Comer = Rezar, Amar

Não li “Comer, Rezar, Amar”, o best seller de Elizabeth Gilbert, e não vi “Comer Rezar Amar”. Nem pretendo; quando chegar à TV, quem sabe. Mas depois de ler inúmeras resenhas (como esta), sinto como se o conhecesse sem experimentar, a uma distância psicológica e espiritualmente segura.  Afirmo com a mais absoluta certeza, por exemplo, que a Elizabeth interpretada por Julia Roberts come durante o filme. Relutaria, contudo, em dizer se ela reza ou ama.

Há que se notar que a reza, se acontece, é um tanto peculiar. Depois de um mês gastro-intestinal na Itália, Elizabeth vai à Índia entrar em contato com o Absoluto. O curioso é que sua atitude na hora de rezar e de amar seja tão parecida com a da hora de comer. Come-se aquilo de que se gosta; claro que a pessoa de gosto bem desenvolvido estará aberta a todas as comidas; mas mesmo assim, dentro de uma restrição mínima de nutrição e comestibilidade, é o gosto que determina o prato, ainda que se escolha as poucas opções de um balcão self-service.

Na hora de rezar e amar, ela também escolhe o que gosta; não tenta moldar-se a uma realidade objetiva fora dela (o sagrado no rezar, uma outra pessoa no amar), mas procura o que molda-se ao seu gosto. Poderia ter ido ao shopping, mas achou mais divertido descobrir os segredos de Deus e da alma.

Elizabeth Gilbert é o centro do universo. Sim, é um fato: Elizabeth Gilbert é Deus. Não estou exagerando. O filme confirma isso explicitamente com pérolas do tipo “God dwells in me as me” – ou seja, Deus se identifica com Elizabeth Gilbert não enquanto ela é um ser humano, ou uma imagem de Deus, ou uma individualidade ilusoriamente separada de Deus, mas na medida em que ela é Elizabeth Gilbert.

É preciso notar que isso é o exato oposto do que ensina o Hinduísmo ou, para dizer a verdade, todas as religiões. Sim, Atman é Brahman, “Tu és Aquilo”; ou seja, o princípio interno do indivíduo identifica-se com o princípio externo e infinito por trás de todas as aparências de multiplicidade, mas essa identificação se dá exatamente na medida em que o indivíduo não é um indivíduo.  Toda a disciplina dos monges e dos yogis visa a se libertar do próprio ego, dos egoísmos que colocam o “eu” no centro, do “eu” que come-reza-ama. É quando rompem com esse ego que se descobrem idênticos ao princípio não-pessoal de todas as coisas e se libertam dos infinitos ciclos de nascimento e renascimento. (Os especialistas em cultura indiana me corrijam se disse alguma grande besteira – você sabe quem você é!).

Nesse sentido, a fé cristã é mais próxima do impulso da Elizabeth do que o Hinduísmo no qual ela (e a própria Julia Roberts, que nas filmagens passou de católica a hindu praticante) foi buscar as respostas às grandes perguntas. Pois o Cristianismo, ao dar importância central ao amor, por isso mesmo afirma a existência do indivíduo realmente distinto de Deus; a união divina, e até mesmo a transformação divina que o Cristianismo prega não é a dissolução do ego no Absoluto, mas a elevação da pessoa a um estado de participação no ser de Deus. A luta contra o egoísmo é a mesma que nas religiões orientais; mas paradoxalmente, quanto mais o indivíduo se liberta do poder dominador do ego auto-idolátrico, mais ele se transforma naquela pessoa individual que ele poderia, e deveria, ser. No caminho hindu, Elizabeth Gilbert teria que abandonar Elizabeth Gilbert, como a gota que se dissolve no oceano. No Cristianismo, ela se tornaria a verdadeira Elizabeth Gilbert, divinizando-se de forma particular e irrepetível, e então ela iria Comer, Rezar e Amar com todo seu ser.

Alguma coisa boa o livro deve ter; não se fica 2 anos no topo dos mais vendidos à toa. Mas esse bem só encontraria seu lugar legítimo no caminho espiritual que ela nem sequer pensou em seguir (Roma é lugar de comer! Quem pensaria que lá também se reza?), e não naquele que ela fingiu, para si mesma, trilhar.

9 comentários em “Comer = Rezar, Amar

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  2. Há uma analíse desse filme na Taki’s Magazine, escrita pelo Steve Sailer. Interessante, coisa que o filme não é.

  3. É interessante ressaltar que sua explicação do que é o Cristianismo, neste contexto, é exatamente igual a certas escolas da tradição Vedanta. Falar de um Hinduísmo assim genericamente – como o livro fala, por certo – é complicado demais. E veja, muitos indianos mesmos têm uma noção errada de sua própria tradição, um fato conhecido.

  4. Interessante, Leonardo. Tem algum autor dessa linha hindu que você recomendaria (talvez um ocidental que faça uma ponte para um leitor não versado em filosofia védica)?

  5. Bem, tirando os textos originais, que ainda não foram traduzidos aqui. Recomendo três autores/livros – indianos, pois não conheço um ocidental nesta área:

    – The Philosophy of Vedanta; S. M. Vrinivasa Chari. (todos os livros do Chari são excelentes)

    – The Philosophy and Religion of Sri Caitanya; O.B.L. Kapoor.

    – Vaisnava Vedanta; Mahanamabrata Brahmachari.

    Eles podem ser adquiridos na editora indiana Motilal Banarsidass. É um bom começo!

  6. “De católica a hindu praticante”. É possível isto? “Hindu” é uma condição sob a qual se nasce. É discutível qua haja uma “conversão” ao modo católico ou islâmico.

  7. O Hinduismo é complexo, uma universidade. Há quem se dissolva no açucar, e há quem saboreie o açucar. O tantrismo é mais o segundo caso.

  8. Livro e filme de mulherzinhas, para mulherzinhas. Os evitarei como a peste.
    Como bem se disse no artigo, o lugar ideal para comer e rezar é Roma. E para amar também, caindo de amores por alguma italiana de pele alva e sorriso franco.

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