à sua frota mediterrânea. E a Rússia, naturalmente, está muito mais sujeita à influência da Igreja Ortodoxa Russa do que da Igreja Católica Romana. (Eu não estou afirmando que os motivos que inspiram o atual governo russo são religiosos; estou simplesmente dizendo que esse país, sejam quais forem os seus objetivos, neste momento e nesta questão está agindo no interesse concreto da Cristandade, ao contrário das potências ocidentais. Aliás, esse padrão de conduta vem se repetindo em algumas outras questões também, talvez mais do que certos círculos cristãos do Ocidente se deem conta; mas isso é outra história.)

    Certamente, as igrejas cristãs do Oriente Médio têm motivos muito mais sérios para definir seus alinhamentos eclesiásticos do que a conveniência política do momento. Mas, francamente, caso elas fossem suficientemente levianas para pôr esse fator em primeiro lugar, faria mais sentido para as igrejas católicas de rito oriental romperem com Roma e retornarem ao seio das igrejas ortodoxas locais (das quais muitas saíram) do que o contrário. O apoio de Moscou parece ser mais efetivo do que o de Roma.

  13. Ao R. B. Canonico: no Líbano atual, os muçulmanos também são maioria absoluta, cerca de 60% da população. A parcela de 40% não é a de maronitas, mas sim a totalidade de cristãos do país, somando-se todas as confissões. Os cristãos libaneses em comunhão com Roma somam aproximadamente 25% da população do país (20% maronitas, 5% melquitas).

    O que salva a minoria cristã libanesa da opressão islâmica é a profunda divisão entre os muçulmanos libaneses, divididos mais ou menos igualmente entre sunitas e xiitas. Dessa forma, os respectivos radicalismos se opõem.

  14. Ricardo Leal:
    Bagdá beneficiou-se de sua vizinhança com a Pérsia, e para está cidade geograficamente afortunada afluiram centenas de vultos das artes e ciência, emigrados de uma Pérsia recém conquistada e decadente;

    Tal como um dia no passado, gregos notórios haviam afluido à Roma, e alí disseminado sua arquitetura e saber. A relação que o islã estabeleceu com a pérsia, foi parecida com a relação que os Romanos estabeleceram com os gregos, tão evidênte na arquitetura de Romana.

    A arquitetura árabe, na verdade é persa; tetos abobadados, e portais ornados, é um estilo de construir típicamente iraniano antigo, que difundiu-se para terras vizinhas, inclusive norte da índia (taj mahal)

    Os propalados algarismos arábicos, são Persas. Sua concepção pertence à Al-Kwarizm, um iraniano nascido no Uzbequistão atual; A medicina árabe, tem seu mais famoso vulto em Avicena, mas este foi um iraniano de Bucara, Uzbequistão atual

    Podemos supor que o esplendor cultural que Bagdá um dia viveu, deveu-se somente à sua sorte geográfica, de ser um lugar fronteiriço à uma Pérsia em declínio hegemônico

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