As lições obscuras

Quinhentos anos separam Dante Alighieri de Henry James, mas o mercado editorial brasileiro tratou de reuní-los com os lançamentos da gigantesca biografia de Barbara Reynolds sobre o poeta florentino (“Dante”, Editora Record) e de “A outra volta do parafuso” (Cia das Letras), a novela mais famosa do escritor americano, naturalizado inglês. Os anos não significam muita coisa quando se trata de dois mestres: Dante é o pilar da literatura mundial, com seus poemas, tratados filosóficos e, principalmente, com sua “Comédia” (o adjetivo “Divina” foi cortesia de Boccaccio e assim ficou); Henry James mudou a arte do romance no século XX, influenciando pessoas do calibre de James Joyce, Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Vladimir Nabokov e até mesmo o português Antonio Lobo Antunes.

Henry James pode ser o mestre no gênero romance, mas ele não existiria sem Dante Alighieri. Superlativos se tornam clichês quando se fala do poeta de Florença, o homem que estendeu aos limites da linguagem a expressão da transcendência e do inefável. Tudo o que se pode pensar que foi feito na literatura, Dante já fez antes de todos – e melhor que qualquer um. Segundo T.S.Eliot, um sujeito que levava a sério o que lia e o que pensava, o único que poderia se igualar a Dante seria Shakespeare e ainda assim, o misterioso Sacode a Lança perderia por alguns pontos por não ter a mesma “riqueza imaginativa”.

Realmente, “riqueza imaginativa” é o que não faltava a Dante, até porque a sua imaginação não era uma mentira. Erich Auerbach acertou na mosca quando afirmou que o leitor que tinha um primeiro contato com a obra de Dante deveria entendê-la como a manifestação de uma alma atormentada na procura de uma unidade por trás da mudança e, por isso, só poderia traduzí-la em palavras por meio de visões. Sua poesia é visionária ao extremo, chegando ao ponto de fazer algumas profecias na “Divina Comédia”, nitidamente inspiradas no pensamento gnóstico de Joaquim De Flora, mas há um profundo vínculo humano que o torna próximo de nós, que é justamente a sua meditação sobre “a condição obscura do Amor”.

Hoje em dia, até uma criancinha do primário sabe da paixão que Dante Alighieri teve por Beatriz Portinari. Já virou um melancólico conto da carrochinha: aos nove anos de idade, Dante viu a pequena Beatriz e logo sentiu um tremor que o apossou na “câmara secreta de seu coração”. Ele a veria novamente nove anos depois, quando Beatriz o cumprimentou com sua graça peculiar, e Dante se sentiu o homem mais abençoado do mundo. Uma benção que duraria pouco: Beatriz casaria com um outro pretendente e morreria de tifo dois anos depois.

Dante poderia ter ficado inconsolado, mas fez mais. Em homenagem a Beatriz e para recuperar o amor que nunca teve, criou os poemas de “Vita Nuova” e a catedral minuciosa da “Comédia”, com seus versos em terza rima, narrando a caminhada do próprio poeta pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, acompanhado por Virgílio (o criador de “Eneida”, o poema romano por excelência), até o seu reencontro com a amada perdida.

Mas uma obra poderosa como a de Dante Alighieri não é apenas sobre uma mórbida dor de cotovelo. É a prova de que a humanidade vale a pena neste mundo de incertezas. Quem não leu Dante sequer pode ser chamado de ser humano. Ele é tudo o que a arte da poesia foi e poderia ter sido, se o resto do mundo não tivesse escolhido a bárbarie dos versos concretinos e do multiculturalismo anti-cristão. Seus poemas são o retrato mais perfeito de uma inteligência que sempre buscou uma forma de unir as duas pontas da vida – a da ilusão e a da realidade – para encontrar, embaixo das aparências, a unidade do espírito.

Henry James pretendeu seguir a mesma meta. Entretanto, se Dante é o representante máximo do fim da Idade Média e o início do Renascimento, James é a ponte que liga o romance realista do século XIX com o modernismo que busca imitar a percepção humana. Somente uma pessoa conseguiu igualar James nessa proeza – e ela foi Machado de Assis. Aliás, Machado e Henry James têm muito mais em comum do que sonha a nossa vã literatura, e uma das provas do nosso desastre cultural é que nenhum crítico literário teve a coragem para fazer um estudo sério sobre estes dois gigantes, que provaria não só a genialidade do Bruxo de Cosme Velho, como também o pioneirismo do Velho Solteirão.

“Velho Solteirão” era o apelido no qual os detratores de James o chamavam para ridicularizar sua total dedicação à literatura ao escolher o celibato. Assim como Dante, James era uma prima-donna que via nas palavras a única maneira de unir os fragmentos que restavam da sua civilização. Dominou os gêneros do conto, romance e ensaio como poucos, apesar de ter sido um fracasso completo no teatro. “A Figura no Tapete”, “Retrato de uma Senhora”, “A Arte da Ficção” são exemplos de um escritor que procurava nos meandros da mente humana, a mesma “condição obscura” que Dante tentava iluminar com sua poesia.

A diferença essencial entre Dante Alighieri e Henry James é a forma como tentam buscar a luz. James é muito mais pessimista, enquanto Dante tem a velha e boa esperança cristã amparando-o sempre. James prefere a ambigüidade, a incerteza, a indefinição de sentimentos, a relatividade de um mesmo fato permeando diferentes pontos-de-vista no momento de narrar a história; Dante quer ser tão claro em suas descrições que cada parte da “Comédia” parece ser um quadro arrancado de sua mente, na certeza de que a aventura heróica da fé, apesar de ser árdua, é a única maneira de ser pleno nesta vida; James retorce o seu estilo, tornando a consciência humana uma espécie de átomo, no qual cada parte é esmiuçada até o fim, criando o efeito fascinante ao leitor de conhecer cada vez menos o personagem que se apresenta à sua frente; Dante condensa os versos, deixando-os mais compactos e cristalinos à medida que se aproxima do inefável (como nos últimos cantos do “Paraíso”), mesmo que isso leve-o a forçar o seu espírito ao um limite exasperante.

Hoje em dia, ninguém mais lê a “Divina Comédia” porque anos e anos de Chico Buarque e Paulo Coelho escravizaram o brasileiro numa literatura baixa, repleta de perversões que só podem ser expiadas através de rituais de pseudo-religião. E quando alguém se interessa por algum livro de Henry James, é para descobrir algum recalque freudiano que revelará uma suposta homossexualidade ressentida do “Velho Solteirão”, ou para analisar as classes sociais na Inglaterra e nos EUA no melhor modelo marxista, esquecendo-se que James foi um dos grandes investigadores de como o Mal se dissemina no coração humano. Mesmo com esses lançamentos recentes no nosso mundinho editorial, Dante Alighieri e Henry James se tornaram dois fosséis mal-tratados para o zeitgeist cultural brasileiro. Esta ignorância é o estofo do qual os pesadelos são feitos.

3 comentários em “As lições obscuras

  1. Pondo de lado, por um instante a beleza literária da “Comédia”, um cristão bíblico (protestante) como eu poderia achar que Dante – apesar de papista, mas sempre cristão – morrera com dor-de-cotovelo, mesmo, ao fazer questão de por Beatriz no Paraíso ao lado dele. Ora, quem mais medita na Bíblia dia e noite (Salmo 1.2) do que perde tempo com obediencialismo servil a homens, esse sabe que no Paraíso, seremos como anjos e não nos casaremos jamais (Marcos 12.25). Entretanto, sei que da mesma forma como ocorre na Filosofia, a Literatura é uma espécie de tagarelice (especulação) no final das contas até que útil para a Arte e para a vida.

    Parabéns pelo artigo.

  2. Há quatro anos dou um curso de literatura e leitura dos clássicos para jovens e adolescentes de uma cidade aqui do interior do Paraná. São os mesmos jovens nesses quatro anos. A garotada já leu de tudo, de Sófocles a Shakespeare, de Cervantes a Huxley, passando por Homero, Platão, Eurípides, Molière, Racine, Manzoni, Goethe, Stevenson, Conrad, Camus, Dostoievski, Swift, Orwell, Machado, Flaubert, etc, mas no ano passado resolvi engrossar a ração com Dante. Três meses de Divina Comédia depois, o jovens sumiram, os que ficaram quase morreram e me olhavam com aqueles olhinhos inquietos: “por que fez isso conosco?”. O pessoal só se acalmou e os foragidos só retornaram quando prometi, para o ano seguinte, ocuparmo-nos só do autor que eles mais gostaram: Shakespeare. Até hoje não consegui compreender exatamente o que aconteceu e minha hipótese é que, por mais que esses autores sejam uma chave que abre o espírito para a luz transcendente, Dante é luz demais, dá vertigens e enxaquecas. E se for assim como penso, maior é minha convicção de que ele é o antídoto para o fechamento do espírito moderno.
    Já o Henry James não causou nenhum trauma, só o susto mesmo e aquele frio na espinha.
    Gostei do paralelo, para mim até então improvável, entre os dois autores.
    Abraços

  3. Nosso desastre cultural continua grande, mas há sim um estudo de Marcelo Pen Parreira, professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, sobre os dois genios. Procure “Estratégias do falso: realidade possível em Henry James e Machado de Assis” que procura tratar de confluencias nas obras dos dois autores. A tese está disponivel também na internet.

    Mauro.

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