por Jonas Lopes.
“O domínio que a vulgaridade intelectual exerce sobre a vida pública de hoje é, talvez, o mais novo componente da situação atual, o menos assimilável a qualquer coisa do passado. Pelo menos na história europeia até hoje, o vulgo nunca havia achado que tinha ‘ideias’ sobre as coisas. Tinha crenças, tradições, experiências, provérbios, hábitos mentais, mas não se acreditava possuidor de opiniões teóricas sobre o que as coisas são ou devem ser – por exemplo, sobre política ou sobre literatura” (José Ortega y Gasset)
“É provável que nunca na história se tenha escrito tantos tratados, ensaios, teorias e análises sobre a cultura como em nosso tempo”, escreve Mario Vargas Llosa na abertura de seu livro mais recente, o ensaio La Civilización del Espectáculo. “O fato mais surpreendente é que a cultura, no sentido tradicionalmente dado a esse termo, está em nossos dias a ponto de desaparecer”. A partir de uma premissa posta de maneira tão incisiva, o escritor peruano, Prêmio Nobel de Literatura em 2010, estabelece uma digressão não muito otimista sobre a atual situação da cultura, ou melhor, da alta cultura, resultado de quedas constantes nos padrões de gosto, por razões diversas, e de movimentos paralelos, porém contraditórios: tanto o da banalização promovida pela indústria de entretenimento quanto o do hermetismo crescente causado por teorias acadêmico-estruturalistas que tornam a cultura um objeto obscuro. Razões à parte, a queda do padrão de gosto é um fato indiscutível, e quem busca enfrentar o problema não raro é chamado de “elitista”, “aristocrata”, “esnobe”. Highbrow virou palavrão, à direita e à esquerda; os dois lados têm seu quinhão de culpa.
Vargas Llosa começa o texto repassando algumas teorias anteriores sobre o assunto, com destaque para três. Notas para a Definição de Cultura, de T.S. Eliot, pode ser considerada uma abordagem mais conservadora do assunto, visto que o autor dos Quatro Quartetos, embora tenha acertado ao diagnosticar, já em 1948, a queda dos padrões culturais, polemiza e prega que a alta cultura é patrimônio de uma elite, e que “é uma condição essencial para a preservação da qualidade da cultura de minorias que continue sendo uma cultura minoritária”. Eliot ainda exagera na associação da religião à cultura. Ora, de fato, não podemos negar a importância da tradição religiosa ao longo de muitos séculos de desenvolvimento cultural – sem ela, não teríamos Bach, Dante e Michelangelo, o que já é argumento suficiente –, mas faltou ao americano observar que a partir do século 20 a fé cumpre na cultura uma função diferente, menos fundamental, apesar de ainda presente, vide as composições de Olivier Messiaen, a literatura de Georges Bernanos e a poesia dele mesmo, Eliot. Hoje o que falta na arte é certo norte espiritual no ato da criação, ainda que um norte de cunho agnóstico, um assunto mais bem explorado em Gramáticas da Criação, de George Steiner.
Alguns anos depois das Notas, talvez aquele que seja o intelectual que se debruçou de maneira mais aguda sobre a questão da alta cultura, o próprio George Steiner, escreveu uma firme resposta ao poeta em No Castelo do Barba Azul (cujo subtítulo é, por sinal, “algumas notas para a redefinição de cultura”). A bronca de Steiner, judeu, era quanto ao fato de Eliot, cristão, ter ignorado as questões da então recém- terminada Segunda Guerra Mundial e do Holocausto. Steiner, de fato, transformou em ponto central de sua obra a dúvida sobre como foi possível haver homens que durante a noite ouviam Schubert e liam Rilke e, de dia, exterminavam judeus nos campos de concentração. Nunca mais foi possível, depois de Steiner, associar alta cultura à decência moral de maneira indiscutível. O terceiro teórico abordado por Llosa é, naturalmente, Guy Debord. Difícil falar de indústria de massa sem lembrar-se de A Sociedade do Espetáculo. Llosa elogia o diagnóstico de Debord, mas, acertadamente, critica sua proposta, tola e autoritária, de que o restabelecimento de valores deve ser feito por meio de um processo revolucionário.
Ao invés de tecer uma teoria numa frente única, Vargas Llosa explora razões distintas para a decadência da alta cultura, o que serve também para diminuir a chance de as teses datarem logo. É evidente que a cultura de entretenimento, cuja influência não para de crescer desde a Segunda Guerra Mundial, é a protagonista de La Civilización del Espectáculo. O entretenimento, defende Llosa, banalizou a cultura. É óbvio também que a alta cultura em momento algum dominou a sociedade. Não estamos falando aqui de Proust vendendo milhões de exemplares ou de multidões comprando discos de Herbert von Karajan regendo Beethoven como se fosse Lady Gaga. Nada disso aconteceu; alta cultura sempre foi consumida por poucos. Nas últimas seis décadas, contudo, houve uma inédita democratização do fenômeno cultural, e nisso inclui-se a música pop, o cinema de Hollywood, os livros com “revelações” sobre temas históricos, os espetáculos de grande porte à Cirque du Soleil, entre centenas, senão milhares de exemplos. Essa democratização é, a princípio, positiva, pois negar às massas a oportunidade de adquirir a cultura que desejar é cair mais uma vez na ideia de Debord, de restabelecimento de qualidade via revolução – e ferramentas do presente, a exemplo de internet e redes sociais, deveriam ser utilizadas como instrumentos de propagação de cultura de qualidade. Llosa não cai nesse autoritarismo da esquerda. Ao contrário: sua filiação ao liberalismo indica um respeito grande à liberdade proporcionada pelo mercado. Acontece que a decadência cultural se deu justamente pelo mercado e pela confusão entre “preço” e “valor” que ajuda a dirigir as políticas culturais. Por que um governo investiria dinheiro numa orquestra, se o show de um popstar atrai mais gente, rende mais dinheiro e, portanto, mais voto? Llosa escreve: “Todos os grandes pensadores liberais, desde John Stuart Mill até Karl Popper, passando por Adam Smith, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Isaiah Berlin e Milton Friedman, assinalam que a liberdade econômica e política só cumpre à perfeição sua função civilizadora, criadora de riqueza e de emprego e defensora do indivíduo soberano, da vigência da lei e do respeito aos direitos humanos, quando a vida espiritual da sociedade é intensa e inspira uma hierarquia de valores respeitada e acatada pelo corpo social”.
A relativização do gosto talvez seja o principal sintoma da cultura de entretenimento. A hierarquia de valores de que fala Llosa costuma ser razão para apedrejamentos, coisa de, como se disse, elitistas, aristocratas, pedantes. Afirmar que Rembrandt é superior a Vik Muniz, defender que há sim diferença entre Gidon Kremer e André Rieu ou entre Virginia Woolf e a autora de Fifty Shades of Gray é pedir para ser crucificado por certa esquerda. Atual secretário de educação britânico, o tory Michael Gove sentiu essa reação na pele ao propor, em um discurso excepcional proferido no ano passado, que a Grã-Bretanha adote uma abordagem “desavergonhadamente elitista” na educação. Gove teve a cara de pau de afirmar, veja só, que há, sim, algo que possa ser chamado de “o melhor”. “Richard Wagner é um artista de gênio sublime, e seu trabalho é incomparavelmente mais recompensador – intelectual, sensual e emocionalmente – do que, digamos, o dos Arctic Monkeys”, ousou declarar. A partir do momento em que a educação resgatar a importância das humanidades para o verdadeiro estabelecimento de uma cidadania – e é ainda mais estranho escrever isso num país em que a estrada para a cidadania consiste não em estudo, e sim em uma nova televisão de plasma –, talvez o mercado consiga, enfim, disseminar cultura de qualidade. O que temos atualmente não passa de um falso livre mercado, que o diga a Lei Rouanet; quem quiser apreciar letras e artes precisa se conformar em ser um outsider, pagar fortunas por ingressos de concertos ou livros importados (quanto aos nacionais, há pockets sendo vendidos por mais de 30 reais…). Inclusive ao ler revistas e jornais, cada vez mais dominados pela linguagem diluída. Restam poucas exceções de imprensa highbrow no exterior, mesmo em temas político-econômicos, como The Economist e Prospect, além de algumas publicações mais diretamente inclinadas à esquerda (New Yorker, New Republic, New York Review of Books) e à direita (Spectator, New Criterion, Standpoint).
Em um ensaio iluminado e, infelizmente, não mencionado por Mario Vargas Llosa em La Civilización del Espectáculo, intitulado “Culture of Complaint”, o grande crítico de arte Robert Hughes (falecido ontem) teoriza sobre o que chama de “dois PCs”. Um deles é o “patrioticamente correto”, que acomete em particular certa direita nostálgica e pateticamente populista (em especial a norte-americana), que não admite mudanças, e o outro é o já mencionado “politicamente correto”, mais comum na esquerda e que rende monstrengos como o multiculturalismo, unido pelo cordão umbilical ao relativismo abordado acima. Hughes publicou o livro no início dos anos 90, época em que o multiculturalismo chegou aos píncaros, com os departamentos de estudos de gênero dominando as universidades americanas e tentando banir dos currículos acadêmicos Mark Twain, pelo suposto racismo em Huckleberry Finn, e até Shakespeare, pelo alegado antissemitismo de O Mercador de Veneza. O próprio Robert Hughes sofreu a patrulha: foi chamado de racista ao demolir nos anos 80 o trabalho do então celebradíssimo (e medíocre) pintor negro Jean-Michel Basquiat. Saul Bellow pode ter errado na forma ao questionar “quem é o Tolstói dos zulus”, e errou mesmo, mas não no conteúdo. Alguém ainda acha que Toni Morrison merecia mais o Nobel do que Philip Roth ou Cormac McCarthy? À época de Culture of Complaint, o então recém-lançado volume Columbia History of American Novel considerava que Harriet Beecher Stowe era melhor romancista do que Herman Melville, pois era mulher, “socialmente construtiva”, e A Cabana do Pai Tomás ajudou a engajar os americanos contra a escravidão, enquanto o capitão do Pequod era um “símbolo do individualismo laissez-faire e capitalista com uma atitude ruim em relação às baleias”.
Há meio século, lembra Vargas Llosa, Edmund Wilson decidia o sucesso ou o fracasso de um livro em seus ensaios na New Yorker e na New Republic. Hoje, tal atribuição é do clube do livro de Oprah Winfrey. É irônico – e triste – pensar que a esquerda tenha se tornado tão relativista, se pensarmos em gente brilhante como Wilson e Lionel Trilling, defensor contundente da alta cultura e muito menos lido do que merece em nossos dias. Grande parte da esquerda encontra-se atualmente contaminada pelas medíocres teorias estruturalistas, que transformam arte em discurso por meio de uma prosa intragável, que eleva o crítico à posição de criador (ou, no caso da arte contemporânea, o curador). Os estruturalistas causaram mais dano à educação de humanidades do que qualquer governo mal gerido.
Chegamos ao ponto em que tudo é cultura – e, portanto, nada o é. O saldo: música dominada por três acordes, refrões produzidos para FM, cinema com predominância de filmes de superheróis, artes visuais limitadas a vídeos, performances e instalações vazias, literatura dividida entre truques pós-modernos e a linguagem simplificada (temática erótica ou religiosa ou histórica; depende da onda do momento) do best-seller. O caso das artes visuais é enganador, já que os maiores museus do planeta estão sempre lotados. Trata-se de um falso êxito. Uma pesquisa recente comprovou que os visitantes dessas instituições permanecem em média menos de dez segundos à frente de cada obra. Visitar o Prado, o Louvre, o MoMA, a National Gallery e a Uffizi não passa de obrigação turística. “A literatura light, como o cinema light e a arte light”, anota Llosa, “dá a impressão cômoda ao leitor e ao espectador de ser culto, revolucionário, moderno e de estar na vanguarda, com o mínimo de esforço intelectual. Deste modo, essa cultura que se pretende avançada e ‘rupturista’ na verdade propaga o conformismo através de suas piores manifestações: a complacência e a autossatisfação”. Não se trata de negar o direito ao prazer no consumo de cultura. Longe disso, aliás. É possível apreciar grande arte e se divertir sem deixar a inteligência cair. Pensemos na literatura de Cervantes, Sterne e Waugh, em determinadas óperas de Mozart, nas peças de Molière e Shaw, nos filmes de Keaton, Lubitsch e Wilder, nas canções de Porter e Gershwin.
É preciso deixar uma coisa clara sobre La Civilización del Espectáculo. Em primeiro lugar, Llosa não é um mero nostálgico que acha que tudo que é bom foi necessariamente criado no passado. Esse costuma ser um problema que domina muitos autores que abordam a estética sob a perspectiva da direita. Um exemplo adequado é Roger Scruton, que nos ensaios Beauty e Culture Counts analisa com acuidade a decadência de valores e o modo como a cultura acabou vulgarizada e diluída em nossos dias. Scruton, no entanto, não consegue compreender em certos momentos a importância de a cultura continuar evoluindo. Para ele, é como se tudo tivesse acabado no modernismo. Só que há nisso uma contradição grande. Ao criticar a transgressão como valor que de fato domina muito da produção artística atual – guitarras desafinadas, uma cama de hotel desfeita ou um tubarão num vidro de formol apresentados como obras de arte –, Scruton parece se esquecer de que muito do que hoje é considerado canônico por nós foi transgressor em seu tempo. Basta estudar a rejeição sofrida por Wagner e seus experimentos harmônicos em Tristão e Isolda, a revolta de parte da igreja com a pintura de Caravaggio (e os vários séculos em que as telas de El Greco permaneceram esquecidas em Toledo) ou os muitos anos em que Ulisses esteve censurado em alguns países. O próprio Scruton, em Beauty, fala de como o artista moderno teve como objetivo não quebrar a tradição, e sim redescobri-la e trabalhar a partir dela. Então por que negar a arquitetura moderna e a pintura abstrata?
Para que não pareça contraditório lamentar a decadência da alta cultura e criticar quem sofre com a nostalgia do passado, dou uma opinião. Não devemos, para início de conversa, tratar os clássicos como se fossem apenas faróis de um passado distante e monólitos impenetráveis. Bach, Dante e Michelangelo, mas também dezenas de outras figuras canônicas, de Shakespeare e Goethe a Borges e Musil, de Rafael e Poussin a De Kooning e Morandi, de Keats e Yeats a Stevens e Brodsky, de Donatello e Bernini a Brancusi e Giacometti, de Händel e Haydn a Mahler e Bartók, todos eles versaram formidavelmente, cada um a sua maneira, sobre a condição humana. Devemos apreciá-los como se fossem contemporâneos. Como Scruton escreve em Beauty, agora corretamente, “algumas obras mudaram o jeito como vemos o mundo – o Fausto de Goethe, por exemplo, os últimos quartetos de Beethoven, o Hamlet de Shakespeare, a Eneida de Virgílio, o Moisés de Michelangelo, os salmos de Davi e o Livro de Jó. Para pessoas que não conhecem essas obras de arte o mundo é um lugar diferente – e talvez menos interessante”.
E atualmente, então, não há alta cultura sendo praticada? Há. E para me contrapor ao conservadorismo de Scruton, cito alguns nomes – não, nada de tubarão no formol. Impossível negar a qualidade de romancistas como Sebald, Banville, Magris e Marías, artistas visuais como Richter, Auerbach, Kiefer e Tuymans, poetas como Geoffrey Hill, Szymborska, Ashbery e Heaney, dramaturgos como Stoppard e Albee, cineastas como Malick, Haneke e Kiarostami, compositores como Pärt, Schnittke, Silvestrov e Penderecki, entre os eruditos, e Dylan, Cohen, Waits e Reed, entre os populares – para
não falar de séries de televisão como Sopranos, Mad Men e Curb Your Enthusiasm. Muitos nomes, alguém diria. Pois é. Mas tente investigar a idade de cada um deles (exceto dos programas de TV, claro). A maioria já passou dos 60 anos, alguns dos 70 e dos 80 e alguns ainda – Sebald, Szymborska, Schnittke – morreram há relativamente pouco tempo. Não estão sendo substituídos à altura. E, pior, estão sendo passados para trás pelo botão “Curtir” do Facebook.
Não se preocupem. O Senado acabou de dar mais uma mãozinha para a “Alta Cultura” de banânia: aprovou cotas de 50% nas universidades federais. Banânia é o país do futuro! Estamos na vanguarda! Michel Teló, Serginho Groisman e Preta Gil ainda vão desbancar todos esses nomes difíceis que vocês citaram aí… Podem apostar.
Por estranho que pareça penso que o desprezo pela cultura popular tem seu papel na atual decadência do gosto. A cultura popular é aquela que a maioria das pessoas consome e sua influência nunca pode ser desprezada. Um cultura popular de bom nível pode abrir as portas para a alta cultura, uma cultura popular degradada condena a sociedade à ignorância.
Que dizer então daqueles que se querem populares mas não são consumidos sequer por 10% da população? Ex.: Chico Buarque, Caetano Veloso… Esses são bons e atingem seus objetivos, mas não são populares e nem são alta cultura… Como se trata esses?
Alexandre Silva: faz sentido. Meio óbvio, mas vale recordar o “gist” do que você diz. É por aí. Justamente, no entanto, não se “consome” Pixinguinha, vg. Ou então sim, mas não há coisa mais linda: http://www.youtube.com/watch?v=azLE4zeJFyg&feature=youtu.be
Lembrei-me de Antonio Machado: “Todo necio/confunde valor y precio.”