Dicta 3 – Editorial

Depois do convite e do índice, agora chegou a vez do editorial – que vai logo abaixo. Mas antes, um pequeno desabafo. Desde que começamos a conceber a idéia de publicar a revista, uma das coisas que mais me animavam era poder escrever um editorial. Talvez essa quase mania tenha surgido da leitura dos editoriais da The New Criterion, desde sempre o nosso modelo declarado. Lá, eles conseguem dizer tudo o que precisa ser dito de forma simples e direta, e tudo isso muito, mas muito bem escrito. Se conseguimos chegar perto, muito se deve ao Henrique Elfes, nosso editor-chefe (ou seria cirurgião-chefe?). Enfim, espero que gostem…

 

Dicta & Contradicta

 

 

“Quando vires um homem de valor, procura equiparar-te a ele. Quando vires um homem sem valor, examina-te a ti mesmo”.
Confúcio, Os Analectos

É uma alegria chegar ao terceiro volume da Dicta – ou seja, não ser “apenas mais uma revistinha que encalhou no segundo número” -, e, se não nos engana o nosso enviesado faro, com textos cada vez melhores. Embora tenhamos consciência de que não é a nós que cabe decidir isso, e sim ao leitor. Agora, é superar o próximo desafio, que consiste em passarmos ao menos dos oito números (último triplo, embora não em número de páginas) que teve a revista Klaxon

Em todo o caso, três é um número redondo que marca o encerramento de uma etapa e sugere uma certa completude satisfatória. Não à toa goza de enorme prestígio popular – é universalmente usado na estrutura tripartite de piadas e contos, nas enumerações (“começo, meio e fim”, “juventude, maturidade e velhice”, etc.), na didática, e por aí vai -, além de freqüentar as diversas numerologias. Indica que, longe de esgotarmos o que tínhamos para dizer, ainda “há muita mais farinha nesse saco”; mas, ao mesmo tempo, que somos capazes de sustentar um esforço como este a longo prazo. Em suma, o terceiro número diz: Começamos bem, e agora temos solidez para continuar melhor.

Como já vai sendo costume, comecemos por agradecer, para já aos leitores, que continuam correspondendo firmemente; e de maneira especial ao presidente Fernando Henrique Cardoso, que abriu espaços excepcionalmente generosos na sua agenda e na sua alma para conversar com o nosso presidente, o Guilherme. De presidente para “presidente”, parecem ter-se entendido bem… Mas daqui a pouco comentaremos mais alguma coisa sobre essa entrevista.

Ah, e não nos esqueçamos de dar as boas-vindas a nossa “irmã” mais nova, a recém lançada serrote. É uma alegria ver que pouco a pouco atingimos o nosso ideal de estimular o debate de idéias no país… ainda que seja à custa de um certo grau de imitação.

 

* * *

 

Apresentemos rapidamente o terceiro número, destacando especialmente alguns artigos, e com certa dor por não podermos falar de todos, tanto pela limitação de espaço como para não deixar este editorial muito pesado.

A entrevista do presidente Fernando Henrique, contrariando a imagem de “político ladino” e “impossível de pegar” que muitas vezes dele se tem, é excepcional pela completa abertura com que expõe as suas idéias e até as convicções e hesitações pessoais. Muito além das suas opiniões sobre o episódico, reproduzidas tantas vezes em outros veículos, fala aqui de ideologias e de realismo, de progressismo e conservadorismo, da cultura e das ciência humanas no Brasil e das suas limitações e problemas, das tensões entre a persona pública e a verdadeira pessoa no homem político, dos seus modelos e do confronto com o mistério da existência.

Sem que o tivéssemos pretendido, o artigo de João Pereira Coutinho dialoga perfeitamente com essa entrevista, e o conjunto dos dois trabalhos quase atinge o ideal que nos tínhamos proposto: promover o debate de alto nível entre posições intelectuais diversas. “Quase”, porque um ideal que se preza é inatingível. No seu estilo de legibilidade quase gritante, João Pereira fala aqui não como cronista, mas como cientista político, e através do tema do conservadorismo e de Burke, avança até as raízes da grande oposição cultural da modernidade: a questão da “primeira” e da “segunda” naturezas do homem. Também lhe devemos gratidão, pois sabemos que está mergulhado numa infinidade de afazeres e compromissos, e não lhe foi nada fácil conseguir o tempo necessário para escrever esse texto.

O terceiro artigo principal é de Michael Pakaluk, doutor por Harvard e professor do Institute for the Psychological Sciences. Chamamos atenção para o doutorado porque a piada que corre nos EUA é: “- Como você sabe que alguém estudou em Harvard? – Porque em menos de dez segundos de conversa ele dá algum jeito de mencioná-lo…”. Quando lhe pedimos que escrevesse o texto que aqui vai, acrescentamos que daríamos o devido destaque ao título acadêmico; resposta: “I thought you were my friends”… Mas deixemos o folclore de lado: o especial interesse desse artigo está em que a análise da atual crise econômica se faz por um ângulo inusitado, que não é o econômico nem o político, mas o ético.

É preciso também fazer uma especial e agradecida referência ao artigo de Olavo de Carvalho, outro que teve de “tirar leite de pedra”, horas de onde não as havia, para atender ao nosso pedido de um artigo sobre Mário Ferreira dos Santos. Era uma dupla homenagem que precisávamos fazer havia já algum tempo: Olavo despertou intelectualmente toda uma geração de jovens brasileiros, e continua a ser hoje o único capaz de analisar com o devido conhecimento de causa a solitária figura de Mário Ferreira.

Aproveitemos para pagar outra dívida pendente desde o número anterior, que é a de agradecer a Roger Scruton pela gentil autorização em traduzir alguns dos seus artigos já publicados. Este pode assustar um pouco se lido superficialmente, porque parece recomendar certa hostilidade para com o Islã. Mas isso seria superficialidade, se não má vontade; o que realmente importa ver nesse artigo é que nunca se chega a verdadeiros entendimentos à base de rebaixar ou apunhalar pelas costas as próprias convicções, mas somente à base de tê-las e de deixá-las claras. O que é preciso é respeitar as idéias do outro e, sobretudo, a sua pessoa, e depois pedir-lhe esse mesmo respeito. Ora, um homem que, no afã de não sofrer incômodos ou violências de nenhum tipo, está disposto a trair aquilo que pensa, perde qualquer direito a ser respeitado e torna-se merecedor do desprezo com que acaba por ser tratado. Isso é o que está em jogo em O Islã e o Ocidente, e talvez mereça mais do que uma reflexão superficial.

Por fim, vale a pena indicar que, para a seção de Poema traduzido, o poeta e jornalista Nelson Ascher ofereceu-nos, não apenas uma poesia, mas uma gama de autores que tinha traduzido e que cobrem todo o panorama da moderna poesia de língua húngara, abrangendo o século XX inteiro. O normal seria que não publicássemos tudo pelo número de páginas que ocupa, mas o fato de a cultura húngara, imensamente rica, ser tão pouco conhecida entre nós, bem como a unidade do conjunto e a excepcional qualidade dos originais e da tradução, obrigou-nos a abrir uma exceção. Fica aqui esse brinde para o leitor.

 

* * *

 

O que nos traz a outra questão. Na entrevista com FHC, o presidente tangenciava diversas vezes o tema central de todo o trabalho intelectual, sem entrar nele mais a fundo (porque não era o caso), que é o tema da verdade e das suas múltiplas ramificações. Comenta a falta de maîtres à penser – mestres que ensinem a pensar -; alude à falta de debate cultural, intelectual e de qualquer tipo no país; conecta a tendência para a “vida como espetáculo” com a substituição da razão pela emoção; ou ainda menciona essa espécie de “não-pensamento” que domina a cena nacional. Não é preciso dizer que concordamos com ele e, mais ainda, que são fenômenos que estão à vista de todos e de qualquer um. O que gostaríamos de sublinhar aqui é que todas essas realidades parecem ter uma raiz comum: a perda do respeito (novamente o respeito…) pela verdade.

Numa entrevista em que lhe pediam que dissesse alguma coisa aos jornalistas, a Madre Teresa de Calcutá dava uma resposta ao mesmo tempo dura e profunda. Só isso: “Não mintam. Esforcem-se por dizer a verdade”. Parece uma bobagem evidente, que nem merecia dizer-se, mas vai muito além disso. Porque a mentira reflete, não apenas uma pequena desonestidade pessoal sem maiores conseqüências, mas uma inversão de valores maior: a subordinação da verdade conhecida na consciência à pura conveniência pessoal prática. Não me interessa a verdade, mas apenas o efeito que consigo através das minhas palavras.

Esse é – releiam o Górgias – o escorregão que transforma o filó-sofo, o amante da verdade e, portanto, alguém que está subordinado a ela, no sofista, o falso sábio. Esse escorregão exprime-se na substituição da filosofia pela retórica, a quem pouco importa o conteúdo, mas apenas a captação das mentes e, portanto, a manipulação delas; passa-se a olhar não para o conteúdo das palavras, mas apenas para as estruturas lógicas ou gramaticais de textos, línguas, discursos (e tudo vira “discurso”, “versão” ou “releitura”); avaliam-se as ciências, não pelo que elas acrescentam ao conhecimento humano, mas apenas pelo que trazem de prático, de resultados (com todas as múltiplas conseqüências desse processo, até chegar ao publish or perish, ou seja, à avaliação de um currículo acadêmico pelo seu peso em papel impresso…). E la nave va…

A conseqüência social é, evidentemente, o total desprezo pela verdade e, naturalmente, pelos seus conexos: não à toa os antigos diziam que verdade, bondade e beleza eram transcendentais do ser. Quando a verdade desaparece do horizonte social, desaparecem também a bondade e a beleza. Se não existe verdade, também não é possível ser bom, ter uma vida bela, realizar a perfeição.

A figura do “sábio” simplesmente deixa de existir na sociedade (haverá alguém que ainda queira ser filósofo ou sábio, assim sem mais?), quando para todas as civilizações era ela a ultima ratio, a âncora que segurava os extravios práticos, o ponto de referência fixo que permitia retornar ao caminho certo (Confúcio, Buda, sete sábios da Grécia, Tomás de Aquino…). O bem reduz-se kantianamente a “ser bonzinho”, seguir as “regras sociais” ou o enésimo “código de ética”, ou seja, a não “mijar fora do penico” (com perdão da expressão, mas era preciso usá-la). Beleza? Esquece. Só a epidérmica, e olhe lá que já estamos conseguindo mudar também isso.

Ao mesmo tempo, se não podemos confiar em políticos (os que nos conduzem), intelectuais e jornalistas (que deveriam iluminar-nos, isto é, guiar-nos na busca da verdade, ser os mestres que nos ensinassem a pensar), nem nos outros em geral, confiar em quem? Em nós mesmos? Mas se os nossos sentidos mentem, os nossos raciocínios mentem, os nossos desejos mentem, as nossas emoções mentem… Então quem? No dólar? No padrão-ouro? Parece que nem essas opções continuam abertas…

Alguém dizia: “Se não houver algumas coisas pelas quais valha a pena morrer, a vida não merece ser vivida”. E a verdade é justamente a mais central dessas poucas coisas, o fundamento em que se apóia uma vida que merece ser vivida.

Pedimos perdão pela solenidade e eventual dureza destas palavras, e pelo fato de estarmos aqui relembrando o ABC, como justificadamente parecerá a alguns leitores. Mas era um risco que valia a pena correr, porque, se a própria razão de ser e o ponto de partida de todo o trabalho intelectual não forem o respeito, o amor e a paixão pela verdade, gatamos tudo (como dizem os nossos amigos lusos) e acabamos cometendo suicídio. Intelectual primeiro, depois prático.

 

* * *

 

Faltam ainda os agradecimentos a todos os colaboradores que não puderam ser mencionados aqui pelas razões já expostas. E, é claro, uma gratidão especial vai para o artista plástico Florian Raiss, que nos cedeu para publicação os desenhos deste número, e à CETENCO, que assumiu o patrocínio neste momento de aperto universal dos cintos.

Com o que, como já é praxe, abraços e boa leitura!

 

 

4 comentários em “Dicta 3 – Editorial

  1. Klaxon, Dicta e Contradicta e agora Moto-Serra. Isto me leva a pensar em por que toda novida cultural do país vem de São Paulo. O modernismo, as ciências humanas da USP que servem de modelo para as universidades de todo o país, o Instituto de Filosofia de Miguel Reale, a empreitada de Mário Ferreira dos Santos. São Paulo é a locomotiva cultural da nação.

  2. Senhores

    Sou ilustrador e designer há 20 anos, e estou oferecendo meus serviços a esta conceituada empresa. Tenho grande experiência em ilustrações realistas , técnicas e infantis entre outras. Também na criação e execução de projetos gráficos destinados a catálogos, livros e material promocional.

    Com quem posso conversar para mostrar meus trabalhos?

    Obrigado,
    Eduardo Borges
    borges.eduardo@superig.com.br
    (11)22012003
    (11)95504849
    eduardoilustra.blogspot.com

  3. Me desculpem, mas que comentário ridículo do Vinícius de Oliveira. Pense na produção musical brasileira: o chorinho e a bossa-nova são do Rio, o rock dos anos 80 é de Brasília, o “samba nasceu lá na Bahia e se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração”. Nem o sertanejo, tão prezado pelos caipiras de São Paulo, é de lá. E, caso a USP tenha servido de exemplo para algo, foi somente no sentido de piorar (já estudei na USP). Por favor, get real!!!

  4. não vou dizer que o comentário do vinícius foi *ridículo*, mas, sei lá, é um bocado despropositado. quanto às ciências aí várias, realmente, são paulo tem o destaque. mas o bruno tolentino mesmo tem um texto — ou discurso? não lembro — em que ele menciona a *estranhice* de são paulo não ter produzido nenhum grande poeta. e, sério, ainda acho que as coisas funcionam um tanto assim. ao longo dos sete anos que acompanho um tanto aí que se produz nas internets, pelo menos no que converne prosa e poesia, não lembro de nenhum *talento de real* saindo de são paulo. tirando o ass, boto fé.

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