As lágrimas da Criação

A árvore da Vida não conhecerá mais primaveras: é madeira seca; com ela se farão ataúdes para nossos ossos, nossos sonhos e nossas dores.

Cioran

And for all this, nature is never spent;

There lives the dearest freshness deep down things;

And though the last lights off the black West went

Oh, morning, at the brown brink eastward, springs —

Because the Holy Ghost over the bent

World broods with warm breast and with ah! bright wings.

Gerald Manley Hopkins, “God´s Grandeur”

Enquanto este texto começa a ser escrito – e, ao mesmo tempo, pensado, refletido e prestes a se transformar em realidade no exato momento em que as palavras deslizam pela página branca e adentram na mente de quem irá lê-las – as pessoas que sairão de suas casas para assistir A árvore da vida (The tree of life, 2011), a obra-prima de Terrence Malick, na vã esperança de se divertirem com um mero entretenimento, terão a mesma reação descrita na sentença de Cioran: a de que nada mais vale a pena já que a alma se tornou muito pequena.

O filme de Malick é a prova de que ainda existe alguém que resolveu andar na contramão da História. No caso da História tal como conheceremos, tudo indica que, em breve, estaremos vivendo em um mundo repleto de ateísmo, de desintegração moral que nos remeterá ao deserto onde o personagem de Sean Penn, Jack O´Brien, caminha como se fosse um peregrino pronto para recitar os versos correspondentes de T.S.Eliot em The Waste Land. Outros detalhes que corresponde o filme com a nossa realidade se avolumam cada vez mais – e o público de cinema parece ser um teste de Rorschach para estas evidências: a incapacidade de se concentrar, de escutar uma simples melodia daquele gênero tão antiquado que agora chamam de “música clássica”, de ouvir o próprio silêncio que emana da tela, de perceber que você não está vendo uma mera obra de arte e sim uma meditação sobre algo que o espectador não consegue mais perceber que perdeu há muito tempo.

Ou não perdeu de forma alguma e estamos aqui apenas reclamando. Terrence Malick fez cinco filmes em mais de quarenta anos de carreira e sequer deu uma única entrevista para explicar sobre o que é a sua obra. Não precisa. A explicação, se existe, está claríssima: toda a sua obra é sobre a presença que emana das águas, também apelidada de ruach em um certo livrinho chamado Gênesis, e que hoje apelidaríamos de “espírito”. O tal do ruach é demasiadamente ambíguo para que, às vezes, se metamorfoseie em destruição – como é exposto no primeiro filme de Malick, Badlands (1973), que conta a odisséia de um casal de jovens assassinos, e também na sua terceira película, o colosso cinematográfico sobre as guerras que travamos dentro e fora de nós, Além da linha vermelha (The thin red line, 1999) – ou nos instantes de criação sempre expostos para quem quiser ver, em especial nas tomadas de natureza que abundam em Dias de Paraíso (Days of Heaven, 1978) e em O Novo Mundo (The New World, 2005).

Se Malick sumiu por vinte anos, supõe-se que a razão era a mesma de que qualquer artista precisa de tempo para fazer a sua função óbvia: a de criar com a maturidade necessária para refletir somente sobre as primeiras e as últimas coisas. O resto é perfumaria. Seus anos de aprendizado como estudante de filosofia – foi responsável por uma tradução de Heidegger, leu assiduamente Wittgenstein e teve como tutor ninguém menos que Stanley Cavell, um dos papas da filosofia analítica na língua inglesa – o ensinaram a se ater somente no essencial, a narrar e a filmar sem firulas, num domínio completo entre forma e conteúdo. Cada corte é preciso tal como um teorema de Guilherme de Ockham: Malick mostra a ação em fragmentos para que o espectador tenha a impressão objetiva do que está acontecendo na cena e faça as justaposições necessárias que depois serão a verdade subjetiva do filme quando ele estará completado na sua memória. O cinema não é apenas um meio de expressão: é a linguagem que Malick encontrou para fazer filosofia e se questionar sobre o que realmente importa na vida de qualquer um.

Só dois diretores conseguiram fazer isso que Malick alcançou em sua filmografia: Stanley Kubrick em 2001 – Uma odisséia no espaço (1968) e F.W. Murnau em Aurora (1929) (Poderíamos citar também Dreyer, Tarkovski e Bresson nessa categoria, mas estes são cineastas que usam mais a pintura do que propriamente as idéias para expressarem suas visões de mundo. São pensadores da luz, não pensadores do logos que, com a falência da palavra neste mundo jogado aos cães, manobram as imagens para dramatizar suas idéias). O primeiro é citado por Malick em A árvore da vida na ambiciosa cena da criação do mundo, com planetas e luas que foram concebidos por ninguém menos que Douglas Trumbull, o mesmo homem que supervisionou os efeitos de 2001, tudo ao som de Lacrimosa, o pungente trecho de Zbigniew Preisner feito em homenagem ao amigo Krzysztof Kieslowski; o segundo pode ser percebido no modo como Malick conduz o trecho central de seu filme, a história da família O´Brien na cidadezinha de Waco, Texas. Sentimos a mão de Murnau guiando a câmera quando ela filma a relação da natureza com as ações do Jack que, pouco a pouco, descobre a maldade dentro do seu coração por meio daqueles momentos que ninguém assiste exceto nossa própria consciência – os atos sem testemunha em que ficamos sozinhos com nós mesmos e, olhe só, com aquela presença que emana das águas e que nos observa sub specie aeternitatis.

Contudo, Malick não cai no perigo da frieza kubrickiana perante a indiferença da natureza, muito menos tende ao kitsch irônico que Murnau poderia resvalar em algumas cenas de seus filmes (é só lembrarmos de A última gargalhada). Há uma doçura próxima de um Marcel Proust na evocação da infância, uma doçura justa e necessária já que fica claro que, para Malick, um cineasta que buscou sempre uma espécie de paraíso perdido (especialmente em Além da linha vermelha e em O novo mundo), a verdadeira utopia é o próprio passado e que só pode ser alcançada mediante uma entrega interior completa com sua própria morte e seus próprios mortos. Ao mesmo tempo, esta entrega é uma libertação porque, afinal, temos de deixar os mortos enterrarem os mortos – os vivos estão mais ocupados vivendo a vida que querem perder a qualquer custo.

A infância é o palco de combate entre a graça – personificada pela mãe de Jack, quieta, resignada e altiva – e a natureza – representada pelo pai, disciplinado, rancoroso e impotente – para que Jack, agora adulto e angustiado por uma ausência de fé que não sabe como perdeu, possa ficar em paz com o mundo, mesmo que tenha de morrer de alguma forma para este último. Ele é um arquiteto, um homem capaz de criar do nada, mas a sua criação é fria, perfeita demais. Falta a ela as lágrimas que acompanham o Gênesis de tudo, as lágrimas que amolecem o barro que é feito o ser humano e que, se não as tiver em algum momento de sua existência, ficará seco e duro se for exposto somente à luz do sol. A natureza (o pai) se rende à graça (a mãe) porque não há outra maneira de viver; e confesso que toda vez que via uma tomada que envolvia o elemento “água” – uma cachoeira, um rio, uma fonte, uma tormenta – não pude deixar de pensar que Malick talvez conversava consigo mesmo sobre um verso de W.H.Auden: Thousands have lived without love, not one without water.

A água não apenas limpa o nosso corpo ou o nosso espírito; ela também nos dá o mínimo de vida necessária para suportarmos a luz feroz da condição humana. Quem viveu tal ferocidade no seu limite foi Jó, o homem justo cujo livro é citado por Malick na epígrafe de abertura do seu filme: Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Quando juntas cantavam as estrelas da manhã, e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo? Ao relacionar o momento da criação do mundo com a singela história de uma família texana, fica-se tentado a pensar se não seríamos todos pequenos Jós, precisando da água para vivermos decentemente, derrubados por um vento que não se sabe para onde sopra e incapazes de fazermos o que queremos e sim o que não desejamos. Malick responde afirmativamente a isto tudo. No trecho bíblico usado como epígrafe, Deus pergunta a Jó onde ele estava quando o mundo foi criado e nós fazemos a mesma pergunta a Ele quando sentimos o chão se abrir sob nossos pés. Tal tensão só pode ser resolvida de uma única forma: a reconciliação entre homem e Deus.

Jack O´Brien é o homem que perdeu o contato da presença de Deus em sua vida – e boa parte da humanidade seguiu este caminho. Ele é o nosso everyman, um artista que, como o Stephen Dedalus de James Joyce, vê em sua própria história ecos de um pesadelo que ele desconfia que jamais acordará. Entretanto, Malick age em seu filme como um sensor que capta os movimentos espirituais desta luta interior e assim cada imagem não é mais uma imagem e sim um símbolo que aponta para um invisível que desconfiamos que pode estar . É uma obra que, ao falar dos tormentos da criação, se cria conforme o espectador o assiste na sala de cinema e cria-se conforme o seu diretor expõe as imagens à luz da tela (não por acaso, o primeiro e o último frame é uma homenagem às lumia de Thomas Wilfred, que dizia que o material de todo artista deveria ser a luz e nada mais); a criação, quando ela ocorre, é um processo sem fim, que se estende à eternidade, que se recria a todo instante e que, por isso mesmo, só pode ser exprimida pelos gemidos de que São Paulo falava em suas epístolas.

Estes gemidos são ouvidos no grito da mãe que perdeu o filho, na nuvem de pássaros que circula os arranha-céus de forma ameaçadora (um plano que nos assusta pela sua beleza e que nos faz perguntar como Malick conseguiu captar aquilo), na toccata de Bach que o pai desiludido executa a um filho que ainda acredita que ele é seu herói, nos réquiens que Malick faz questão de acompanhar Jack quando este, finalmente, atravessa o pórtico da morte para enfim ter um vislumbre do eterno. O mal é evitado enquanto somos educados como crianças, mas quando nos deparamos com ele no nosso coração, o encontro é terrível e nos dá a sensação de um beco-sem-saída; só o reconhecimento dos nossos erros – como faz o pai de Jack, ao se render à glória da criação que está ao seu redor, mesmo tendo uma vida repleta de fracassos – nos dá a liberdade que perseguimos a tanto custo.

Há um adágio que diz: nex lux sine ombra. Não há luz sem sombra – e vice-versa. Terrence Malick pensa com a luz que vem entre as palavras sussurradas e luta com as sombras com as quais seus personagens tentam impor no mundo. Em pleno 2011, com a História tentando provar que a atitude de Cioran é a mais prudente (e sendo imitada com peculiar estupidez por críticos cinematográficos que sequer sabem reconhecer o que é uma obra-prima quando ela está embaixo dos seus narizes), temos um artista que nos dá de presente uma criação que nos revela nada mais nada menos a grandeza de Deus – da mesma forma que, no século XIX, o poeta Gerald Manley Hopkins fez com seus sonetos e longos poemas. Assim como um sacerdote da luz que necessita dela porque não há mais uma comunicação substancial pela palavra, Malick opta pela “reclusão” (uma forma de ofendê-lo só porque ele não fala com estes prostitutos da linguagem que são os jornalistas) para que as pessoas entendam o que está realmente em jogo: as lágrimas da Criação da qual todos nós fazemos parte, lágrimas que podem ser identificadas também como nossas, porque, afinal, apesar de fazermos o possível para exaurir a natureza e destruir a graça, nosso choro é de júbilo e a nossa pergunta é um grito que ecoa por toda a eternidade, como jamais aconteceu antes ou depois.

5 comentários em “As lágrimas da Criação

  1. Marcelo, por isso que em certos meios mais bondosos ela é mais conhecida por Isabela Bocóv (de bocó de mola), já nos meios mais malvados é Isabela Bostóv (de..não sei da onde).

  2. Assisti, num shopping, num domingo, na sessão das 14:00. Foi interessante ver as pessoas saindo do filme antes depois de uns 30 minutos de filme. Os que ficaram souberam (na maioria) se comportar, não se ouvia nem um pio. A pipoca de alguns esfriou. No fim alguns comentários bobos.

    Ah!, sim, eu assisti o filme e gostei.

    Gostei ainda mais desta análise, parabéns!

    Abraços,

    Henrique Santos

  3. Tive exatamente a mesma experiência do Henrique (assisti ao filme no Kinoplex – Itaim)!

    O Marcelo Gleizer escreveu um artigo sobre esse filme em sua coluna de Ciências na Folha desse domingo. Percebe-se que ele perde muito do sentido do filme, não tanto por seu ateísmo ou crença num deus spinoziano, mas por não compreender o conceito cristão de graça.

  4. Eu estava esperando alguém escrever mais de dois parágrafos sobre um filme de 2h do Malick para que eu pudesse, então, escolher ir ou não ao cinema.

    Martim, você viu “Melancolia”? Qual a sua opinião a respeito? Von Trier e tal… Haja paciência?

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