De viagens e promessas não cumpridas

Há alguns meses prometi aqui e aqui que faria uma série de crônicas sobre uma viagem que fiz à Itália no fim do ano passado. Foram dois posts, o que tecnicamente é suficiente para definir uma série, mas a verdade é que não cumpri essa foi uma promessa não cumprida.

Como sempre, obviamente tenho duas dúzias de desculpas e mais de uma delas envolve a dedicação – silenciosa, por enquanto – ao IFE e à Dicta. Mas desculpas continuam sendo desculpas: não resolvem o problema e abusam da paciência de quem não tem por que se preocupar com elas.

Mas se não posso mais voltar atrás, tenho ao menos mais um texto a oferecer: depois de escrever aqueles dois posts fui convidado a fazer algo parecido para uma revista chamada Itália em São Paulo. O que vai abaixo foi publicado por lá em junho deste ano. E espero poder compensar essa falha injustificável com bons resultados nas várias Dictas e otras cositas mas que estão por vir. E, para a sorte de vocês, nestes casos os outros responsáveis são muito melhores que eu.

*****

Num dos mais famosos versos da poesia latina, dizia Horácio que caelum non animum mutant qui trans mare currunt. “Mudam de ares, mas não de ânimo, os que cruzam os mares”. Amante dos prazeres da vida como era, só pode existir uma razão para ter dito uma coisa como essa: ele vivia na Itália. Para nós que estamos longe, só nos resta arrumar as malas e cruzar estes mares com a certeza de que muito, muito em nós pode mudar nessa viagem.

Assim eu fui e, como não poderia deixar de ser, comecei por Roma. Era véspera de Natal e meu melhor presente foi apenas chegar à cidade. Porque em Roma não é preciso fazer mais nada, basta estar ali, andando pela rua, cruzando a cada esquina com uma escultura, uma fonte ou uma igreja que, antes de descobrirmos o nome, já disseram tudo de si com sua presença.

Só uma obrigação me é imposta quando estou por lá: faça chuva ou faça sol, todos os dias é preciso tomar um sorvete. Os romanos todos com quem conversei me sugeriram um “migliore gelato di Roma”. Não sou romano, mas também tenho o meu: fica ali atrás do Pantheon, na Giolitti – recomendo sobretudo a combinação de cioccolato, zabaione ed un po’ di panna.

Essa hospitalidade do lugar é conhecida. No seu L’antichità di Roma, Andrea Palladio já comentava que:

Fu consuetudine delli antichi Romani invitar i forastieri amichevolmente per le lor case, accioche sicuramente havessero a vedere celebrare le feste, & cosi andassero contemplando la Citta

Pude comprovar a afirmação do arquiteto como forasteiro convidado nos velhos palácios, com a multidão na Piazza San Pietro que me deixou de fora da Missa do Galo e certamente com a vida na capital da república italiana. Aliás, em termos de república a coisa não estava muito bem, mas não entremos em detalhes porque esta história já é velha: a Divina Commedia tem quase 700 anos…

Ahi serva Italia, di dolore ostello,
nave sanza nocchiere in gran tempesta,
non donna di provincie, ma bordello!

E por falar em Dante, a próxima parada seria visitar sua estatua na Piazza dei Signori em Verona. Mas, nel mezzo del cammin, recomendo uma parada em Padova. Não é preciso muito tempo na cidade e desta vez deixei a basílica de Santo Antonio de lado para aproveitar com calma uma das maiores obras de arte de todos os tempos e lugares: a Cappella degli Scrovegni. Os afrescos de Giotto colocaram a arte ocidental em outro patamar e hoje podemos admirá-los totalmente restaurados. Mas atenção, só entra com hora marcada e a organização de todo complexo faz esquecer que estamos na Itália.

Vistos os afrescos com a vida de Maria, se tudo correr bem dá tempo de chegar a Verona antes da Befana. Nesse ano, a festa teve até desfile de carros antigos e quase não consegui chegar a tempo na basílica di San Zeno, um dos melhores exemplos de arquitetura românica da Itália, além do belíssimo altar de Andrea Mantegna.

Se Roma é uma cidade onde tudo parece extrapolar as expectativas, Verona é um lugar que parece ter sido feito sob medida. Nunca tinha ido para lá, mas de alguma maneira me senti em casa logo ao sair da estação de trem. Aproveitei a cidade e a neve que caia à noite na Piazza delle Erbe com um ótimo Amarone della Vapolicella. Só confesso que não dei muita bola para a casa da Julieta e pelo fato de Shakespeare ter escolhido essa cidade para ambientar a tragédia do casal mais famoso da literatura. Afinal, interessam aqui os poetas italianos!

E foi de Eugenio Montale que me lembrei ao seguir viagem. Escrevendo para o Corriere della Sera em 1951, por ocasião da première da ópera The Rake’s Progress de Igor Stravinski, ele imaginava Veneza como “una città del silenzio ben organizzata contro ogni forma di organizzazione mondana”. Um sonho para todos que como eu vão para lá nos dias mais frios do inverno procurando escapar das enchentes de turista. Encontrei a cidade realmente vazia de gente, mas completamente encharcada de água. Foi uma pena não se perder pelas ruelas desertas, mas foi também uma boa ocasião para lembrar que estava ali como turista. Ou seja, não tinha a cidade ao meu dispor.

Na crônica do Corriere, Montale contava seu primeiro encontro com o poeta W. H. Auden. Dois dos maiores poetas do sec. XX encontraram-se num restaurante local – será que comeram spaghetti al nero di seppia? – e ao sair, o italiano escreveu sobre o colega inglês:

“Lo lascio pieno d’invidia. Mi mancherà sempre la gioia di vivere da straniero in Italia. E Dio sa se non ho provato a farlo; ma quando ci si è nati il giuoco non riesce!”

De cabeça cheia e estômago vazio fui para o último destino da viagem, um vilarejo nas montanhas turinenses. Sentado num restaurante em Champlas, com um ravioli di cervo a minha frente, compreendi um pouco mais do que era a Itália. Com toda a teatralidade, com todo gosto pelo histriônico, aquele ravioli me mostrou que ali existe a alma de um povo apegado a sua terra. Aquela montanha realmente tinha alguma coisa de mágico!

Como Claudio Magris, mais um escritor que arrumou as malas e partiu para seu L’infinito viaggiare. Nesse belo livro que li durante a jornada encontrei uma das mais precisas meditações sobre nós, viajantes por inteiro:

Utopia e disincanto. Molte cose cadono, quando si viaggia; certezze, valori, sentimenti, aspettative che si perdono per strada – la strada è una dura, ma anche buona maestra. Altre cose, altri valori e sentimenti si trovano, s’incontrano, si raccattano per via. Come viaggiare, pure scrivere significa smontare, riassestare, ricombinare; si viaggia nella realtà come in un teatro di prosa, spostando le quinte, aprendo nuovi passaggi, perdendosi in vicoli ciechi e bloccandosi davanti a false porte disegnate sul muro.

2 comentários em “De viagens e promessas não cumpridas

  1. Caramba, só pra nos deixar (os leitores da Dicta) curiosos! O que vem a ser essas “outras cositas mas”?
    Não nos deixe roer as unhas Guilherme.

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