De mal a pior

Conservador americano defende as virtudes do pessimismo em livro que precisa ser lido no Brasil.

Por Túlio Borges

Não são poucos os conservadores que ficaram ou ainda estão eufóricos com o novo Congresso americano, configurado pelas eleições de novembro. John Derbyshire, articulista da National Review, definitivamente não é um deles.

Para ele, os Estados Unidos vão de mal a pior e isso é, em grande medida, culpa do otimismo irracional e fantasista das elites americanas. O mundo seria bem mais tolerável se os americanos fossem mais realistas, isto é, pessimistas. Não pessimistas exagerados, mas homens que reconhecem os limites da natureza humana e, conseqüentemente, o perigo das ideologias. Homens como os Founding Fathers, por exemplo. Esse é o argumento central do mais recente livro de Derbyshire, We Are Doomed: Reclaiming Conservative Pessimism [Nós estamos perdidos: resgatando o pessimismo conservador], publicado no final de 2009 e relançado há poucos meses em brochura.

O autor elege uma boa e longa lista de alvos, todos merecidamente ridicularizados: o multiculturalismo e o culto da diversidade; senadores caquéticos e outros representantes do poder estatal; a decadência da cultura, observada na cada vez maior incidência de picaretas que se passam por artistas; a afeminação da sociedade moderna; teorias educacionistas; bem como o politicamente correto e o igualitarismo. Também expõe a falácia por trás de irresponsáveis projetos de política populacional e política externa. Segundo ele, que cita o excelente trabalho de Samuel P. Huntington, a América abre suas fronteiras a hordas de bárbaros ao mesmo tempo em que tenta convertê-los à democracia por meio de custosas e sangrentas intervenções militares. Como vemos, as ilusões otimistas têm adeptos na esquerda e na direita.

Derbyshire mostra que o governo americano – considerado um grande problema por Reagan e até mesmo por Clinton – não para de crescer e que alguns congressistas estão há mais tempo no poder do que os piores ditadores do planeta (o ex-presidente egípcio Hosni Mubarak aparece na lista, ao lado do ameaçado carniceiro líbio Muammar Gaddafi); que os dispendiosos planos progressistas para a educação (“mais dinheiro! Mais dinheiro!”) foram testados ad nauseam, mostraram-se completamente errados e continuam a ser defendidos como se nada tivesse acontecido; que o politicamente correto tem tudo que ver com a crise imobiliária de 2008, na medida em que os bancos haviam sido forçados por sucessivas medidas governamentais a estender crédito financeiro a grupos que não tinham qualquer condição de pagá-los, especialmente minorias. O presidente Barack Obama, que segue culpando Republicanos e capitalistas pela crise, é na verdade quase tão responsável quanto o “conservador compassivo” George W. Bush. Como advogado em meados da década de 90 e como senador por Illinois a partir de 2005, Obama ajudou a forçar os bancos a violarem a lógica econômica em nome da igualdade, contribuindo, assim e entre outras coisas, para o enriquecimento dos lobistas da Fannie Mae e da Freddie Mac.

We Are Doomed é uma polêmica sagaz, ocasionalmente hilária. Pelo que escreve sobre políticos que perderam o senso do ridículo, Derbyshire não deve ter lá muita apreço por John Boehner, o Republicano chorão que assumiu a liderança da Câmara. Seu livro também é bastante pessoal, repleto de digressões autobiográficas. Algumas são muito engraçadas, como, por exemplo, o episódio em que o autor, que é casado com uma mulher de origem chinesa, avisa ao filho adolescente que se ele ficar assistindo programas como Sex and the City, começará a menstruar. Ou também quando ele confessa falar três ou quatro vezes por semana para o casal de filhos que eles devem arrumar um emprego governamental (é lá que está o dinheiro numa América cada vez mais estatista e despótica, um Estado “otomano” onde os cidadãos viraram súditos).

Os onze capítulos centrais (o primeiro e último do livro funcionam, respectivamente, como introdução e conclusão) são temáticos (política, cultura, economia, etc.) e podem ser lidos isoladamente. E a qualidade não é homogênea. Se o segundo capítulo, sobre a ideologia da diversidade, é soberbo, infelizmente não se pode dizer o mesmo de alguns outros. O quarto capítulo, sobre a cultura, curiosamente carece de imaginação. Sua única boa seção é aquela que trata dos supostos poetas americanos de hoje. E se o sexto capítulo, sobre a natureza humana e os avanços da neurociência, é o mais instigante, também é muito equivocado. Nele, Derbyshire faz o que nem mesmo Thomas Hobbes se atreveu a fazer e transforma a ciência moderna em metafísica. Afirma que as novas pesquisas apontam para o solapamento de conceitos como a razão e o livre-arbítrio. Ironicamente para um pessimista, ele demonstra muito otimismo em relação ao poder explanatório da biologia e, como um bom darwinista, se esquece de que ela só fornece um retrato parcial do ser humano e de que não é possível demonstrar racionalmente a inexistência da razão. Outro interessante defeito, que se destaca no último capítulo, é certa nostalgia Boomer, que concebe os anos 50 como uma era dourada e não como o prelúdio da crise da década seguinte.

Se o livro como um todo é instigante, nem sempre é convincente. Sua superficialidade e despretensão são ao mesmo tempo uma virtude e um defeito. E a prosa simples, que parece ter sido escrita às pressas, reflete todas essas características. Mais propriamente um matemático do que um literato, Derbyshire não exibe a profundidade de um George Santayana, a sutileza de um Albert Jay Nock, ou a exuberância retórica de um H. L. Mencken – talvez inclusive por não ser muito otimista quanto à capacidade intelectual de seus leitores. No fim das contas, We Are Doomed não é um clássico – e corre o risco de envelhecer rapidamente.

De todo modo, trata-se de um livro muito inteligente e divertido, que precisa ser lido pelos brasileiros – iludidos ou não. Se, como afirmam Derbyshire e seu colega Pat Buchanan, os Estados Unidos correm o risco de acabarem virando “um Brasil balcanizado”, os brasileiros têm imitado as piores coisas dos americanos. Algumas das iniciativas políticas mais tolas de nosso vizinho do norte estão em seu estágio inicial por aqui e gozam de imensa popularidade. Ouvir a conversa de bar de um pequeno grupo de gestores governamentais é tudo aquilo de que precisamos para comprovar o fato.

Por sua natureza, We Are Doomed é o tipo de livro que o desesperado conservador brasileiro pode levar para ler no avião. O difícil será evitar o pensamento de que a aeronave está fadada a cair, como naquele famoso quadro que Evelyn Waugh encomendou para adornar a sala.

Túlio Sousa Borges é bacharel em Relações Internacionais e escreve sobre política e cultura.

7 comentários em “De mal a pior

  1. Pessimista como… os founding fathers? Se há figuras que espelham o melhor e mais saudável otimismo (no âmbito natural) são os founding fathers. “Pursuit of happiness”, grandes feitos; eles concretizavam a crença básica americana de que é possível ao homem alcançar seus valores.

    Não eram, definitivamente, “conservadores” a lamentar a decadência do mundo e sonhar com um passado dourado. (E vejam só: tem gente que é assim e mesmo assim faz coisas muito boas). Contudo, estocadas bem dadas aos ridículos da cultura atual são sempre bem-vindas.

  2. Interessante o texto, mas falho. Os founding fathers serem categorizados “conservadores”, numa livre expressão destituída de outras características mais elementares, é um erro comum e que favorece, por exemplo, o antagonismo conservadorismo/liberalismo. Os “FF” eram anti-coletivistas. Ponto. A partir daí podemos gerar toda sorte de discussão, inclusive se o pessimismo é interinamente conservador, ou cristão.

  3. É, Joel, o autor distorce os Founding Fathers um pouco, sim (Santayana também os considerava otimistas). Por outro lado, tenho a impressão de que você caminha perigosamente rumo ao outro extremo.

    Antecipando objeções como a sua, Derbyshire usa citações de alguns Founding Fathers como epígrafes ao capítulo 3 do livro, que trata de política:

    “There is danger from all men. The only maxim of a free government ought to be to trust no man living with power to endanger the public liberty”, John Adams, 1772

    “Experience [has] shown that, even under the best forms [of government], those entrusted with power have, in time and by slow operations, perverted it into tyranny”, Thomas Jefferson, 1779

    “Few men have virtue to withstand the highest bidder”, George Washington, circa 1780

  4. Boas citações!

    Acho que podemos dizer que eles eram pessimistas quanto ao poder, ao Estado. Daí sim cabe falar num profundo pessimismo quanto à impossibilidade de melhorar as pessoas como um todo, pela ação coletiva. E também um realismo quanto à situação moral dos seres humanos: os incorruptíveis são muito poucos.

    Mas eles acreditavam na capacidade dos indivíduos de se relacionar harmoniosamente e de buscar seus valores seus no mundo; portanto, no direito de perseguir a felicidade.

    Eram otimistas quanto à vida e as possibilidades do homem, pessimistas quanto à tentação de usar o poder para moldar o homem ou a sociedade.

  5. Observações pertinentes do Joel Pinheiro e do Filipe Liepkan (cujo post ainda não estava no site quando escrevi minha resposta ao Joel).

    Pessoalmente, no entanto, tendo a concordar com Roger Scruton quando ele diz, nas primeiras páginas de [i] The Meaning of Conservatism [/i] (1980), não haver conservador ou liberal (i.e., libertário) puro. Isso explica a tensão no pensamento dos Founding Fathers, que eu provavelmente não resumiria da maneira que o Joel fez no último parágrafo.

    Thomas Jefferson é um caso interessante. Era tido como herói pelo conservadorismo social do início do século XX, conservadorismo social evidente, especialmente no que tange à educação, nos escritos do luminar libertário Albert Jay Nock.

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