Crenças e ativismo

Diante das catástrofes ideológicas do século XX, há muita gente cansada de ativismo. Mas uma nova onda de ativismo se anuncia. Enquanto ateus experimentam o surgimento de um cisma (Atheism vs. Atheism+), cristãos travam guerras culturais na Internet e muçulmanos fanáticos escrevem, e põem em prática, versões da sua Jihad particular. Crenças muitas vezes levam a guerras em todas as esferas, metafóricas ou reais. Até a crença na razão pode se transformar em um mecanismo bélico — perdendo, com isso, a sua característica libertadora.

Vamos analisar o caso dos ateus convictos. Desaprovando o teísmo, aprovam o ateísmo, e creem que mais pessoas deveriam aprová-lo. Por isso criam fóruns na Internet, engajam-se em discussões na universidade, nos bares e nos almoços em família. Quem crê possuir alguma verdade — por mais que proteste não ser absoluta — tende a difundi-la. E não há problema em difundir argumentos ponderados. Contudo, embora os ateus costumem difundir o ceticismo em todos os campos, sempre protegem o ateísmo das suas garras. O ceticismo não nos leva a questionar tudo, incluso o ateísmo? A trocar uma asserção longamente mantida pela mesma proposição acompanhada de ponto de interrogação? Sequer o ateísmo assertivo resiste a essa atitude. Crentes e ‘descrentes’ dirão que essa atitude cética é destrutiva. Talvez porque não tenham tido a experiência de questionar proposições aceitas com ponderação, sabendo todavia que grande parte de suas ações se apóia em certas premissas provenientes do senso comum (como a realidade exterior, a objetividade de certos valores morais, a possibilidade de alguma justiça, a credibilidade da ciência empírica, etc). Nada impede que o Ocidente seja dominado pelo ateísmo em cem anos. Quem pode negar racionalmente essa possibilidade? Pois bem: nesse ambiente, uma proposição longamente mantida, como a de que positivamente não há Deus, poderia ser seriamente questionada por uma minoria crítica, e cética, preocupada com o estado de crenças dominante. O questionamento poderia ser algo como: quais as bases para essa certeza de que não há Deus? Em que medida estão autorizados a fazer propaganda de uma proposição possivelmente falsa? O ceticismo será então punido com o preconceito, etc.

Mas o ceticismo é antes uma atitude procedimental e independente. Por que devo crer em x? Há fatos que o apoiem? Está filosoficamente bem fundado dizer que x? Mas se tenho experiência direta ou suficiente de x, então é falso dizer que creio em x. A experiência de um fato deixa de ser crença em um fato; torna, inclusive, falsa a proposição inteira precedida pelo ‘operador de crença’. (…não é o caso que acredito em x, se experimento x. Evidentemente há critérios racionais e mais ou menos rigorosos, e premissas do senso comum, que me permitem afirmar que experimento x.) É certo que questionamentos como esse podem existir mesmo que continuemos, na prática, crendo em fadas, em Deus, na pátria, na Razão ou na beleza de um mundo sem Deus. O que o bom ceticismo faz é fulminar as asserções impassíveis, ou carentes de, prova, e não as crenças. (Um ateu está autorizado a acreditar que não há nada semelhante a um deus; mas nunca a afirmá-lo como um fato estabelecido. Que alguns afiliados ao Atheism e ao Atheism+ o façam só depõe contra a sua inteligência.) O que o ceticismo faz é colocar as crenças em seus devidos lugares — impedindo que, da crença em algo, se conclua que esse algo é verdadeiro — e contendo qualquer forma de ativismo ideológico. Não posso descer a detalhes mais técnicos aqui, e arrisco a dizer certas impropriedades (cf. o apêndice abaixo, com hipóteses ainda não rigorosas, mas um pouco mais precisas); mas no geral esse tipo de avaliação me parece verdadeira.

É característica dos grupos o crerem-se mais felizes que os outros; os cristãos, por exemplo, habitualmente dizem que sem Deus não podemos ser felizes, ou, pior, que não podemos ter virtudes. Há muito de imaginação nessa crença, gerada por uma projeção direta da doutrina sobre a realidade (wishful thinking). A razão é suficiente para mostrar o perigo de asseverar esse tipo de crença. Basta pensar que não há sequer indícios da atuação de Deus no mundo; os milagres comprovados, se comprovados, provam que milagres existem, mas nada dizem sobre o deus a que as crenças se referem. O que predomina é nossa natural capacidade de interpretar tudo como um indício de que nossa crença é verdadeira (quando, na verdade, a confirmação de x leva à falsidade da sentença “creio em x“, como afirmei acima; as crenças em si não parecem ser verdadeiras nem falsas, embora esse ponto mereça uma boa discussão). A convicção de um crente não exclui, nem por um segundo, a possibilidade de que esteja agindo como um completo idiota, apesar da aparência de seriedade. Há casos em que podemos ter certeza de que o crente erra; há uma infinidade de cultos e religiões claramente inaceitáveis, e mesmo crentes em religiões minimamente razoáveis que agem como se pertencessem a um culto. O fato é que mudanças e suspensões de crença promovem uma extensa reinterpretação dos fatos passados: o que era visto como ação de Deus é agora claramente explicado por outros motivos; e vice-versa: um convertido interpreta o sem-sentido de suas experiências passadas como um caminho para Deus.

Em outros times, não raro tomamos conhecimento da, e somos seduzidos pela, propaganda de uma revolução sexual capaz de libertar os homens de suas amarras e levá-los a um mundo de sensualidade gratificante. E sabemos, os que têm experiência, que isso é falso. É ridículo que alguém deposite sua confiança na pura sensualidade, a não ser para enganar a si mesmo, e projetar na realidade os contornos de uma doutrina hedonista. Todos os nossos ídolos caem a seu tempo, os espirituais e os de carne e osso.

É possível livrar-se de todo fanatismo, ateu, agnóstico ou otherwise, sem abdicar da verdade? Sim; e essa é a vocação da razão e da prudência, como meios de discernimento teórico e prático, respectivamente. A verdade não pode ser questionada diretamente; porque no questioná-la, calamo-nos, mesmo que afirmemos algo. Nenhuma tese permanece — a começar pela tese de que não há verdade — quando a base comum lógica e filosófica que usamos para sustentá-la já não existe.

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Apêndice: hipóteses sobre crenças e ativismo

1. No texto acima, entendi por “crença”, restritamente, o estado mental de assentir a certo estado de coisas inacessível à experiência direta. Aos estados de coisas a que tenho acesso, e cuja verdade posso comprovar e compartilhar com outros sujeitos, reservei o nome de “fatos”. Ambos, crenças e fatos, não estão isentos de problemas filosóficos. Há vários quebra-cabeças intrincados envolvendo as duas noções, que não pretendemos mencionar, e muito menos resolver, aqui.

2. A noção de crença pode ser refinada para “fé” quando o estado de coisas ao qual assinto também inspira certa confiança no agir, bem como exige unidade conceitual. No extremo, a fé corresponde à sua definição teológica de assentimento da inteligência e da vontade a uma ‘verdade revelada’ por Deus, sempre inacessível à razão; o dito assentimento é realizado como obediência a uma autoridade transcendente. Não analisei essa noção, e nem pretendo que se lhe apliquem as reservas que fiz a respeito da noção de crença, embora algumas delas possivelmente existam.

3. A ideologia é objeto de crença. Por experiência histórica — o assunto é, portanto, tanto sociológico e político quanto histórico — um sistema de ideias político nunca corresponde a nenhuma de suas instâncias pretendidas. Aqui entram as críticas à engenharia social.

4. Em virtude da positiva, e até empiricamente comprovada, inexistência de uma correspondência entre ideologias e estados de coisas, a crença na primeira é sempre a crença numa falsidade.

5. Em virtude da impossibilidade, com os meios da ciência, de avaliar a correspondência entre pretensos fatos sobrenaturais, objeto de crença no contexto de uma religião organizada, e a sua influência no curso dos fatos naturais, as crenças religiosas e anti-religiosas possuem o mesmo status.

6. O ativismo ideológico é propaganda de estados de coisas necessariamente falsos.

7. O ativismo religioso é propaganda da estados de coisas possivelmente falsos.

8. O ativismo anti-religioso é propaganda de estados de coisas possivelmente falsos.

9. A razão e a prudência obrigam-nos a não propagar o possivelmente falso e, com maior razão, o necessariamente falso.

10. A inconveniência de propagar ativamente (i. e. fazer proselitismo) asserções religiosas, anti-religiosas e, com maior razão, ideológicas, não implica a inconveniência de especular a respeito desses campos; daí serem a filosofia, a religião e a política atividades legítimas. Como a cada religião corresponde uma prática, praticar uma religião é possivelmente agir com base em estados de coisas falsos.

11. Aqui entra a famosa aposta, rigorosamente probabilística, de Blaise Pascal (Pensées III § 233)– que só poderia vir de um matemático. Jogamos com as seguintes equações, comumente apresentadas assim:

E(aposta em favor de Deus) = ∞*p + f1*(1 − p) = benefício esperado = ∞

E(aposta contra Deus) = f2*p + f3*(1 − p) = benefício esperado = finito.

É só usar o quadro:

(1) Aposta em favor de Deus -> Deus existe, ∞. Deus não existe, f1.

(2) Aposta contra Deus -> Deus existe, f2Deus não existe, f3.

12. Há várias objeções à aposta de Pascal. Boa sorte.

32 comentários em “Crenças e ativismo

  1. Palpite de um amador/curioso/diletante: este texto está cheio de idéias de Wittgenstein, não é?

    Tipo assim:” A verdade não pode ser questionada diretamente; porque no questioná-la, calamo-nos, mesmo que afirmemos algo.”

  2. Julio,

    Esse é o segundo texto em que te leio dizendo que o milagre não prova o deus. Mas você não está desconsiderando as “condições do milagre”, namely, que seja pedido, que jamais desintegre um braço ao invés de recriá-lo, que aconteça em ambiente religioso e com pessoas de fé, etc.?

  3. Alexandre, salvo o verbo “calar-se”, que aparece na última proposição do Tractatus (TLP §7: …darüber muss man schweigen), não há qualquer semelhança entre a ideia do último parágrafo, que é um argumento contra o relativismo e o niilismo, e Wittgenstein. Inclusive o Witt do Tractatus não concordaria comigo em quase nada. Ele é genial, mas é raro que eu concorde com ele sem ressalvas. Procurar referências a ele no texto é caminho certo para o erro. Toda vez que alguém faz isso, ou me chama de niilista (o texto está cheio de argumentos contra o niilismo), acontece isso aqui.

    Felipe, milagres são pretensos fatos — “aconteceu que tal e tal”–, e precisam ser interpretados para que se possa dizer que se referem a Deus. Por si não apontam para nada; talvez para algum tipo de perturbação na ordem do universo tal como nós o percebemos (como regularidade). Essas condições que você mencionou são justamente a interpretação de que preciso para referir o milagre a Deus. Mas se não aceito a interpretação, não sobra nada.

  4. Carla, que milagres estabelecidos são irregularidades observadas, e não provas da existência de Deus, não constitui uma interpretação. Além de ser uma premissa do senso comum, é uma tese filosófica bem fundada — negá-la implica consequências sérias, que pouca gente estaria disposta a aceitar–, compartilhada por crentes e descrentes. A não ser que se invoque Nietzsche e os pós-modernos franceses para dizer que não há fatos, mas apenas interpretações… O que seria meter-se numa enrascada.

    Veja:

    1. Ocorreu a cura tal.
    2. A cura tal desafia a ciência da medicina.
    3. Deus existe.

    Não te parece que (3) exige um monte de outras premissas que algumas pessoas aceitariam, e outras não? Só uma interpretação, um sistema de crenças, pode fornecer essas premissas. A rigor, elas são possivelmente falsas, e não podem ser provadas. (Por exemplo: se houve uma cura que desafiou a ciência da medicina, então a medicina não pode explicá-la; se a medicina não pode explicá-la, a existência de Deus, que pode suspender as leis que regem o funcionamento regular do corpo humano, o pode; etc). Se eu não as aceito, não sobra nada [que me permita concluir (3)].

    Se você não aceita que é necessário trazer mais premissas ao raciocínio para que se possa concluir (3), você não está rejeitando uma interpretação, mas sustentando um absurdo: que de (1) e (2) posso imediatamente concluir (3). As consequências disso: posso sustentar qualquer coisa e alegar que é uma interpretação. Admitir isso é minar toda bases da discussão racional.

  5. Existe Deus porque a Bíblia assim o diz. A bíblia foi escrita pelos ebreu um povo antigo que possuia vários conheçimentos cientificos porque eram inspirados por Deus

  6. Prezado Julio,
    Parece-me correto tudo o que você disse, mas gostaria de fazer algumas considerações e indagações. Você parece defender a atitude de inércia cética contra o ativismo. Se você dissesse que só deveríamos aderir e defender a uma causa política, uma religião ou um conjunto de regras morais se estivéssemos certos de que elas correspondem a fatos isentos de dúvidas e não a meras crenças eu discordaria cabalmente. Não creio que você tenha pretendido dizer isso.

    O ceticismo absoluto não serve para viver. Se precisássemos de certeza absoluta para agir o resultado é que cairíamos em estado catatônico, qual Max Weber ou Nietszche e passaríamos dez anos sentados olhando para a parede. Certeza apodítica, absoluta, não temos quase nenhuma na vida. Talvez tenhamos a de que a soma dos quadrados dos catetos equivale ao quadrado da hipotenusa, ou de que, de fato, estamos aqui e agora escrevendo e não sonhando que estamos escrevendo. Mas no mais só dispomos de crenças.

    Não sabemos com certeza absoluta nem que ao sairmos à rua, daqui a pouco, não seremos atropelados. No entanto saímos porque cremos que isso não vai acontecer e nossa crença está baseada num cálculo inconsciente e instantâneo de probabilidade, segundo o qual é remotíssima a hipótese de que seremos atropelados dadas as circunstâncias (a rua é calma, já fizemos isso um milhão de vezes, etc.). Creio que o neurótico e o paranoico são aqueles que perderam esse senso das probabilidades.

    Aqui chego onde queria. Você não menciona no texto, mas é certo de que está consciente disto: as crenças tem graus variados de probabilidade. E agimos de acordo com o juízo de probabilidade, nunca de possibilidade. Possível que eu vá ser atropelado ao sair à rua é, porém é improbabilíssimo. Se o mero juízo de possibilidade fosse o critério para a ação o resultado seria certo: imobilidade absoluta psicopatológica!

    Passo seguinte indago: e quanto às grandes crenças, como a crença em Deus? Não podem ser submetidas a um teste de probabilidade? Você aqui apenas averigua a sua possibilidade. Possível é sim que Deus exista, tanto quanto que não exista. Mas por que não se vai mais além e se verifica a probabilidade de que Deus existe ou de que não existe? Vou mais além, o instrumental da lógica, da matemática e da filosofia tout court não são insuficientes para a averiguação desta probabilidade? Aí não teriam que entrar os estudos de História, Teologia, Psicologia, Psiquiatria, de diversas biografias e hagiografias e mesmo Química, Física. O estudo dos fatos, o estudo empírico.

    Os cumulative case de Craig Lane que você mencionou nos comentários do “Certeza e Verdade”, por exemplo, o estudo detido, meticuloso de diversos indícios da atuação de Deus no mundo, poderiam não conduzir à certeza absoluta da existência de Deus, mas talvez conduzam a um juízo com alto grau de probabilidade, diante do qual a defesa da inexistência de Deus se tornaria tão risível quanto a defesa da ideia de que o homem não foi à Lua. Talvez seja esse o caminho.

  7. Desculpe-me se eu não entendi, Julio, mas o que eu quis dizer é que, assim encarado, tudo parece não afirmar a origem de nada.

    1. Ocorreu a cura tal.
    2. A cura tal é lugar comum na ciência da medicina.
    3. O médico existe.

    A cura normal nós adquirimos indo ao médico e submetendo-nos aos tratamentos. A cura milagrosa não costuma «ocorrer». A linha costuma ser algo assim:

    1. Tenta-se todos os tratamentos médicos e é sabido que nada funcionará, porque desafia a ciência da medicina.
    2. Reza-se, pede-se a Deus, etc.
    3. A cura acontece junto de uma certeza «subjetiva» imensa da sua origem.

    Claro que é possível dizer que curas simplesmente ocorrem, mas seria preciso juntar, por exemplo, tantos casos de cura de câncer em um bordel quanto aconteceram em Fátima.

  8. Mas e se a sequência de premissas acima citada tivesse outro começo, que, aliás, mas adequado encadear os fatos, tipo:

    1 – Alguém doente rogou a Deus por sua própria cura;
    2 – Ocorreu a cura tal;
    3 – A cura tal desafia a ciência da medicina;
    4 – Deus existe;

    Penso que desta perspectiva o (4), que antes era (3), não parece tão incongruente, nem exige tantas outras premissas visto que (3), que antes era (2) parece esgotá-las. Poderia, pelos menos, reformular o argumentos considerando essa nova primeira premissa que quase “sempre” antecede um suposto milagre?

  9. Vou ver se respondo aos pontos de vocês — Christiano, Felipe e Vinícius — de uma vez só. Espero não esquecer nada muito importante.

    1. Um juízo de possibilidade é um juízo de probabilidade. Possível não é o que não pode ser o caso no mundo atual, mas o que pode e o que pode não ser o caso. O índice de probabilidade serve para quantificar o que é mais e o que é menos possível. Isso é consenso, certo? Não defendo o ceticismo absoluto, o que me parece suficientemente esclarecido no texto. Se é certo que abusei um pouco do ‘ceticismo’ — que é uma escola filosófica bem delineada –, o que mostrei foi a existência de posições contraditórias, como a de muitos ateus militantes: sem a prova da inexistência de Deus, e com alguns indícios em favor de Deus olhados com menos simpatia do que indícios em desfavor da sua existência, puseram-se a fazer propaganda de um fato duvidoso. Agora, como cada um vive com certezas e incertezas, esse é um problema existencial. Eu pessoalmente ressaltei a importância do senso comum: a existência do mundo exterior, a possibilidade de se fazer juízos morais, a confiabilidade da ciência, etc. Não está longe do que acredito a posição do Vinícius, embora não creia que Weber ou Nietzsche tenham ficado paralisados, ou pregado uma atitude desse tipo, até porque não eram céticos absolutos — muito longe disso. Há espaço seguro para as crenças, desde que saibamos onde pisamos. Para mim, não há espaço para superstições. Há crenças religiosas desprovidas de uma vacina contra a superstição; e isso é extremamente perigoso para o pensamento. Há outras que conseguem conviver com padrões mínimos de racionalidade, como protestantes e católicos. Não é para mostrar tolerância que o Vaticano tem uma poderosa academia de ciências, e nem que a maioria dos grandes cientistas tenham sido crentes (deixarão de ser maioria em pouco tempo, talvez, mas o serem agora prova no mínimo que a crença no sobrenatural não é obstáculo à ciência, e pode muitas vezes servir de estímulo a ela). Os outros pontos, deixo-os à boa fé do leitor. A grande conclusão é que a propaganda de crenças possivelmente falsas é um erro. A apologética muitas vezes abusa da paciência dos descrentes, e acaba por produzir mais descrença. Sem muito senso de humor e maturidade não é possível falar de fé sem cair na vala comum do “nós, cristãos”, e isso é um desserviço tanto à ciência quanto à fé.

    Quanto aos milagres. A premissa que ambos, Felipe e Christiano, dizem faltar é que o beneficiário primeiro do milagre precisa ter invocado, antes da cura, a ajuda de Deus. E isso é verdadeiro. Milagre sensu stricto pressupõe justamente isso.

    1. Fulano pediu a Deus a cura.
    2. Fulano foi curado.
    3. Logo, a cura veio de Deus.
    4. Se curou, Deus existe.

    Os dois passos, (3) e (4), não são estabelecidos. (4) é verdadeiro se (3) o é, concedo. Mas (3) não se segue, nem fisicamente, nem logicamente, nem analiticamente, de (1) e (2), e por isso nunca chegarei a (4). (Veja que não estava, e não estou, argumentando com um raciocínio lógico formal, mas com lógica material, que admite várias premissas implícitas e inferências analíticas.) Se muita vez se usa a probabilidade para dizer que o passo é legítimo, é justamente a probabilidade que costuma derrubar raciocínios desse tipo. Se jogo um dado e obtenho 6, e procuro repetir o resultado sozinho mais 9 vezes, é muito provável que não consiga. Mas se milhões de pessoas jogam dados — rezando e pedindo intercessão –, a probabilidade de obterem 10 vezes o mesmo resultado seguido é muito grande. Como não existe nada na cura que me permita concluir pela existência da entidade auxiliar, faço uso da probabilidade: “mas rezei a Deus e fui atendido! então é provável que ele exista!” Esse é o argumento, aliás, de todos os que frequentam sessões espíritas. Como são muitos os envolvidos, as coincidências se tornam razoavelmente frequentes; com o tempo, forma-se uma crença na atuação benéfica dos espíritos. A Igreja é muito mais criteriosa. Mas isso não exclui razoavelmente a possibilidade de coincidência, pois o seu número é multiplicado. Por isso o agnóstico possui, não uma dúvida exagerada, mas “reasonable doubt”, o que qualquer crente é obrigado a admitir. A Igreja é esperta o suficiente para dizer que nenhum milagre — exceto uns pouquíssimos relativos à Virgem e a Jesus — é matéria de fé, e que por isso todo milagre pode validamente questionado. Nem Fátima é matéria de fé. Se o milagre fosse argumento pela existência de Deus, apareceria nas 5 vias de Aquino, estou certo disso (embora isso seja, apenas, um argumento histórico). Ocorre que o passo não é válido, nem filosofica-, nem fisicamente, e muito menos logicamente. Aquino sabia disso, quero crer (e veja só: “quero crer” é um argumento em favor das crenças, mas não serve para demonstrações). Portanto não temos uma prova, e nem um bom juízo de probabilidade. A evidência acumulativa tem um forte contra-exemplo na contra-evidência cumulativa — a violência, a injustiça, o inexplicável, a multiplicação de crenças sinceras e contraditórias e, nesse caso, a pior de todas: a evidência dos contra-milagres, que por simpatia são sempre excluídos da análise. Quantas vezes se pediu um milagre e não se obteve cura? A frequência é muito maior, se comparada à frequência de milagres, e isso é indisputável. E é natural, já que coincidências — conjunções improváveis, mas humanamente significativas, de fatos — são menos frequentes. Escrevi tudo aquilo, e argumento assim, porque não vejo que uso um ateu ou um crente possam fazer de inferências falsas.

  10. Só o que discordo é com essa assertiva: “A grande conclusão é que a propaganda de crenças possivelmente falsas é um erro.” Como você disse, “o índice de probabilidade serve para quantificar o que é mais e o que é menos possível.” Pois então, é esse índice que o homem responsável e culto usa para aderir a crenças e a propagá-las, pois a existência cobra dele posições e ele tem de decidir. Ora, a urgência não permite a ninguém esperar pelo juízo de certeza para tomar posições no mundo e fazer escolhas. Por isso afirmo que a sua frase “a propaganda de crenças possivelmente falsas é um erro” significa advogar uma inércia senão comprovadamente mórbida, ao menos certamente impossível de praticar diante das cobranças da existência, a menos que você decida nem sair da cama. Mas creio que você esta ciente disto ao mencionar a aposta de Pascal. Pascal, sua biografia mostra, fez a aposta, certamente amparado em um juízo de probabilidade, e não preferiu a inércia cética.

  11. Vinícius, de modo algum isso significa inércia. Stephen Hawking, mesmo preso a uma cadeira em razão da sua desordem neurológica, fez mais pela ciência no séc. XX do que muitos departamentos de física juntos. No campo das ideias, é uma ilusão pensar que o comedimento no asseverar teorias — bem como a abstenção de condenar e despejar doutrina — implica inércia; faz-se muito mais com solidez do que com pregação. É só isso o que procurei mostrar. O que cada um faz com sua vida pessoal, se aposta com Pascal ou contra ele, não é bem o assunto do texto. O fato é que na prática eu nunca vi um cético inerte em razão da sua visão de mundo, e desconheço, na história, biografia semelhante. Certa paralisação diante da vida é uma atitude comum, atribuível a uma carência de virtudes, e não a um sistema de pensamento. Já a vi em crentes e em descrentes. Como a falácia é antiga, e porque eu mesmo caí nela muitas vezes, não te acuso de ser descuidado.

  12. Wagner, as objeções comuns — formuladas com maior rigor do que a proposta de Pascal — no terreno mais duro da filosofia são sumarizadas aqui: http://plato.stanford.edu/entries/pascal-wager/#5

    Eu já vi objeções mais simples. Uma delas é dizer que o infinito é uma noção incomensurável e absurda, que deveria ser rejeitada in limine, de modo que só reste um lado em que apostar — o que arruinaria necessidade de apostar. Outra é que tudo indica que a ciência vá dar conta, no futuro, de explicar o universo sem recorrer a Deus; parte desse trabalho, de fato, já está feito. Restaria saber se uma explicação naturalista tornaria Deus desnecessário em todas as esferas, exceto na ‘existencial’ (e nesse caso valeria a pena apostar nele), ou se o tornaria necessariamente inexistente (apostar nele seria um ato de desespero). Todas indiretas. Mas essas são mais fáceis de enfrentar do que as acima, embora algumas delas não façam nenhum sentido para mim.

  13. Certo, Julio. Fiz a crítica pensando na escala de gradação das certezas: conjetura do possível, verossimilhança e certeza. Devem haver outras escalas, cito a que conheço. Pois bem, quando você diz que propagar crenças possibelmente falsas é um erro, me pareceu que você defendia que fosse necessário o grau de certeza do conhecimento para que não fosse um erro defender uma crença. Isso significaria impossibilitar-nos de defender quase qualquer doutrina, pois o grau de certeza é restritíssimo no conhecimento. Penso que, para o homem responsável e estudioso, bastaria o grau de probabilidade alta de um conhecimento para que pudesse defender uma crença, doutrina, etc. Aliás é que todos fazem, claro que ressaltando que aquela crença não trata de uma certeza absoluta. Para usar um exemplo tosco de que me vali acima, você tem a certeza de que o homem foi à Lua? É possível que não tenha ido e que tenham nos enganado o tempo todo como alguns malucos propõem? É possível. Mas altíssimamente improvável dado tudo o que conhecemos. Enfim, possivelmente falso é quase tudo, mas acima de um certo grau de probabilidade, o possivelmente falso se torna irrelevante.

  14. Júlio,

    “Basta pensar que não há sequer indícios da atuação de Deus no mundo; os milagres comprovados, se comprovados, provam que milagres existem, mas nada dizem sobre o deus a que as crenças se referem. ”

    Se só existem milagres dentro do cristianismo, não é possível que estes fatos nada dizem a respeito ao Deus que os realiza.

  15. Vinicius,

    Comecei a ler o livro do Cardeal Newman “El asentimiento religioso” (é a tradução castelhana do Grammar of Assent) e, pelo que li do prefácio, o que ele fala é muito parecido com o que você escreveu.

  16. “O primeiro gole das ciências naturais torna-nos ateus, mas no fundo do copo, espera-nos Deus” (Werner Heisenberg, cf. Bento XVI, “O Papa, a Igreja e os Sinais dos Tempos, pp. 201). Júlio Lemos está no meio do copo. Vai fundo Julião, bebe até o final.

  17. Anônimo, ninguém aqui está discutindo a fé de ninguém; até porque você não diria isso se me conhecesse. E, veja bem, esse tom apologético misturado a citações de físicos só funciona com físicos. Nunca poderia beber o copo até o fim em se tratando de física, pois sou apenas um amador na área (até hoje não arranjei tempo para uma graduação em física). O que é pior é que muita gente bebeu o copo até o fim e saiu ainda mais ateu — Hawking, Schrödinger, Lawrence Krauss e uma infinidade de outros cientistas. Essa do Heisenberg está inclusive explícita nos meus comentários: até hoje, a maioria dos cientistas, especialmente os físicos, foram crentes. Nada disso é determinado, e razões pouco podem contra a vontade humana de acreditar ou de não acreditar. Se você fosse cristão o suficiente, saberia disso. (Não leve a mal: é apenas uma provocação divertida.) Um abraço!

  18. Tadeo Isidoro,

    Há um grande número de milagres estudados dentro do cristianismo, principalmente dentro do catolicismo. São destes milagres, que são estudados por equipes multidiciplinares que estou falando.

    Mas se há algo deste tipo em outra religião, desconheço.

    Sobre os milagres dentro do catolicismo, você pode conferir os resultados colhidos pelo “Bureau Médico de Lourdes”. Creio que é a única instituição deste tipo no mundo.

    Foi por isso que disse ao Júlio, se apenas uma religião apresenta fatos que apontam para uma intervenção divina, isto diz algo sobre o Deus desta religião, e não de outras.

  19. Eles, os cristãos, não dizem que ateus não podem ter virtudes(fazer o bem), mas sim que sem a existência de Deus não existem valores morais objetivos.

  20. JV, por isso usei a cláusula “habitualmente dizem”: para indicar um modo de pensar mais popular que teológico. A pretensão de que, sem Deus, não existem valores morais objetivos — que o William Craig costuma trazer ao debate com bons pontos — também é discutível. Mesmo em termos evolucionistas se afirma que nossos valores não são produto de subjetivismo, mas de uma configuração objetiva da natureza (mesmo dinâmica: se aparentemente tudo é contingente, a objetividade é resultado da contingência). Há autores agnósticos, como Anthony Daniels, que acreditam em valores objetivos; na verdade, é difícil encontrar um ateu honesto que não creia na objetividade dos valores morais ao agir concretamente. Mas basta pensar nos pagãos antigos: não acreditavam no deus dos judeus e, mais tarde, no dos cristãos (e quase sempre nem nos deles), mas acreditavam na honestidade, na lealdade, na bondade, etc. Como qualquer pessoa com um mínimo de noção. O trabalho de fundamentar teoricamente esses valores sem referência a Deus é mais difícil, mas a história da filosofia não me deixa mentir quando digo que essa tarefa já foi empreendida por inúmeros filósofos.

  21. Tendo a concluir que se tudo é contingente não há objetividade. Na minha opinião quem não acredita na objetividade de valores morais pode até fazer o bem, mas admite que quem faça o contrário pode de alguma maneira também estar fazendo algum tipo de bem (o que é ilógico). Esses ateus honestos agiriam concretamente sem se preocupar age concretamente sem se procupar com a moral objetiva. Esses pagãos não eram na verdade politeístas?

  22. Se tudo é contingente, a objetividade não deixa de ser objetividade, kiddo. E não, esses pagãos não eram politeístas.

  23. Olá Júlio, como vai?

    Bem, partido dos pressupostos frágeis do Ceticismo que no fundo é uma crença, sim, é um pressuposto, sim, mas que não ousa dizer o seu nome percebo que acerto em ser sincero ao admitir logo que sou crente, de fato, sou cristão mesmo ao custo de ser chamado de um tipinho de doido qualquer ou fanático.

    Ora, o pressuposto da vida de exame desconfiado ao ponto do delírio persecutório, da parte dos que eu chamaria de crentes no Ceticismo, ora, não pode ser questionado tal pressuposto. Da mesma forma que para um cristão (falo dos mais esclarecidos, os protestantes) não podem deixar de levar todo o pensamento cativo ao senhorio do Senhor Jesus Nazareno, como manda a Bíblia. Foi fato que Jesus foi um personagem histórico e sua historicidade coincide com o Jesus divino que fez milagres como multiplicação por 2 vezes, sim, por 2 vezes de pães e peixes veja só você! Além de curas, ressurreição de mortos, transfiguração de Si mesmo, além de haver morrido e ressuscitado, o que é fato.

    Com tudo isso se Deus nunca agiu, ora, é porque o Ceticismo que mais parece um vampiro ao não conseguir fitar-se ao espelho, cegou-lhe o entendimento e o acesso à uma felicidade e realismo verdadeiro para com qualquer crença, muito melhor do que a de qualquer grupo não-cristão ou pior anticristão, jamais poderiam alcançar.

    JOÃO EMILIANO MARTINS NETO

  24. João, o mesmo diria um ateu: o fanatismo crente cegou-lhe o entendimento, e você agora acredita no reino das fadas. Esse argumento só funciona para quem, de antemão, já foi convencido. O protestantismo de raiz (Lutero e Calvino), além disso, cavou um fosso entre a fé e a razão, e eu não seria apressado em afirmar que são os mais esclarecidos entre os cristãos. O fideísmo e o sola fide, além de estarem em desacordo com a tradição, são grandes inimigos históricos da razão.

  25. Júlio, note que defendi em meu comentário uma postura marcante para o Protestantismo de raiz como você diz, no caso o Calvinismo (Tradição Reformada), que é o chamado Pressuposicionalismo. Veja, será que se um cético de boa cepa não estivesse convencido de seus pressupostos, ou seja, sem partir de crença, mesmo nas mais estéreis: como a sugestão cética, não haveria opinião. Não existiria apologética, História das Idéias, a Ciência e a Filosofia não sairiam do chão, entende?

    A voz do Alto, a Bíblia são argumentos por natureza “de responsa”, como diz o povão. Não vejo como não o seria. Homens santos testemunharam ao longo das Sagradas Palavras, que o SENHOR falou com eles. Agora, nem por isso um apologista precisa – um apologista deveria ser tão santo quanto os profetas – transformar suas opiniões em fanatismo grosso ou até mesmo psicose. No último caso já seria da alçada da Patologia.

    JOÃO EMILIANO MARTINS NETO

  26. É muito diferente a cautela, a atitude cética — que é universalmente válida, e não propriedade de ateus e agnósticos –, da escola cética em filosofia. É como a diferença entre método empírico, necessário nas ciências, e empirismo. Já que você mencionou, o protestantismo só é metade do cristianismo (e aqui vale a autoridade da Igreja, que é a mesma desde a sua fundação). Mas cada um responde pelas suas convicções. Abraços!

  27. Pelo menos creio que mais da metade de um excelente e vigoroso – vigor que nota pelas pregações fortes e contundentes de muitos pastores da nova safra pentecostal – responde o Protestantismo. A autoridade da igreja do Papa responde pelas leis que o Papa impõe aos seus pobres fiéis.

    Mas o Protestantismo é outro assunto, católicos são meus irmãos e também penso com você, caro Júlio Lemos, de que um certo Ceticismo metodológico e, por isso, provisório é necessário, porém, jamais como Weltanschauung ou muito menos ideologia, pois daí os céticos teriam que explicar o batom na cueca que é negar a capacidade de chegar ao númeno ao usarem o insípido Ceticismo como númeno que não ousa dizer o nome.

    JOÃO EMILIANO MARTINS NETO

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