Certeza e verdade

Talvez a pergunta mais difícil da filosofia seja: de quais coisas podemos estar realmente certos? (Ela é qualificada desse modo por Russell em Problems of Philosophy, no primeiro capítulo.) O número de situações que passam nesse teste, de conformidade com o julgamento do vulgo, pode ser maior ou menor. Os céticos empedernidos, tipos mais raros, não deixam passar quase nada. Os crédulos deixam passar quase tudo. Entre ambos estamos nós, homens comuns. Sabemos que duvidar de certas coisas não nos impede de tomar o café da manhã, usar um tablet ou marcar um encontro com alguém que, sabemos, não nos dará o cano. A filosofia, contudo, costuma dar voz hipotética — para exame — ao cético neurótico que todo homem inteligente tem dentro de si. Eu digo “voz hipotética” porque o ceticismo não impedirá o filósofo de viver como antes vivia.

Para os crentes sinceros, Deus existe e ponto final. Crentes de fina flor, no entanto, sabem que a certeza pessoal é um estado subjetivo independente do fato (supostamente) objetivo, ao qual prestam assentimento ex oboedientia, da existência de Deus. Não compreender isso é a razão que faz de muitos ateus homens menos inteligentes do que o crédulo vulgar. Um ateu ou agnóstico inteligente trará a tiracolo a compreensão de que é possível crer em Deus e manter a sanidade mental. O assentimento civilizado toma em conta a variabilidade dos estados de espírito. Ele sabe que o crente pode acordar um dia sem nenhuma certeza, e que isso não o impedirá de viver. A crença mais sincera, por ser um ato da inteligência e da vontade, é compatível com o ceticismo interior mais radical. E a estupidez não é monopólio dos ateus e agnósticos que não compreendem esse fato. A inteligência teísta muitas vezes se esquece de que o ato de confiança que depositam em Deus pode ser, afinal de contas, um ato de loucura objetiva — embora a civilização tenha tornado o seu ato de assentimento conduta intelectualmente respeitável, como vimos logo atrás. “Deus existe ou não existe” é um fato objetivo. Mas isso é agravado pelo fato de que não há garantias denotativas de que o Deus que nomeamos seja o Deus que esperamos que ele seja. Portanto podemos errar em duas de três: (1) Deus existe, mas é radicalmente distinto, o suficiente para tornar a nossa referência uma relação vazia de sentido (como a existência de um Papai Noel apenas vagamente semelhante a este a que nos referimos, talvez vestido de roxo e maldoso, poderá manter a proposição “Papai Noel existe” falsa, mesmo com o seu aparecimento); (2) Deus não existe (não há absolutamente nada na família de descrições que o inclui a permitir que a referência se estabeleça validamente); (3) Deus existe e é como pensamos que ele é, grosso modo. Essa terceira opção é o objeto da confiança dos crentes teologicamente bem informados. Penso que (1) poderia ser reduzido a (3) com algum esforço anti-analógico, por razões nominalistas. Mas creio que alguma distinção existe. A força de (3) é nada menos que formidável, porque me parece improvável que um ser alinhado com o Bem absoluto, noção universalmente compreendida (mas não sempre aceita como existente), queira se furtar completamente à nossa referência, como Descartes percebeu, ecoando o velho catecismo; pois, se isso fosse verdade, ele nos estaria obrigando a nos relacionar com a pura inexistência — literalmente, a rezar para o nada. A implicação disso seria a equivalência entre a crença do ateu e a crença do crente, com o perdão da linguagem paradoxal.

Haveria, no entanto, relação entre aquele estado subjetivo de incerteza e o fatos objetivo que, se revelado claramente, o faria dar lugar a um estado de certeza? (Quer ler novamente a frase?) Vamos pensar fazendo uso de um exemplo. Nunca vi um Raphus cucullatus (um dodô) e creio que nunca verei um deles, tendo a espécie sido declarada extinta. Em férias nas Ilhas Maurícias, encontro uma figura semelhante a um dodô. Fotografo-o e mando a fotografia a um especialista, que confirma que a foto do suposto dodô é a foto de um dodô sem sombra de dúvida. O pássaro é suficientemente idiossincrático para não permitir confusões. Como ficou o meu estado subjetivo de certeza quanto à extinção dos dodôs? Ele foi destruído e, enquanto viver o exemplar que encontrei, manter-se-á vivo o estado subjetivo de certeza quanto à existência, ao menos, de um exemplar da espécie. A relação, ilustrada pelo exemplo, entre estados de certeza ou incerteza e a realidade é alterada por certos fatos objetivos (a relação aRb, de a, a certeza inicial, com b, a realidade objetiva, passa a ser uma relação cRb entre c, minha crença revisada, e b, o mesmo fato objetivo que nunca se altera, suposta a sua existência). Se não tivesse encontrado o dodô, minha crença praticamente inabalável na extinção dos dodôs permaneceria tal como estava. Por outro lado, o dodô existe, acredite eu nele ou não. (Mesmo que o tenha visto, eu poderia não acreditar no cientista que o identificou; eu posso, por exemplo, embora não necessariamente deva, como veremos, rejeitar a priori qualquer argumento de autoridade.)

Há duas conclusões principais a serem tiradas do exemplo acima: (1) fatos objetivos podem alterar crenças em sentido subjetivo; (2) a manutenção ou não de uma crença subjetiva em x não altera a existência de x. A resposta à pergunta acima é que existe uma relação contingente entre estados de incerteza/certeza e fatos objetivos. A contingência se deve à variabilidade dos atos de vontade: posso dar ou não assentimento a certas coisas. Tenha-se em conta o princípio do should have known better. Ao ver o dodô e a confirmação do cientista, existe o dever de dar assentimento ao fato, até prova em contrário (o cientista, por exemplo, pode vir a ser desmascarado). Por isso a credulidade e a incredulidade podem ser ilícitas. Os dados dos sentidos e o critério do senso comum nos obrigam a certas coisas. É o motivo de podermos caçoar, com razão, da credulidade e da incredulidade alheia em casos extremos. O supersticioso simplesmente erra; o cético neurótico pode ser taxado de insano. Creio, no entanto, que o princípio do should have known better se aplica a fatos verificáveis e a implicações razoavelmente indiretas deles. A existência pretérita dos dinossauros, diante do instrumental das ciências — que permitem estender o alcance dos sentidos –, não pode ser negada. Teorias conspiratórias que desafiam evidências mínimas revisadas um sem número de vezes pela comunidade científica devem ser afastadas por acusarem falta de inteligência e, muitas vezes, por serem imorais.

E o que fazer com fatos que podem ser objetivos, mas que não podem ser diretamente verificados? Como verificar a existência de Deus? Julgo que algum tipo de evidência material precisa existir. A ausência completa de dados sensoriais deve levar ao não assentimento. A representação do mundo é feita, por um lado, pelos dados dos sentidos e, por outro, pelas inferências que fazemos a partir deles. A existência da inteligência é provada pelos atos inteligentes. Encontrar um quebra-cabeças especialmente interessante em um livro nos leva a pensar que a inteligência, tal como nos referimos a ela, é um fato objetivo: nome e coisa estão intimamente relacionados. Por isso a faculdade do intelecto, mesmo sendo imaterial, é conhecida pelos seus efeitos no mundo sensorial. A inteligência manipula formas; e as formas mantêm, sempre, alguma conexão com os seres. Ninguém ignora que uma das teorias mais fortes sobre a origem da matemática é que esta surgiu para auxiliar artes práticas como a agrimensura e a contabilidade. Dos gromáticos mesopotâmicos a Euclides há menos distância do que comumente se imagina.

Evidências suficientemente  indiretas não obrigam alguém a assentir. (É o caso, por exemplo, do caráter deôntico, obrigatório, do próprio assentimento a evidências diretas! Aliás, eu mesmo dei assentimento a ele ao afirmar certas coisas acima. Não posso provar essa obrigatoriedade; mas ela é indiretamente evidente, pela experiência.) A filosofia debate justamente esse tipo de problema. O que a ciência verifica (veja que não falo de teorias, mas de fatos ou demonstrados, como o número de um polímero ou a velocidade de uma partícula sob certas condições) deve ser, quase sempre, acatado como fato pelo filósofo, ou ao menos como fato provável, até prova em contrário. A ciência não verificará nunca a existência de Deus ou da alma, se estes entes forem aquilo que esperamos que sejam. (Se a ‘alma’ for verificada como material, por exemplo, a proposição “a alma não existe” mantém-se verdadeira, dada a implicação necessária, no plano da crença, entre o conteúdo do suposto objeto denotado por “alma” e a predicação “a alma é imaterial”). A filosofia pode, no entanto, assumir esse papel; de modo muito limitado, penso eu. Muito do que se entende por conteúdo filosófico não passa de crença sem a menor base racional, pois esta deve ser obtida por meio de inferências a partir de dados apreendidos sensorialmente. Tomás de Aquino, por exemplo, acreditava — e tentava provar, aproveitando o debate sobre os “intelectos separados” — que corpos celestes eram movidos por almas intelectivas, que eram como que um “poder exterior”. Isso para dar o exemplo menos grotesco que conheço da cosmologia medieval. Algo que pode ser verificado, negativa ou positivamente, não tem conteúdo propriamente filosófico. Acata-se como fato, que pode ser usado como premissa; mesmo teorias científicas podem exercer esse papel na filosofia (e. g., tomar o Big Bang como ponto de partida para a discussão sobre a eternidade ‘para frente’, e a finitude ‘para trás’, do mundo).

De quais coisas, enfim, podemos estar certos? Não vou responder a uma das perguntas mais difíceis da filosofia. Arrisco a dizer, todavia, que podemos, como ponto de partida, afastar dois erros comuns. Um deles é julgar que fatos objetivos não determinam, ao menos contingentemente, estados de certeza subjetiva (expressão, na verdade, redundante: a certeza é sempre um estado subjetivo). O outro é julgar que nossas crenças possam mudar a realidade. Parecem fatos de uma obviedade grotesca. Mas não raro nos deparamos com eles, sob disfarce. Uma implicação pouco óbvia daquele primeiro erro é a ideia de que podemos não assentir a uma proposição a toda evidência (direta) verdadeira; uma implicação do segundo erro é o relativismo. (Quanto à implicação do primeiro erro, apesar do caráter problemático da minha inferência modal — da contingência à obrigatoriedade, que é um modo de necessidade –, que não posso desfazer aqui, creio que o argumento se sustenta por um apelo à honestidade intelectual. Pace positivistas lógicos, que não reconhecem, equivocadamente, argumentos morais.) Não podemos confundir certeza, que é passível de revisão, com a verdade; mas muitas vezes nossa via tortuosa para esta última é estabelecida pela primeira.

Este texto é dedicado à Luciana, com quem muito conversei sobre o assunto — e cujas ideias eu roubei inconscientemente.

18 comentários em “Certeza e verdade

  1. Ainda bem que me deparei com este magnífico tratado filosófico. Então quer dizer que os objetos podem determinar a crença que temos sobre eles? E vice-versa não funciona? Estupendo! E eu aqui pensando na construção de crenças e realidades por osmose ou algo do tipo…
    Pelo visto, passei todo aquele tempo praticando a espiritualidade quântica pra nada…

  2. ‘A força de (3) é nada menos que formidável, porque me parece improvável que um ser alinhado com o Bem absoluto, noção universalmente compreendida (mas não sempre aceita como existente), queira se furtar completamente à nossa referência, como Descartes percebeu, ecoando o velho catecismo; pois, se isso fosse verdade, ele nos estaria obrigando a nos relacionar com a pura inexistência — literalmente, a rezar para o nada.’

    Júlio, nesta passagem você não cai no mesmo erro de que nos preveniu no texto inteiro? Como você pode medir a força do argumento com base na crença subjetiva de que Deus é alinhado com o Bem?

  3. Marcos, eu entendo que a passagem possa dar a entender que o argumento seja cogente, ou que eu o aprove inteiramente. Mas eu quis dizer que, dentro da argumentação teológica — que eu não subscrevi, mas usei como contexto –, (3) tem mais força que a equivocação provocada por (1). Estou comparando as possibilidades entre si, apenas.

  4. Julio, em relação à existência de Deus, um argumento que me parece relevante é a ausência de manifestação dele no mundo. Um sujeito que estava no auditório de um desses debates com o William Lane Graig fez essa pergunta ‘Por que Deus não nos dá sinais de sua existência?’. Não me lembro bem da resposta do dr. Craig, mas ela me pareceu bem insuficiente. Lembro que ele chegou a falar coisas como ‘sentimos essa presença’ ou ‘se estivemos de boa vontade para perceber essas manifestações, vamos percebê-las’. Pareceu-me algo como ‘se tomarmos a decisão de acreditar, vamos interpretar alguns fenômenos como manifestação divina’, ou seja, justamente aquele problema de confundir nossa crença subjetiva com a realidade. O que você acha?

  5. Marcos, acho que o mais longe que se pode chegar nessa direção é o conjunto das cinco vias, especialmente a terceira e a quarta. Mas concordo com você: é ainda muito pouco. Creio que Aquino sabia bem disso. Não vejo sinal algum de Deus pelos seus efeitos no mundo, e não vejo como alguém objetivamente os pudesse indicar (nesse sentido, essas observações do Craig são mais do que fracas). Já com a inteligência, propriedades abstratas e outros entes imateriais, é muito mais claro.

  6. Tenho a impressão de que a única maneira de se tentar fazer teologia atualmente é levar a sério o trabalho de Kant. Não acredito que seja possível “teologar” desconsiderando que para salvar a fé foi preciso limitar a razão. Toda vez que vejo essas discussões sobre a existência de Deus me dá uma preguiça… Pior é quando começam a citar Tomás de Aquino.

    Acredito que o teólogo que melhor compreendeu isso foi Karl Barth. Apesar dele estar esquecido hoje, sua obra é muito interessante.

  7. Lessandro, a ideia de Deus citada foi só um exemplo; se eu algum dia vier a fazer teologia, podem me enforcar. Mas um reparo. A tradição tomista valoriza mais a razão do que, por exemplo, a de Schleiermacher e Karl Barth. Não sei se está familiarizado com isto, mas a teologia protestante tende quase sempre ao fideísmo — suspender a razão ao falar da fé e suspender a fé ao falar da razão –, desde Calvino e Lutero. (No campo das superstições ilustradas, a religião pietista de Kant me parece um pouco piegas. Mas não tenho qualquer interesse em discutir esse assunto.)

  8. Coisas da internet… Quando eu escrevi meu comentário eu não tinha visto sua resposta para o Marcos. Pareceu um cutucada, mas não foi. Foi mal…

    Você tem razão, o protestantismo sempre corre o risco de se tornar fideísmo. Sem dúvida a tradição tomista valoriza a razão, o problema é que ela já morreu há muito tempo, apesar de todos os esforços. Gilson que o diga…

    Aliás, gostei de “superstições ilustradas”. E chega de teologia, né? rs

  9. Lessandro, não se preocupe; não me pareceu cutucada de forma alguma. Tenho de concordar em parte com você sobre o tomismo: como sistema, perdeu força já no século XX, logo depois de voltar a estar na crista da onda, desde o séc. XIX. Toda linguagem precisa de renovação. Creio, no entanto, que gente como John Finnis, Anthony Kenny, Anscombe e Geach tenham produzido uma obra relevante no interior dessa tradição, renovada pelos anglo-saxãos.

  10. Desculpem-me o termo chulo, mas teologia sempre me pareceu a maior masturbação mentão a que um ser humano pode se dedicar. Além de me parecer uma completa perda de tempo.

  11. Você diz que a existência dos dinossauros, dado o instrumental das ciências, que extendem o alcance dos sentidos, não pode ser negada. É um fato objetivo provado por evidências indiretas com base material. Mas e quanto à existência de Deus? Não pode, a exemplo do que ocorre com a existência dos dinossauros, ser deduzida de evidências indiretas com base material, por exemplo, os milagres? Ou podemos dizer que um relato de milagre que você não presenciou não goza da mesma confiabilidade de um relato de pesquisa científica no qual você acredita, mas da qual você não participou, nem refez?

  12. Por fim, indago: as frases “a existência pretérita dos dinossauros NÃO PODE SER NEGADA” e “evidências suficientemente indiretas NÃO OBRIGAM A ASSENTIR” não são contraditórias?

    Por fim, um comentário sobre os cometários depreciativos à teologia (uma ciência, não?): leiam, por exemplo, o ensaio “Viagem ao Mundo” de Marcelo Consentino (Dicta e Contradicta n. 8) e verão que não se trata de masturbação mental e que não há nada de vergonhoso ou desagradável nela a ponto de se preferir ser enforcado à praticá-la.

  13. Caro V.,

    Você diz que a existência dos dinossauros, dado o instrumental das ciências, que extendem [sic] o alcance dos sentidos, não pode ser negada. É um fato objetivo provado por evidências indiretas com base material. Mas e quanto à existência de Deus? Não pode, a exemplo do que ocorre com a existência dos dinossauros, ser deduzida de evidências indiretas com base material, por exemplo, os milagres? Ou podemos dizer que um relato de milagre que você não presenciou não goza da mesma confiabilidade de um relato de pesquisa científica no qual você acredita, mas da qual você não participou, nem refez?

    Um milagre prova que uma lei física, a toda evidência, foi violada, mas não que Deus existe. Passar dos fatos “houve um milagre” e “a lei física x foi suprimida” (o primeiro implica analiticamente o segundo) para “Deus existe” não é permitido; trata-se de um non sequitur. Craig, por exemplo, sempre fala em um “cumulative case” em favor da existência de Deus: são vários indícios que, juntos, levariam a um possível assentimento. O que eu afirmei é que esse assentimento — e agora digo, mesmo considerado o ‘caso cumulativo’ — não é necessário, por falta de evidências suficientemente diretas. Entende?

    Por fim, indago: as frases “a existência pretérita dos dinossauros NÃO PODE SER NEGADA” e “evidências suficientemente indiretas NÃO OBRIGAM A ASSENTIR” não são contraditórias?

    Não são contraditórias porque, na primeira fase, tenho evidências suficientemente *diretas* (ossadas, taxonomia, etc), que tornam obrigatório o assentimento e, na segunda, evidências suficientemente *indiretas* (indiretas o suficiente para dispensar essa obrigatoriedade).

    Sobre o enforcamento, eu falei sobre mim, e não sobre a dignidade da teologia. O que me parece indigno é um leigo entrar em discussões teológicas gratuitamente. Há muito mais abuso do que prática efetiva de teologia, especialmente na Internet. Daí eu preferir ser enforcado a entrar nesse barco.

  14. Então milagres, dada a evidência material, são coercivos? Se a evidência for direta (a própria pessoa que presenciou), creio que sim. Mas o problema é que para a maioria das pessoas o milagre chega por via indireta, pelo testemunho. E aqui há um problema de da confiabilidade da prova. No meio científico, mesmo que não verifiquemos por nós mesmos as afirmações dos cientistas baseados em evidências, creio que a existência de um meio institucional de que permite um controle, discussão e crítica do que é produzido confira uma maior credibilidade a esses enunciados. Já os enunciados de testemunhas de milagres são difusos.

  15. Marcos, há inúmero relatos de fatos miraculosos que passaram pelo crivo de “meios institucionais que permitem o controle, discussão e crítica.” Há uma vasta coleção de fatos miraculosos que foram submetidos ao teste científico, de modo o nível de confiança que podemos ter nos testemunhos dos que efetuaram o teste é o mesmo que podemos ter nos testemunhos dos que realizaram qualquer experiência científica. Penso por exemplo nos exorcistas do Vaticano, tão colados nos mais avançados estudos psiquiátricos quanto “Aristóteles estaria hoje colado nos laboratórios”, que sempre trabalham em conjunto com os profissionais da ciência psiquiátrica e psicológica, só aceitando tratar um caso de possessão com aval destes profissionais. Concordo, porém, com o autor deste post em que da existência de um milagre concreto (a supressão de determinada lei científica ou de diversas) não se pode deduzir a existência de Deus logicamente. Se, de fato, o venerado santo italiano fez um garoto sem pupilas enxergar (e acredito que o garoto tenha sido submetido a alguma exame cujo laudo comprovou a inexistência de pupilas em seu globo ocular), ao fazê-lo, promoveu a supressão de uma lei científica, pois segundo as leis da biologia, a pupila é componente do aparelho ocular que deve existir necessariamente para que haja visão. O autor da magnífica proeza diz tê-la realizado não com seus próprios poderes, mas servindo de instrumento para a ação de Deus. Nestes caso, temos três hipóteses explicativas do fenômeno: (1) O santo tem razão e efetuou o milagre servindo de instrumento para a ação de Deus; (2) O santo se equivoca e realizou o milagre com seus próprios poderes, os quais não conhecia e (3) Uma terceira causa externa, nem Deus, nem o santo, atuou concomitantemente à ação do santo e promoveu o milagre, sem que ele soubesse. Vislumbra-se outra hipótese explicativa? Se a primeira hipótese for verdadeira, então a existência de Deus é verdadeira. Mas como provar que a primeira hipótese é verdadeira? Obviamente, é a mais provável. Porém só podemos crer nela, acreditando que o santo não nos engana nem é ignorante do alcance de seus próprios poderes. Conhecendo a vida dele podemos talvez nos acercar de que ele nunca mentia e de que raramente estava equivocado quanto ao limite de seu poder de modificar a natureza, sem o auxilio de um Ser Supremo. Neste caso, após a averiguação da vida do santo, a primeira hipótese se tornaria cada vez mais provável. Creio, enfim, que o conhecimento de milagres atribuídos a Deus certamente não nos obrigue a aceitar como corolário a existência do Ser Supremo com mesma certeza com que aceitamos uma demonstração matemática, mas que fortaleça cada vez mais nossa convicção, na medida em que as hipóteses explicativas contrárias são extremamente improváveis. Seguindo essa linha de raciocínio talvez cheguemos à conclusão de que a inexistência de Deus é tão improvável quanto a existência atual de um dinossauro perdido em alguma paragem inexplorada do globo terrestre.

  16. “Não podemos confundir certeza, que é passível de revisão, com a verdade; mas muitas vezes nossa via tortuosa para esta última é estabelecida pela primeira”.

    Penso que quando a via tortuosa para a verdade é estabelecida pela certeza estaremos nos imiscuindo de um método sofista.

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