De Beethoven, rock e a beleza

Na semana passada, assisti a um DVD do Concerto para Violino e Orquestra em Ré, opus n. 61, de Beethoven, executado pelo violinista Itzhak Perlman e a Orquestra Sinfônica de Berlim, regida por Daniel Barenboim. Foram apresentações realizadas em fevereiro de 1992, e seu resultado é espetacular! Afinal, todos os ingredientes dessa mistura são ótimos. Perlman é um violinista extraordinário, que toca com gáudio, fruindo da música que produz; é curioso observar como o violino fica pequeno nas suas mãozorras, que o tratam com carinho, como se fosse uma criança recém-nascida. A Filarmônica de Berlim dispensa apresentações, mas nunca é demais ressaltar que uma excelência daquelas só é possível depois de anos de trabalho exaustivo e exigente, realizado por pessoas talentosas, com paixão pelo que fazem. E o que dizer de Beethoven? Esse concerto é especialmente bonito, uma autêntica epifania, que eleva a alma e conduz ao assombro e à reflexão. O DVD em questão é mesmo uma maravilha.

Sinto que muitas lacunas musicais da minha formação vão sendo preenchidas apenas agora. Quando adolescente, durante anos ouvia minhas horas diárias de rock. Lembro-me que por meses escutava, todos os dias, a versão ao vivo de “Stairway to heaven”, do Led Zeppelin, e o disco vinil Fragile, do Yes. Não digo que sejam um lixo, pois seria injusto. De fato, continuo a gostar de várias coisas do rock, como Beatles, Bob Dylan, Echo and the Bunnymen, New Order, The Clash, The Who… No entanto, a música erudita é tão superior! O rock, assim como a MPB, o jazz, a música americana, irlandesa ou italiana, “são bons, sim, mas…”, mas tão abaixo da música barroca, clássica e romântica, que não me animo mais a ouvi-los. Às vezes, tenho a tentação de dizer sobre a minha adolescência: “Quanto tempo perdido!”

Acredito que seria importante educar as pessoas para ouvir a música erudita. Dizer que todos os tipos de música têm o mesmo valor, no meu modo de ver, é um triste erro, uma repetição em ponto pequeno do grande equívoco que é o relativismo. Faltou para mim a necessária educação para entender a música erudita antes, para descobrir como apreciá-la. Aliás, essa é exatamente uma das suas principais diferenças com relação à música popular: exige certo preparo para ser degustada, pela sua riqueza e sofisticação. Por sinal, mesmo a melhor música popular muitas vezes não nos apetece em um primeiro momento, até que conseguimos captá-la melhor. Nesse sentido, quando ouvi pelas primeiras vezes Sgt. Pepper’s, dos Beatles, e Exile on Main Street, dos Stones, me pareceram uma bomba; depois, fiquei vidrado em ambos. O mesmo se deu com João Gilberto e Miles Davis. Isso acontece em um nível muito mais alto com a música erudita, que pode demorar um pouco para ser apreciada, mas traz um retorno sem dúvida compensador.

No fundo, é uma questão de educação, de cultura, isto é, de cultivar o espírito. E a música erudita é ótima para isso.

24 comentários em “De Beethoven, rock e a beleza

  1. Idem. Basta abrir a alma para Bach, Wagner… Francis disse que o único momento em que acreditava em algo divino, sobrenatural, era ao ouvir Bach. É como se saíssemos do nosso corpo.

  2. O gosto musical é um bom índice para se verificar a que altura queremos elevar o nosso espírito. Este gosto, naturalmente, não passaria intacto ante um tempo que decidiu se rebaixar intelectual e espiritualmente.

  3. No sentido de introduzir a música erudita aos iniciantes no mundo clássico, creio que o Artur da Távola faz uma falta considerável.

  4. Só o termo “música erudita” rende uma boa discussão. Merece outro texto.

    Dizer que todos os tipos de música tem o mesmo valor é uma ofensa, no meu modo de ver. Não tem. Quando leio ou ouço isto, sempre penso no trabalho de um Jordi Savall – que vem ao Brasil em setembro e tem uma obra belíssima– , por exemplo, que resgata e pesquisa a música medieval , tendo que recriar alguns instrumentos para recuperar e nos apresentar a sonoridade de uma época. Quando descobri o trabalho deste senhor fiquei pasmo. E dói na alma e no bolso encontrar algo dele no Brasil.

    Mas que é uma questão de educação, não há dúvida. E eu sou um com uma tremenda falta disso. Sinto falta de conhecer melhor épocas, compositores, composições, instrumentos…. Esse assunto rende e é belíssimo.

  5. Concordo plenamente, meu caro. Lindo texto. Embora eu ouça minhas doses de rock e jazz, não há como negar que a música erudita (sim, gosto deste termo porque expressa a maneira como este tipo de música é feito) é superior. Não seria ótimo substituirem disciplinas como filosofia e sociologia, recentemente integradas à escola, por algo como ‘música erudita’?! Acho que teríamos uma geração com sensibilidade mais refinada…

  6. Caro Leonardo, independente do rótulo, e do meu ponto de vista sem necessidade de retirar a filosofia (ainda que eu perceba o que você quer dizer), pra mim parece claro que educação musical nos currículos escolares faria um bem enorme ao País. Mesmo tarde na vida, umas noções básicas abrem o ouvido – e de toda forma, ainda que sem teoria musical, rende muito prazer aquele exercício antigo e singelo de associar Euterpe a suas irmãs incumbidas de literatura, história, etc. Exemplo entre tantos: ouvir o belo trabalho do Jordi Savall com a Capella Reial de Catalunya em cima dos “romances y músicas” de Dom Quixote (talvez ainda se ache na Livraria Cultura; sim, caro à beça). Você faz uma leitura ainda mais feliz do Cervantes.

  7. Subitamente fixado no Dom Quixote. Talvez mais em conta pra quem passa pelo exterior: “Los Romances del Quijote”, CD duplo, Antoni Rossell e C. Courtly Music Consort. Ótima companhia pra leitura.

  8. O projeto que devolve o ensino da música às escolas já foi aprovado na câmara e no senado. Falta apenas a votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara.

    O problema vai ser o “como” o ensino de música vai voltar às salas de aula. De um lado, o relativismo musical e o medo de parecer politicamente incorreto correm o risco de darem ao estudante aquilo que ele já ouve no cotidiano, tornando-se uma adulação do gosto adolescente; do outro lado, a música erudita na escola está bem afastada do cotidiano do aluno, o que leva à incompreensão do pop-mundo musical em que vive.

    a tarefa dos professores será buscar um ponto de equilíbrio a fim de tornar o ensino da música uma experiência significativa como a que o Renato Moraes nos transmitiu no texto.
    Eu fui iniciado na música erudita (termo que não aprecio – a outra música seria a inculta?) e só na adolescência descobri o pop/rock e mais tarde a mpb dos anos 30 aos 70.

  9. Caro Renato,

    se você ouviu Concerto para Violino e Orquestra em Ré, opus n. 61, de Beethoven, executado pelo violinista Itzhak Perlman e a Orquestra Sinfônica de Berlim, regida por Daniel Barenboim e escreveu este belo artigo, imagino o que seria este artigo se tivesse sido escrito inspirado no Concerto para Piano nº05, de Beethoven, executado pela pianista Helenè Grimaud acompanhada pela Filarmônica de Berlim. Um espetáculo!!

  10. É uma grandíssima bobagem falar que música erudita é superior! O que seria dela mesma, se no começo não houvesse existido a música dita popular?

    Cada música e estilo tem seu próprio significado e sua razão de ser.

    Pessoalmente gosto muito de música erudita, mas vocês devem abrir os olhos pras diversidades do mundo e da música, ficar presos no passado não vai melhorar a música de nosso século.

  11. É verdade que a música erudita veio da popular. Isso é inegável. Mas isso significa que ambas têm o mesmo valor em si mesmas?

    A flor vem do caule. Mas qual dos dois recompensa mais a visão?

  12. Depende do que você acha que é a beleza, senhor Joel.
    E também não do que você quer ver, mas do que precisa ser visto.

  13. Concordo plenamente.

    Meu ponto era apenas de que, do fato de que uma coisa precisa de outra para existir, não decorre que ambas tenham o mesmo valor.

    Pode ter certeza que eu gosto muito de música popular, e tenho certeza de que ela tem muito valor. Só não ouso dizer que é superior à música erudita.

  14. Não fui clara? Não existe NENHUMA música superior a outra!

    Não existe um padrão para podermos dizer o que é melhor ou pior. O que existe é a cultura e o gosto de cada um.

    Exemplo: para uma senhora indiana, ouvir as músicas de seu país pode significar muita coisa, e ouvir um concerto de Mozart, absolutamente nada.

    Sugiro como leitura esta página da internet: http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=174

  15. Cara Ludmilla, se você pensar na arte como aquilo que ela é – uma habilidade prática, ars, techné, em inglês craftmanship – terá como julgar facilmente uma obra, tanto musical como teatral, literária, visual, etc.

    Uma boa música é uma música feita com “arte”, habilidade, e por isso consegue conquistar ouvintes que estejam preparados para a sua qualidade; assim como um técnico industrial consegue dizer que uma peça é melhor do que outra, porque está mais bem acabada, é feita com um material mais resistente, e até porque é mais ‘bela’ (talvez a beleza seja justamente o ‘aspecto’ – quod visum placet – de algo que é bem feito).

    Em geral, canções populares ruins – pense em Claudinho e Bochecha – não exigem arte e basta que exprimam as bobagens que pessoas sem o mínimo de experiência em apreciação musical querem ouvir. Já as boas deixam marca, mesmo que você não saiba dizer o porquê: basta pensar em Paulinho da Viola ou Vinícius de Moraes, dos quais não sou apreciador mas cuja arte reconheço com facilidade.

    Erudito ou popular, será grande uma peça ou canção que seja feita com maior primor e, ao mesmo tempo, consiga cativar as pessoas que têm mais experiência e sensibilidade (isso é o gosto, que se aprimora, como o gosto por vinhos ou cavalos ou o que seja).

  16. Caro Júlio, parece que eu e você estamos de acordo.

    A única coisa que não concordei ao ler esta matéria, foi ver que a música erudita seria “superior” a qualquer outro tipo de música. Isso é puro preconceito.

    Acredito que as formas de composição etc. são diferentes. E em algumas músicas de hoje em dia, dizer que o autor “compôs” a música parece um insulto à arte.

    Mas acho mais do que plausível existirem músicas rock, jazz, mpb que são mais complexas, digamos, do que algumas músicas eruditas.

  17. Concordo com você Renato. Experimente também umas doses de Mahler, Bruckner, Shostakovich, Villa-Lobos e Vaughan Williams. Digo também que o JAZZ é uma música de excelência, que embora vá em uma outra direção (as vezes se cruzam – Ex: Gershwin, Bernstein), nos enriquece com a sua espontaneidade, técnica, criatividade, ecletismo, beleza e experimentação. Experimente ouvir a orquestra e os arranjos da compositora e band leader Maria Schneider e do grande Duke Ellington e você irá concordar comigo. Experimente também alguns compositores do cinema como: John Williams, Morricone, Thomas Newman, Alexandre Desplat e Dario Marianelli. A música do cinema, ao misturar várias tendências e estilos (rock, jazz, música de concerto, música eletrônica, etc), nos oferece um grande painel de timbres, rítmos e temas diferentes. Ouça também os concertos para violino de Brahms, Tchaikovsky, Sibelius, Elgar e Shoenberg. Escutar o Dylan de vez em quando também é bom.

  18. As discussões que foram geradas por esse texto são impressionantes.

    Cada uma com um acento diferente, mas todas com uma consoante em comum, são elas: P de puxar, S de sardinha e L de lado.

    Será possível que, no ano de 2008, ainda existam pessoas que não entendem o processo cíclico que ocorre na “evolução” histórica de qualquer expressão artística.

    Se hoje a música, que alguns tendem a nomear de “erudita”, está em baixa no quesito popularidade deve ser pela “sofisticada” tendência, que seus apreciadores, tem em nomeá-la desta maneira.

    E quando o efeito de alguns bons copos de vinho finalmente vem à tona, fica muito fácil reclamar da bebedeira e culpar a safra ou de repente, para os mais antenados, culpar o modo como o garçom serviu o néctar.

    Se o assunto é música erudita em comparação qualitativa/hierárquica com a música popular, será que posso atrever-me a citar o nome Brad Mehldau e sua transposição para o piano da Paranoid Andróid dos “roqueiros” do Radiohead.

    Ovos ou galinhas não importam quando falamos de música…

    Sendo ainda mais pessoal no assunto…

    Se posso descrever a música (sem divisões) numa expressão aritmética, sempre representarei numa “conta de mais” (+) e dizer isto nunca é de menos…

    Sugestão!!!

    Deixem a sardinha esturricar uma vez, quem sabe assim mudam-se os pratos e descobrem-se novos prazeres da desgustação.

    Obviamente, vamos sentir falta da sardinha, mas quem sabe depois de algumas experiências novas não aprenderemos a servir a sardinha para outros em sinal de respeito, humildade, agradecimento e todas essas palavras que denotam algo de valor moral elevado.

    Pronto.

    Esta aberta a temporada para discussões sobre valores morais elevados… se bem que, deve ser em outra categoria…

    Prefiro terminar parabenizando a revista.

    Ela é ótima e deve tornar-se excelente.

  19. Só uma pergunta: por que acordes maiores e menores são chamados relativos?

    Não vale consultar a wiki …

    Educação musical … você?? Conta outra pra eu rir!

  20. Esta aí um debate pertinente. Contudo, o interessante, é que percebo, não raro, que sempre são recheados de pessoas que, ao que parecem, não tocam um instrumento sequer. Não há, me desculpem os bons de ouvido e os internalizadores de espírito de plantão, como perceber a alma musical, sem ter tido o inenarrável prazer de começar e terminar uma música. Senão, vejamos, quer dizer que existe música superior e música inferior? Bom, meia verdade. Se os que a faz grandes ou pequenas é a técnica, então caríssimos, a coisa se retorce. Eu posso tocar algo barroco ao violino, de forma simplérrima, enquanto faço um solo de guitarra elétrica de 20 minutos onde cuspo um milhão de notas. Tudo, em termos musicais, que extrapolam a parte técnica, é estética. E isso, meus caros, é cair, sim, no fosso do relativismo. Por tanto, a música é sim passível de valoração, mais isso não deve ser empreendido na mera distinção entre estilos. O autor do artigo fala em relativismo, mas comete o grave erro de por no mesmo saco de gatos, Led Zeppelin e Miles Davis. Por favor!

  21. Concordo que a música erudita possui um nivel de sofisticação e rigor técnico muito superiores às manifestações de música popular. Mas o que torna a audição musical uma experiência “mágica”, catártica até, não é apenas a qualidade técnica daquilo que se ouve mas também a sensação que ela nos passa e a sua capacidade de representar um anseio individual ou coletivo do espírito que a contempla.

  22. Li os comentários até aqui e tenho TRÊS opiniões:

    1. Que a música clássica não surgiu da música popular.

    2. Que o valor de uma música não advém apenas de puro gosto pessoal/subjetivo.

    3. Que não há parâmetro maduro ao dizer que a música clássica é melhor que a música popular.

    Me explicando:

    1. Quanto à genealogia dos dois gêneros, me parece que é antes o *impulso à musicalidade* que gerou no homem uma técnica ora presidida pelo espírito popular, ora pelo espírito erudito. Mesmo que o popular tenha amadurecido antes nesse sentido. 2. Quanto ao valor definido pelo gosto, não acredito no relativismo, que destitua o valor intrínseco de uma obra-de-arte, e acredito que o instrumento de aferição do valor artístico se chama “critério”. 3. E finalmente quanto à comparação dos dois gêneros, se eles possuem objetivos diferentes – um a reprodução de uma forma que afirme e garanta a permanência de um estilo, o outro a manipulação da forma que a torne apreciável junto ao seu próprio conteúdo -, então não há propósito em julgar uma pelo objetivo da outra. Mas é claro que na música clássica existe uma consciência da linguagem utilizada que, por definição, é mais ampla, o que reflete em variedade estética e em profundidade no uso de outros meios expressivos.

    []’s.

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