De como construir um consenso

Por Fabio Silvestre Cardoso

Fernando Henrique Cardoso, todos sabem agora, é favorável à descriminalização de todas as drogas. E o ex-presidente da República não apenas tem defendido a causa nas entrevistas e nos debates políticos, mas também é o protagonista do filme “Quebrando o Tabu”, dirigido por Fernando Grostein Andrade.  Trata-se de um daqueles filmes que, já de antemão, o espectador sabe qual é a tese central. Ao contrário das peças de ficção, cuja proposta é anunciada ao longo da obra, o documentário ancorado pelo sociólogo octogenário conta com um enredo, a um só tempo, previsível e esperado.  Mais do que isso: a fama da fita é anterior à sua exibição, haja vista que nas colunas dos bastidores políticos essa era uma das notícias recorrentes quando o assunto era FHC.

De qualquer modo, a repercussão do filme por ocasião de sua estréia foi grande, para além das burocráticas resenhas reservadas aos documentários. Para se ter uma idéia, no mesmo dia, o jornal “Folha de S.Paulo” e a revista eletrônica “Fantástico”, da TV Globo, destacaram FHC como o protagonista da produção de Fernando Grostein Andrade, meio-irmão de Luciano Huck (um dos produtores associados do filme, diga-se). Noves fora esse blitzkrieg midiático, nota-se que o diretor efetivamente concebe uma fita bastante sofisticada no que concerne ao estilo e à gramática cinematográfica: no lugar das cabeças falando, estáticas, o espectador assiste às animações que vão apresentar como as drogas estão por aí desde que o mundo é mundo. Ao mesmo tempo histórica e “lúdica”, tal referência cumpre a motivação clara de expor fatos consolidados para elaborar o argumento a ser desenvolvido mais adiante. Sim, é certo que o filme quer “quebrar o tabu”, mas para tanto é preciso delimitar de que modo o estigma foi “construído”. A fim de alcançar esse objetivo, nada melhor do que resgatar a figura de um velho inimigo público número 1. Corte para Richard Nixon, o presidente norte-americano que todos amam odiar, com sua mensagem de “guerra às drogas”. Pois foram os políticos norte-americanos (do partido republicano, bem entendido), agora o público sabe, que primeiro declararam guerra às drogas numa cruzada que se mostra ineficiente como apontam as pesquisas que fundamentam o documentário.

Aqui, a contraposição de imagens é eficaz. De um lado, os políticos, com seus ternos castiços e suas mensagens conservadoras (além de Nixon, Ronald Reagan também é identificado como “o inimigo”); de outro, os jovens, cantando o amor livre em Woodstock, pregando a paz e a liberação dos costumes. Entretanto, curiosamente, o documentário não segue essa oposição simplória. Os ilustrados pretendem ser mais ilustrados. Embora afeito ao discurso do público jovem, Fernando Grostein Andrade decide “problematizar” a questão. Recorre, para alcançar esse objetivo, aos especialistas e ao discurso de autoridade. Na verdade, seria mais correto dizer autoridades. Além de FHC,  Bill Clinton, Cesar Gavíria, Andrés Pastrana, Drauzio Varella, Gael Garcia Bernal e até mesmo Paulo Coelho estão juntos para defender um tratamento menos drástico e, quem sabe, mais progressista à questão das drogas. O que chama a atenção aqui é que todos esses utilizam as histórias pessoais como salvo conduto para argumentar pró-descriminalização. Bill Clinton, por exemplo, menciona o caso de seu irmão, adicto em cocaína.  O doutor “Fantástico” Dráuzio Varella endossa a argumentação, valendo-se dos relatos e depoimentos que ouviu durante sua temporada no Carandiru. Como sua experiência já rendeu um best-seller, suas credenciais agora se revestem pelo suposto conhecimento empírico e demasiadamente humano da questão. E aos que pensam que Gael Garcia Bernal está presente por ser um rapaz latino-americano não poderia estar mais enganado. A certa altura do filme, o ator “sai do armário” e confessa que já teve sua plantação de maconha. A abordagem científica também aparece como que para sustentar o argumento da descriminalização do ponto de vista clínico, muito embora o filme não deixe explícito que a questão não é consenso entre os especialistas.

Outra estratégia utilizada pelo documentarista para justificar o argumento pró-descriminalização é a equação perversa provocada pela indústria do tráfico de drogas. Funciona assim: como o tráfico alimenta o usuário de forma ilegal, o dinheiro obtido auxilia as organizações criminosas a adquirirem armamento pesado que, no limite, é gerador de outros problemas, como é o caso das balas perdidas nas favelas cariocas. De acordo com esse raciocínio, o dinheiro da compra de armas escassearia se não houvesse mais tráfico de drogas. O dado curioso dessa argumentação é que se trata essencialmente da mesma premissa que costura a tese do filme “Tropa de Elite”. Para aqueles que já se esqueceram da fita de José Padilha, vale lembrar que o narrador enfatizava que os usuários de drogas financiavam o tráfico e, por extensão, toda a cadeia de criminalidade. Por esse motivo, tomou surra de toda a intelligentsia brasileira, para quem essa conclusão era radical, superficial e mal-elaborada. Já em “Quebrando o Tabu”, a pensata tornou-se não apenas aceitável, como também foi revestida pelo apreço dos formadores de opinião presentes no filme. E isso se deve, evidentemente, tanto à exposição dos argumentos por essas personalidades quanto pela forma como o diretor traduz, de maneira eficaz, essas idéias com a narrativa cinematográfica. Senão, vejamos: entre o espanto e a indignação, Fernando Henrique Cardoso passeia pelo depósito de armas no Rio de Janeiro. Em um diálogo que poderia ser mesmo pertencer a uma peça publicitária pró- desarmamento (outro tema importante da “corrente do bem”), ele toma conhecimento de que boa parte das armas apreendidas vem de fora do Brasil. E mais: que o crime organizado as consegue graças ao dinheiro do tráfico. Em seguida, o espectador é apresentado a um jovem que foi alvejado por uma bala perdida. A rigor, a solução sugestionada pelo filme é: os problemas com bala perdida seriam sensivelmente menores se, por exemplo, as drogas fossem legalizadas, posto que, com isso, não haveria capital necessário para adquirir armas de onde saem boa parte dos disparos mortais (A propósito disso, o cartaz do filme traz uma bala amarrada a um cigarro de maconha).

Como o próprio título sugere, “Quebrando o Tabu” tenta estabelecer um novo parâmetro para o debate sobre a descriminalização das drogas. As expectativas para  a discussão, no entanto, caem por terra, a partir do momento em que o filme toma um lado (de quem defende abertamente a descriminalização) –  ainda que busque se esquivar do que seria um discurso apologético do uso das drogas.  E é curioso observar que mesmo as experiências que não funcionaram na Europa (caso da Suíça, para ser mais preciso) são articuladas de forma a dar a sensação de que tragédia pior é não debater a questão das drogas. Para Fernando Grostein Andrade, debater significa dar munição àqueles que são favoráveis à tese do filme. Nada disso surpreende quando se observa que essa é a posição de consenso (e, portanto, hegemônica) dos meios de comunicação que tratam desse tema. Se querem quebrar um tabu, mostrem então um formador de opinião que defenda abertamente uma política mais incisiva no combate às drogas. Aí sim o debate realmente pode começar.

Fábio Silvestre Cardoso é jornalista e professor universitário.

7 comentários em “De como construir um consenso

  1. Fábio, já que não aparece nenhum “formador de opinião que defenda abertamente uma política mais incisiva no combate às drogas” tomo para mim este desafio com a politica que gosto de chamar, entre amigos, de SOLUÇÃO FINAL. Considerando a complexidade do assunto não descarto as dúvidas apressadas quanto a sua exequibilidade o que depende tão somente de uma imensa vontade politica e determinado enfrentamento da corrupção em nivel nacional e internacional. Não é possivel que o combate às drogas seja efetivo enquanto Estados são suspeitos de financiamentos e ligações com o tráfico. Portanto, o compromisso desses governos firmado internacionalmente é o primeiro estágio de um combate efetivo o que me leva ao passo seguinte. Este sim radical: a localização e destruição das plantações, sem lenga lenga de impossibilidades num mundo monitorado e de eficiencia remota. Afinal não se trata de uma guerra? Ou trata-se de um comércio que gera trilhões de circula pelo mundo fazendo a festa de muitos poderosos ? O mais é conversa e descriminalização mesmo como recurso inteligente para uma guerra perdida.

  2. Fábio, belo artigo. Pensei que além dos formadores poder-se-ia mostrar também os estragos que a droga faz. Ouvir quem trabalha com a recuperação de dependentes, com as famílias que tiveram a vida destruídas pela droga, com quem, em suma, sofre diretamente com o problema.

  3. Parabéns aos belos comentários:

    – “Se querem quebrar um tabu, mostrem então um formador de opinião que defenda abertamente uma política mais incisiva no combate às drogas. Aí sim o debate realmente pode começar.”

    – “Não é possivel que o combate às drogas seja efetivo enquanto Estados são suspeitos de financiamentos e ligações com o tráfico.”

    – “Pensei que além dos formadores poder-se-ia mostrar também os estragos que a droga faz.”
    Aliás::

    1) Liberar não significa extinguir mercado ilegal. Quem lembrou isso foi o Olavo: “para qualquer produto que é legalizado, existe o mesmo produto no mercado negro”.

    2) Legalizar as drogas aumentaria o poder dos traficantes e bandidos, ao contrário do que pensam. Imaginem o cenário. Liberou a cocaína e o crack hoje; pergunto: amanhã quem será que vai deter o know-how do comércio? Quem é que sabe qual droga vende melhor em qual lugar? Quem é que sabe como se transporta e armazena com eficiência? Quem é que sabe como dar um sabor e um efeito mais atraente? É claro que serão os mesmos caras que fazem a bagunça hoje, ilegalmente. E é óbvio que isso não resolve, e sim piora o problema.

    3) O maior prêmio para um bandido é justificá-lo. É um absurdo você adotar, como solução para um problema, o esquecimento de que ele é um problema. Depois de tudo o que o tráfico faz com a sociedade, vamos lhe dar como prêmio a própria legalização, para beatificá-lo? É como a ideia (doida!) de tornar as FARC um partido político. Afinal, não é precisamente isso o que eles querem?
    Penso que estas considerações acima devem vir antes de tomar qualquer partido na discussão. Pois sem uma cota mínima de honestidade intelectual todo debate público torna-se uma piada. E o que poderia ser uma discussão torna-se mera propaganda.

    Veja mais em: http://henriquecal.posterous.com/tabu-consenso-cegueira-polemicas

  4. Algumas questões:
    1. Que lógica explica liberar exclusivamente a venda da maconha? Se a chamada guerra contra as drogas é nociva e contraproducente, que razão haveria para manter na ilegalidade o oxi, a heroína e o craque?
    2. Ao autorizar a venda da maconha e talvez de outras drogas, eu imagino que um controle da qualidade venha logo atrás. Já que o narcótico passou a ser um produto legalizado, o seu comércio deve ser disciplinado pelo código de defesa do consumidor. É notório que os traficantes misturam todo tipo de adulterante às drogas – esterco de vaca, ou giz junto com a maconha; chumbo com o haxixe; pó de mármore, cal, gesso, ou pó de vidro com a cocaína etc. Há casos registrados de estricnina sendo usada como substância de corte. Essa prática, é óbvio, não seria permitida pelo Estado; logo as drogas vendidas legalmente (nas farmácias, por exemplo) teriam um preço x e os traficantes, que não tem nenhum compromisso com a qualidade, continuariam vendendo drogas falsificadas por um valor muito menor. A liberalização não eliminaria o tráfico.
    3. É interessante que venha de liberais como o FHC essa idéia. De um lado falam em diminuir o tamanho do Estado e do outro fazem uma proposta que se aceita necessariamente traria o efeito contrário. Imaginem a consequência disso na saúde pública ou o corpo de fiscais para verificar se a comércio, em cada um dos seus pontos de venda, estaria seguindo as regras estabelecidas.

  5. Ainda uma questão:
    4. Não se pode falar em guerra as drogas no Brasil como se fala em war on drugs nos Estados Unidos. A referência aos presidentes Nixon e Reagan só demonstra a intenção desonesta do filme. Seria o caso de perguntar: que medidas drásticas (pois supostamente teriamos um conflito deflagrado) foram tomadas aqui no sentido de combater o tráfico? Foram criadas leis para penalizar severamente os traficantes? Organizaram a defesa das fronteiras nacionais, tendo em vista que as drogas e armas ilegais vem, em geral, dos países vizinhos? Realizaram alguma ação diplomática contra os governos que protegem e até auxiliam o tráfico na América Latina? Estabeleceram uma rede de inteligência funcional entre os estados da federação, para que esforço contra o crime seja sistematizado? Sem dúvida, a resposta é quatro vezes não. Então, que raio de guerra é essa?

  6. Eu proponho, na contramão de tudo o que foi dito, a PROIBIÇÃO de todos os tipo de psicotrópicos, a começar pelo álcool, um dos mais perniciosos que existe. Tentem pensar nisso Sr. Fábio Silvestre Cardoso, enquanto degusta seu adorado Cabernet Sauvignon, safra 1989.

  7. Quanto ao FHC nem há o que se discutir: é um octogenário arauto dos quintos, cumprirá seu papel até chegar a casa do chefe. Quanto Dráuzio Varela, cara de morto-vivo, é muita falta de vergonha no meio dos cornos, vive falando mal de quem fuma, que a fumaça faz mal para os não fumante etc e vem defender a liberação das drogas. – vai tomar no…

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