Dicta&Contradicta 09 – Editorial

Caros leitores, a espera foi (e é) longa! Diversos problemas operacionais atrasaram nossa nona edição. Agora, contudo, eles são coisa do passado; a revista se encontra no prelo e deve chegar às lojas em breve. Enquanto o dia não chega, publicamos aqui no site, como de costume, o editorial desta que é a nona edição da Dicta&Contradicta. Ao longo da semana, novos posts sobre o nono número aparecerão por aqui.

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Das Vergangene wird gewußt, das Gegenwärtige wird erkannt, das Zukünftige wird geahndet.
Das Gewußte wird erzählt, das Erkannte wird dargestellt, das Geahndete wird geweissagt.
(Schelling, Die Weltalter)

[“O passado é conhecido, o presente é reconhecido, o futuro é vislumbrado. / O conhecido é narrado, o reconhecido é representado, o vislumbrado é previsto” (Schelling, As Idades do Mundo).]

Diz o provérbio que “a história é mestra da vida”. Não deixa de ser verdade por ser surrado, nem por serem poucos a pô-lo em prática; tão poucos, que já se pôde definir o homem como “o único animal que reincide indefinidamente nos mesmos erros”. Os cínicos de sempre murmurarão que a definição poderia se aplicar à Dicta, que chega agora a seu nono número. E chega com um tema mestre que, curiosamente, emergiu de uma confluência não premeditada de causas, mas que acabou moldando as feições do volume que o leitor tem em mãos: justamente a história, o historiador e seus parentes próximos: sociólogos, antropólogos; enfim, todos aqueles que nos ajudam a conhecer e entender-nos a nós mesmos e à nossa sociedade.

Um de nossos destaques é um ensaio pioneiro sobre ninguém menos que Sergio Buarque de Holanda. A obra de Sergio Buarque é fundamental para a compreensão do Brasil, mas o Prof. João Cezar de Castro Rocha resolveu apimentar um pouco as coisas e tomar o próprio Sergio Buarque como seu objeto. Numa minuciosa comparação das diferentes edições de Raízes do Brasil, ele revela um pouco das mudanças que foram, pouco a pouco, eliminando as referências que Sergio Buarque fazia àquele que, com o tempo, tornou-se seu grande rival: Gilberto Freyre.

O Perfil, outro destaque, é da autoria de Anthony Daniels. A pedido da Dicta, Daniels teve uma longa conversa com o historiador Paul Johnson, e a usou para escrever um ensaio que busca não só dar uma ideia da obra de Johnson, mas da pessoa por trás dela. O resultado é um texto matizado, com plena liberdade tanto para a admiração como para a crítica. No que promete ser o texto mais polêmico desta edição, o ensaísta inglês David Pryce-Jones também escolheu um historiador como seu objeto de análise, mas não um que ele admira, e sim um que despreza: Eric Hobsbawn. Sua acusação contra Hobsbawn, em que pese seus títulos e amplo reconhecimento público (inclusive no Brasil), é que sua afiliação ideológica o faz não apenas defender e justificar crimes monstruosos, como afeta sua obra histórica, que omite, em momentos cruciais, o lado e os feitos menos abonadores do socialismo no século XX. Como parece ser regra entre os ideólogos de diversos matizes, Hobsbawn não hesita, argumenta Pryce-Jones, em colocar suas teses, ou sua matriz interpretativa, acima dos fatos.

O que não quer dizer que a História possa prescindir dessa matriz interpretativa, ou seja, das lentes que o historiador traz consigo. Juntar fatos, dados e documentos é apenas um passo inicial de seu trabalho; há que se articulá-los em uma narrativa coerente, dando-lhes uma interpretação. E aí é que se vê como há muito em comum entre historiador e romancista. A esse propósito, trazemos uma pequena narrativa histórica, inédita no Brasil, de Stefan Zweig sobre os último dias de Nietzsche. Seria uma narrativa realista? Como descrição detalhada dos fatos, é dúbio; mas como representação artística do estado espiritual do filósofo alemão, bem, daí caberá a cada leitor comparar com a sua interpretação da vida e do mundo e julgar por si mesmo…

Nietzsche, na verdade, acabou constituindo uma microsseção dentro deste número; além do texto de Zweig, compõem a edição dois ensaios filosóficos sobre o autor: um de Luiz Felipe Pondé, e o outro de Oswaldo Giacoia, revelando outra possibilidade de se fazer história: olhar para o passado não dos fatos, mas das ideias, apresentando diferentes versões de um mesmo pensamento e mostrar como o que Nietszche representa pode estar distante do que ele realmente foi. E não é só o pensamento individual que costuma ser distorcido com o passar do tempo – diz-se que cada geração reescreve a história –, mas igualmente o das correntes de pensamento e espiritualidade. O sacerdote budista André Muniz, em nossa seção de Religião, defende que um dos ensinamentos mais básicos do budismo – o renascimento – foi completamente invertido nos tempos modernos.

Não pense o leitor, contudo, que falte a tradicional variedade de temas. Entre os artigos principais, trazemos um poema inédito de Érico Nogueira com uma apresentação do professor João Ângelo Neto, que ajuda o leitor a desvendar as diversas camadas de significado presentes e traz, ao mesmo tempo, uma tese muito interessante sobre a relação da literatura com os clássicos.

Igualmente digno de destaque é o monumental ensaio dos filósofos Raymond Tallis e Julian Spalding, que indaga sobre a relação entre a arte e a liberdade humana, tanto do ponto de vista da produção quanto da fruição.

Além desses, é forçoso mencionar o conto inédito de Jerônimo Teixeira, que lança um olhar sobre o homem do ponto de vista do futuro. E, last but not least, o nosso Martim Vasques escreve um brilhante perfil, warts and all (“sem poupar nem as verrugas”…), do escritor de romances policiais James Ellroy, lançando ao mesmo tempo, esperamos, uma pá de cal sobre o velho preconceito de que literatura policial é um gênero menor, de segunda categoria, que não pode atingir os cumes nevados da “grande arte”.

O leitor perceberá também as mudanças na diagramação e na parte gráfica, que estão agora a cargo do olhar apurado de Felipe Cohen em colaboração com a equipe da Janela Estúdio.

Passemos agora a algumas breves reflexões sugeridas pela temática principal desta revista.

O que a memória é para o indivíduo, representa-o a história para as sociedades. Os poucos casos de amnésia completa que conhecemos mostram-nos pessoas “despersonalizadas”; não sabem quem são, não têm biografia, e por isso não têm futuro, nem na forma de projetos, nem na de um fim ou sentido para sua vida. Quem quiser ler ou reler o capítulo “O marinheiro perdido”, do livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, de Oliver Sacks, poderá ver uma descrição muito viva da importância que a memória tem como núcleo central da pessoa. Ora, a memória se organiza como narrativas parciais que se juntam numa grande narrativa autobiográfica. Não temos na cabeça teses ou modelos da nossa vida, ou verbetes de dicionário, mas imagens e conceitos “indexados” – dizem-nos os neurocientistas – pela emoção que provocaram, a qual por sua vez os “amarra” em sequências temporais – narrativas. Já dissemos que há muito em comum entre o historiador e o romancista, e ao menos no plano pessoal isso é a mais rigorosa verdade: todo o mundo é um romancista da própria vida.

Idealmente, essa narrativa interior deveria corresponder ponto por ponto aos fatos do mundo exterior. No entanto, no sentido mais estrito do termo, isso é impossível, porque necessariamente – é da própria estrutura da memória que seja assim – os tais “fatos” são tingidos, valorizados, etiquetados e conectados por emoções. O que não significa que essa narrativa seja falsa, apenas que temos de tomá-la cum grano salis, com consciência da sua limitação e relatividade, e procurando evitar com todo o cuidado a “vaidade congênita, especialmente suscetível em tudo o que diz respeito à nossa capacidade intelectual” de que fala Schopenhauer. Saber que, em quase tudo o que diz respeito a nosso conhecimento de nós mesmos e do homem em geral, poucas são as certezas e a verdade permanece quase sempre uma meta, um objetivo, um ideal.

O que nos leva, por extensão, ao tema da história. Não é à toa que Platão afirma, na República, que toda sociedade se baseia em um “mito”, uma narrativa mais ou menos romanceada, e que lhe confere passado, personalidade e, em consequência, futuro. Nossa civilização ocidental já viveu e já descartou e reabilitou uma série desses mitos, que não deixam de existir mesmo em tempos pretensamente científicos como o nosso. Já o Brasil, embora submetido em certa medida às tendências gerais da sociedade ocidental, nunca teve propriamente um mito fundacional. A condição de colônia privou-o de uma história própria, e as primeiras tentativas de uma narrativa – primeiro a “história heroica”, baseada em batalhas e grandes homens, erigida tanto pelo romantismo literário quanto pelo positivismo e plasmada ainda nos nossos símbolos e hinos de estilo caracteristicamente empolado – estavam em gritante contradição com os fatos. Depois, mais sérias, as tentativas de Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre foram abortadas pelos esquemas marxistas do estruturalismo que tomou conta da nossa academia e continua a predominar no ensino fundamental e médio.

Tudo isso impõe uma série de responsabilidades concretas ao historiador nacional, das quais se pode destacar pelo menos três. Em primeiro lugar, a de lembrar-se de que a história é, antes de mais nada, uma narrativa. Desde as tentativas do execrado (pelas esquerdas) Rocha Pombo (1857-1933) ou de Gilberto Freyre (1900-1987), não apareceu mais uma única narrativa decente da nossa história, completa e acessível ao público leitor, e nem ao menos aparece no horizonte alguém que se disponha a corrigir e completar essas obras (muitas das quais, por sinal, só se encontram em raríssimos sebos a preço de ouro). Ou seja, em breve completaremos cem anos sem uma história geral. O interesse que tal obra teria, se bem escrita, deduz-se sem dificuldade do sucesso que tiveram e têm livros como Mauá, Chatô, 1822, Guia politicamente incorreto da história do Brasil etc. O brasileiro está sedento por conhecer sua própria história, mas carece de fontes para descobri-la.

Segundo, a de ser tão verdadeiro quanto possível – e na história a dificuldade é muito maior, porque todo o conhecimento é mediado e não poucas vezes “re-mediado” –, sem fabricar pseudo-heróis (isto é, ocultando seus defeitos) como os bandeirantes, o Zumbi ou seja quem for que esteja nas graças da ideologia dominante, mas também sem temer encontrar heróis autênticos como Aleijadinho, José Bonifácio ou Joaquim Nabuco (aqui, é claro, estamos nós mesmos fazendo uma interpretação histórica).

E, por fim, a de saber usar esquemas e modelos, sim, mas subordinando-os sempre à verificação, para a qual não faltam métodos: crítica textual, arqueologia, numismática, paleografia etc. etc. etc. Dentre eles, contudo, gostaríamos de destacar um em particular; um instrumento fabuloso de que fala Henri-Irenée Marrou no seu clássico De la connaissance historique, a saber: a empatia, a fineza de espírito que permite ao historiador colocar-se no lugar do personagem histórico para interpretar e, assim, melhor compreender, suas ações; desvelar as possíveis narrativas que dão sentido aos feitos humanos. Valeria muito a pena que os historiadores brasileiros parassem de fingir que trabalham com uma ciência exata, dedicando todo seu tempo a papers sobre questiúnculas de cerâmica funerária tupi que ninguém lê exceto três dos seus pares – tarefa também útil, é verdade, mas que não deveria limitar seus horizontes – e se lembrassem de que a história é uma ciência humana, escrita por homens sobre homens para homens. Podemos – não; devemos – nos colocar, com um pouco de erudição e sensibilidade, nas botas de um comerciante português de 1600, de um índio que lutou com negros e portugueses contra os holandeses, ou de um carioca da belle époque. E aí está, novamente, o ponto de encontro do historiador com a literatura, cujo contato com a realidade do homem em nada deve, assim pensamos, às ciências humanas.

Com a humilde esperança de que algum historiador ao menos leia este editorial e daí surja algum resultado concreto, uma leitura ambiciosa e corajosa de nosso país, despedimo-nos do leitor desejando-lhe, como sempre, uma boa leitura. Até a próxima.

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