Celtic Fields Forever

Entre os anos de 1927 e 1939, Gudmund Hatt descobriu na Jutlândia, parte hoje da Dinamarca, um certo número de viereckige Äcker, terrenos quadriculados. Eles datam de época pré-histórica e são parte de um antiquíssimo sistema de agricultura. Rapidamente o nome celtic fields inundou o mundo científico; a razão é que se tratava de uma surpresa – como podiam homens pré-históricos utilizar uma técnica tão avançada de agricultura, quase tão avançada como a centuriatio romana, sobre a qual os historiadores insistem em dizer que era já muito complexa para os tempos da fundação de Roma? (Aqui discordo deles. A centuriatio data provavelmente de antes do séc. VI a.C., e os restos da centuriação mais antiga encontrada em Terracina, do séc. IV a.C., não são uma prova de que ela não tivesse existido antes).

Evidentemente, não vou falar aqui de agricultura. O que o assunto confirma é uma velha idéia de Chesterton: nossos antepassados não eram burros. E isso não só cientificamente, como também humanamente. Não estou de acordo com o mito supostamente islâmico dos “macacos saindo dos homens”, uma espécie de evolucionismo ao contrário, mas é bom lembrar de vez em quando que muitas vezes nossos mitos são ainda mais absurdos.

Outro exemplo da “não-burrice” dos nossos antepassados é a sua língua. Desde o séc. XIX, desde Franz Bopp e gente do tipo, tentou-se criar uma hipótese sobre uma ‘base retroativa’ comum ao latim, ao grego, ao sânscrito (esp. o que veio antes, o védico, muito bem documentado), ao zend-avesta, etc. O resultado é uma língua inteligente, complexa, extremamente rica: o indo-europeu. Quem for a um congresso da UCLA saberá do que falo. É muito mais difícil dominar o sânscrito do que qualquer língua moderna; e o védico é ainda mais rico em termos de vocabulário. E assim por diante. Há 100 anos se tem insistido que o latim ajuda na formação intelectual, embora toda a gente o julgue coisa de velhos, algo inútil e ultrapassado. Algumas línguas ligadas a povos bastante primitivos exibem a mesma particularidade: senso comum, capacidade de descrição extremamente concreta, flexibilidade, riqueza poética, a ponto de fazer o inglês atual (não o de Shakespeare, por favor), mesmo literário, uma coisa de bárbaros.

Divirto-me pensando em antigos pirralhos gregos “das elite” discutindo filosofia. Mas como seria a vida sentimental, os modos, a sensibilidade dos antepassados dos babilônicos? Há sinais arqueológicos imediatos de civilização entre aquele pessoal pelo menos desde 7.500 a.C. Por que não antes? De certo nos surpreenderíamos com o fato de que, além de um pouco rudes, esses seres hipotéticos podiam ser extremamente irônicos ou mesmo simplesmente divertidos. É um bom exercício de imaginação.

Muitas vezes o que estraga a nossa representação é o excessivo peso colocado sobre o que pensamos fosse a sua religiosidade, os seus taboos, o seu ritualismo imbecil. Não duvido que se dessem, dentro dessa selva de obscurantismo, os seus exemplos de livres pensadores no bom sentido, antepassados de Heráclito und so weiter.  E com isso não quero reforçar o péssimo hábito que têm os diretores de cinema ocidentais de achar que em cada família do passado houvesse uma corajosa Lisa Simpson que questionasse gratuitamente, com a cabeça de um homem do séc. XX ou XXI, as crenças e as ideologias vigentes.

André Maurois, após ler The Everlasting Man, escreveu algo interessante: “Descobri que a ciência moderna nada sabe sobre o homem pré-histórico, e isso pelo simples fato de que ele é pré-histórico” (Poets and Prophets, p. 120). E isso, se tivermos senso crítico, dá o que pensar.

12 comentários em “Celtic Fields Forever

  1. Sobre esse tema há um excelente texto de Henri de Lubac chamado “A origem das religiões”. É encontrável na seção de artigos da no site da Editora Quadrante (www.quadrante.com.br).

    Ele fala coisas muito parecidas com o que o Júlio escreve aqui.

  2. (…) isso sem falar nas cidades-estado do alto xingu, no mato grosso (upper xingu lost cities)
    que abrigaram cada uma em torno de 30 mil almas (…)

  3. Caro,

    Este estudo comparativo das línguas foi feito antes do Bopp, e mais precisamente em 1786, quando o estudioso William Jones chegou a declarar: “o sânscrito, sem levar em conta a sua antiguidade, possui uma estrutura maravilhosa: é mais perfeito que o grego, mais rico que o latim e mais extraordinariamente refinado do que ambos.” E essa suposta diferença entre o sânscrito védico e o clássico, no que diz respeito ao vocabulário, não existe, isso porque no sânscrito todas as palavras (todas!) saem de um grupo 3.865 raizes verbais “fechadas”, e a estrutura de formação de palavras inclusive é a mesma. O que marca essa transposição do védico para o clássico é a gramática de Panini (IV a.C.), que hoje está sendo usada para estudos de programação computacional e tudo, tamanha a sua sofisticação. Mas isso para não falar no Amarakosha ou no Nirukta e Nigantha, que eram tratados etimológicos védicos mais antigos que a gramática de Panini. Estamos emburrecendo, meu caro, se olharmos para como nossas línguas antigas eram estruturadas e o recurso lógico-mental que precisaríamos para lidar com elas. Gostei muito de seu texto!

    Abraço.

  4. Caro Davi: vc tem toda a razão, trata-se de The Everlasting Man.

    Caro Leonardo: obrigado pelos eruditos comentários! O que eu quis dizer com o vocabulário do védico é pura lexicografia documental… O sânscrito pode fazer uso das mesmas palavras, dentro da sistematização de Panini, mas documentalmente ele não traz o mesmo número. Ou estou enganado? Quanto a W. Jones, ele e Bopp se complementam, mas Bopp, vamos dizer assim, saiu na frente do ponto de vista da divulgação.

    Wagner, valeu pela indicação.

    Abraços!

  5. Julio: quanto a documentação védica, sim, você está certíssim; embora, veja só!, o sânscrito não é língua “morta” como muitos pensam, e a literatura filosófica da época medieval pra cá também é vasta. E quanto ao Bopp, sim, ele saiu na frente na divulgação. E só para constar, duas informações bacanas: a primeira gramática sânscrita escrita por um europeu é de 1800; e o que Chomsky fez com respeito à gramática gerativa-transformacional (que acho bem interessante) foi voltar à estrutura linguística de Panini. Bem, este assunto é fascinante, e eu adoro! Abraço.

  6. É verdade que os nossos antepassados não eram nada burros, e suas línguas complexas estão aí para prová-lo. Mas também não concordo que o mero fato de uma língua ser mais complexa torne-a uma língua melhor.

    Nada há que as línguas antigas expressem que as modernas não possam expressar, e o fazem com muito mais simplicidade.

    Estudante de latim que sou, adoro aprendê-la, o que me leva a pensar de maneira diferente na relação entre os termos das orações e até mesmo sobre as coisas. Mas não posso deixar de ver um grande avanço na passagem dele para as línguas européias modernas não-declinadas.

  7. Joel, de fato as línguas modernas têm o seu charme. Mas muitas têm ainda mais declinações (digo, casos) que o sânscrito… Como o tcheco, o russo, o georgiano, e sabe lá quais mais. O turco tem, segundo algumas descrições, de 10 a 12. O basco tem 15, embora esteja longe de ser uma língua moderna… Acredito que o alemão consiga manter um bom equilíbrio entre a ‘declinabilidade’ e a fluidez sintática, especialmente na língua falada, apesar de muitos ainda o descreverem como um brinquedo do tipo Lego…

  8. Leonardo, não estou bem informado sobre a história do estudo ocidental do sânscrito, mas me parece que ele foi estudado – para fins não científicos – por europeus ainda antes do séc. XIX: basta citar o caso dos missionários na Índia, no séc. XVI. Robert De Nobili esteve na Índia a partir de mais ou menos 1600 e chegou a traduzir alguma coisa dos Vedas para o inglês (M. Müller considera-o o primeiro estudioso europeu do sânscrito). Há algum tempo li um relato de um desses missionários; o sujeito chegou escrever um poema épico em sânscrito contendo noções ‘monoteísticas’ e estrutura compatível com a da metafísica ocidental na tradição tomística com a finalidade de preparar os brâmanes para entender o cristianismo. Até hoje não consegui encontrar a citação referente. Tens alguma idéia a respeito?

  9. Julio, consta que o primeiro estudioso ocidental do sânscrito (documentado) foi um missionário italiano, Filippo Sasseti, ele foi o primeiro estudioso da língua e sua estrutura, no século XVI; o Nobili é do século XVII, da mesma época de outro, um alemão chamado Heinrich Roth. O Sasseti foi este que você cita que chegou a escrever um “falso veda” (Ezour Vedam) para introduzir conceitos cristãos na India. Este trabalho chegou inclusive às mãos de Voltaire, que pensou se tratar de um Veda original… Outra coisa: quando me referi a primeira gramática de sânscrito no ocidente sendo de 1800, foi a primeira publicada, porque há relatos de uma gramática do sânscrito em latim (Dictionarium Malabaricum Samscrdamicum Lusitanum) escrita por um alemão, mas que não foi publicada. Bem, isto são estudos diacrônicos, mas acredito que os sincrônicos são ainda mais fascinantes, os filológicos mesmo, ou linguísticos.

  10. Ezour Vedam, falou e disse! Refrescou minha memória… Tinha até esquecido da história surreal do Voltaire. Se você mora em São Paulo, qualquer dia tomamos um café. Abraço!

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