Dicta&Contradicta 4 – Ricercar

Hoje seria o dia em que normalmente publicaríamos o índice do próximo número da Dicta. Mas faremos diferente. Tudo porque um dos editores resolveu improvisar e saiu-se com um texto no qual consegue mencionar todos os textos da revista. O resultado é divertido e foi em partes utilizado em nosso editorial, que também será publicado aqui antes do lançamento. Divirtam-se!

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O que o leitor tem nas mãos é uma revista de peso. Se intelectual ou não é coisa que lhe cabe decidir. Nada de metáforas: é peso físico mesmo. A quarta edição da Dicta, com suas 282 páginas, sai do prelo maior que a terceira, que saiu maior que a segunda, que saiu maior que a primeira. O que nos permite prever, com razoável grau de certeza, que lá pela décima publicação será entregue às livrarias em três tomos de 457 páginas cada, in-fólio e capa dura. Esperemos que não. Mas não é culpa nossa; a criança está crescendo sozinha e tem sido difícil conter o entusiasmo de nossos colaboradores por dar algum peso – agora sim – intelectual ao debate cultural brasileiro. Sem mais, vamos a eles.

Por que um homem espanca sua mulher, abusa de uma criança, massacra uma penca de outros homens num ódio fratricida? Nos dois ou três últimos séculos já nos informaram que o faz por muitos motivos, a escolher: por sua constituição psicofísica; pela luta de classes ou por sua condição social; por seus genes, seus neurônios, seus instintos; por seu id, ego ou super-ego; por sua religião e etcéteras afora. Todos menos um: por que ele quer. Essa hipótese tão surpreendente é a que nos apresenta Theodore Dalrymple em nosso ensaio de abertura. E como ele sabe? Por calhamaços de estatísticas, índices, gráficos pizza e toda a demais parafernália produzida pela psicologia comportamental e escolas sociológicas? Talvez também por isso. Mas aqui é sobretudo pela sua experiência – essa mesma, leitor, que você tem todos os dias. Dalrymple é um dos pseudônimos do médico e psiquiatra Anthony Daniels, que, após viajar o mundo inteiro como médico e correspondente de guerra, chega pela primeira vez ao público brasileiro para dizer: “meninos, eu vi!”. Viu, como seu quase compatriota Joseph Conrad, o coração das trevas na África (sem deixar de atravessar antes as trevas latino-americanas), para retornar depois à sua Inglaterra e ver um horizonte não menos negro. E como ele embasa sua tese? Com o arsenal de Marx, Freud, Foucault, Derrida (ou desce, como dizia um amigo nosso)? Nada disso. É só pelo bom senso – esse mesmo, leitor, que você usa todos os dias para avaliar suas experiências e encontrar o seu sentido. Dalrymple – o qual agradecemos vivamente por não se aborrecer com nossa insistência quase quase violenta por ter um texto seu – começa e termina dizendo para quem tiver ouvidos para ouvir que “a única causa inquestionável da violência, tanto política como criminosa, é a decisão pessoal de a cometer” – ponto.

Falando em violência, o leitor mergulhará no conto inédito de Martim Vasques da Cunha, A invenção perfeita, em que a angústia da mente humana é descrita com uma brutalidade de embrulhar o estômago e cortar o coração. Aliviar essa mesma angústia foi a missão que assumiu para sua vida o neurologista mundialmente conhecido Oliver Sacks, que nos narra aqui a história da vida e morte dos manicômios nos Estados Unidos. Com uma determinação que faria arrepiar os cabelos do alienista Simão Bacamarte, sociólogos, ONGs e filantropos de toda sorte decidiram nas últimas décadas que todos os loucos tinham a todo custo de ser postos para fora do hospício. E para que? Para jogá-los, não raro, nas calçadas. Veja aí, leitor, a longa experiência e o bom senso de Sacks adicionando – no artigo generosamente cedido aos seus muitos admiradores nacionais – alguma sanidade ao movimento anti-manicomial.

E das trevas da mente passemos ao seu chiaroscuro. O pesquisador sênior da IBM Gregory Chaitin nos prova por A mais B que, se a razão humana é limitada, é ao mesmo tempo indispensável e capaz de contornar, em certa medida, essa sua invalidez de nascença.

E da luz da mente à “energia escura”, que, segundo os cálculos do diretor científico do telescópio Hubble, dr. Mario Livio, parece acelerar cada vez mais a expansão do Universo, o que nos permite prever, também com alguma certeza, que ele literalmente explodirá em infinitos pedaços. Mas calma, leitor, ainda lhes restam alguns anos para terminar de ler sua Dicta – mais ou menos uns 100 bilhões deles. E se esse é o destino do Universo, qual será o dos nossos cérebros? Buscando a resposta, nosso Presidente (do IFE) Guilherme Malzoni decidiu se equilibrar na corda bamba entre a ciência e a filosofia para nos mostrar a história e o status quo desse ramo cada vez mais vasto e fascinante do conhecimento humano: a neurociência – ao mesmo tempo em que desmascara o mundaréu de neuro-asneiras que se empilharam à sua sombra.

Mas com tanto peso, ciência, demência e violência, o leitor já deve estar achando que viemos para espremer seus neurônios. Calma, não perca o bom humor! É o que nos sugere Marcelo Consentino, em uníssono com Bergson, Sócrates e o nosso alienista Machado de Assis: que mesmo em tempos de descontrolada cólera como os nossos, sempre vale a pena rir. O que, naturalmente, será sempre mais fácil com a ajuda de um bom humorista, como Evelyn Waugh, que com a dosagem milimétrica do wit britânico satiriza as carreiras profissionais na boa tradução de Julio Lemos. Esse último, aliás, conseguimos arrancar da frente do computador e metê-lo na escrivaninha com papel e caneta para que anotasse em nossas páginas as impagáveis boutades – e não pagamos mesmo – de seu blog, Feliz Nova Dieta. Divirta-se, na feliz nova Dicta, com a agilidade verbal com a qual lança seus tomates pelo mundo da cultura afora, enquanto Ruy Goiaba, nosso humorista de plantão, faz goiabada e marmelada com os clichês da crítica literária.

E falando em blogs, marmelada e tomates, é notório que em revistas pesadas como a nossa esses últimos costumam sobrar para a cultura pop. Mas não aqui. Luiz Felipe Amaral desce aos subterrâneos dos grossos volumes do casmurrão Thomas Pynchon para iluminar a sua miscelânea quase opressiva de referências pop e eruditas. E que haverá de mais pop que os Beatles? Em o Leilão do Sargento Pimenta o leitor acompanhará mágico e misterioso tour dos quatro proletários que saíram dos subterrâneos de Liverpool para subir aos céus do show bizz e da boa música movidos a muito LSD e atraídos por Lúcia e Seus Diamantes, até descerem para seguir cada um por sua conta em meio à multidão – ah, toda essa gente tão solitária… Solitária como os personagens dos filmes multi-plot, aqueles em que diversos enredos se cruzam e entrecruzam batendo uma cabeça atrás da outra. Haverá uma unidade por trás de tanta multiplicidade? Veja lá o que Joel Pinheiro diz.

E nada mais popular nos cinemas e palcos brasileiros do que Nelson Rodrigues (que, ironicamente, conhecia muito bem a burrice de todo tipo de unanimidade). E é popular porque, “esse sim!”, dizem, “teve peito de botar abaixo todo o moralismo retrógrado”. Quem ouve “Nelson Rodrigues” ouve “a vida como ela é”; “mocinhas bonitinhas mas ordinárias”; “maridos canalhas”; “mulheres adúlteras”; “sexo, sexo e mais sexo”, não é mesmo? Então ouça o jornalista carioca nos contar a cultura hedonista como ela é, soletrando com todas as letras de sua prosa insuperável que toda essa esparrela de liberdade sexual não passa de prisão narcisista; que sex pour le sex é tudo menos amor e nada mais que egoísmo – hipocrisia nua e vaidade crua (coisa com a qual, diga-se de passagem, também concorda Dalrymple, que não poupa seu bom senso discutindo o tema).

Populares também são os romances policiais, aonde vamos atrás de lazer, mistério e emoção. Mas se for um de Raymond Chandler, encontraremos também muita poesia. É o que nos mostra Rodrigo Duarte, conduzindo-nos pelas vielas noir dos romances de Chandler com um estilo impecável.

E falando em poesia e vielas, Chico Buarque, perdido pelas vielas da vida foi dar em Budapest (como o leitor poderá conferir na resenha que abre nossa sessão de livros), enquanto Tomás Antônio Gonzaga foi parar em Moscou. Isso mesmo: nosso poeta setecentista das pastorais mineiras cantado nas estepes eslavas, e pela voz de Púshkin – ninguém menos! –, o poeta-mor russo. Surpreso, leitor? Não estaria se tivesse lido, na primeira Dicta (ou em nosso site), o texto póstumo do poeta-mor brasileiro Bruno Tolentino, que, para a surpresa geral da nação, já afirmava que nossa Marília de Dirceu era moça bem conhecida e querida por aquelas plagas.

E poesia é o que não falta aqui – como em tantos outros lugares. Há as inéditas de Igor Barbosa, e o caudal de poetas francófilos apresentados por Ivo Barroso. Há Carlos Felipe Moisés, libertando versos para darem onde bem entenderem. Há ainda Pedro Sette Câmara traçando os contornos da poesia bíblica através das belas traduções em vernáculo. Cristianismo e judaísmo de um lado, paganismo do outro: há também Goethe e Keats – poetas-mor (mais dois) da Alemanha e Inglaterra – disputando sobre temas da cultura greco-romana as formas de expressão poética. Entre mortos e feridos ninguém perde e todos ganham as suas estrofes imortais.

Já que chegamos aos mortos, vale lembrar que sempre assumimos como uma questão de princípio o dictum de Chesterton de que a tradição é a democracia dos mortos. Democráticos como somos, trouxemos dois para nos dar uma aula magna de estilo e composição: o vienense Hugo von Hofmannsthal, com seu barroquismo fin de siècle algo onírico, e o poeta (naturalmente, mor) italiano Leopardi, que, munido de sua prosa de filólogo latinista vai atrás de Horácio, poeta – será preciso dizer… vá, digamos – poeta-mor romano. Sabe um pouco a velharia, mas velharia da boa, daquelas que nem os dentes do tempo conseguem roer – e, já que estamos pops, é bem aquela coisa da panela velha… Falamos só da forma, pois deixamos ao leitor desvendar seu conteúdo nas lindas traduções de Érico Nogueira, conduzido pelas competentíssimas introduções do mesmo.

Mas nem só de mortos vive a Dicta, e, após duas longas edições, o filósofo Luiz Felipe Pondé, vivinho como Deus o quer, retorna para apresentar a formação de sua vida filosófica na escola de Pascal, Burke, Russel Kirk e demais “conservadores”. Vida filosófica – e como! – é também a do velhinho Alasdair MacIntyre, que partiu, segundo Marcelo Musa Cavallari, navegando em busca da virtude e, no naufrágio moral em que nos meteu a barafunda relativista, pediu arrego e bóia aos antigos gritando: “quero minha ética de volta!”. Queremos todos, caro Marcelo, assim como Renato Moraes quer a sua – a nossa – metafísica de volta, e foi buscá-la nas mãos de Étienne Gilson, em sua obra A unidade da experiência filosófica (a ser com alguma esperança – e uma dose de esforço – publicada no Brasil). E alguém aí quer as belas artes de volta? Affonso Romano de Sant’Anna quer, e faz aqui arqueologia cultural atrás do métier perdido da arte.

Por último, mas não menos importante – bem ao contrário –, agradecimentos mil a Donald Kagan por escavar nas ruínas gregas o pensamento de Tucídides e descobrir que ele está mais vivo do que nunca, e que, mais de dois milênios depois, seu livro clássico, A História da Guerra do Peloponeso, mesmo velho ainda serve para fazer  boa política.

6 comentários em “Dicta&Contradicta 4 – Ricercar

  1. Bem, a alguém sempre cabe iniciar…
    Sou leitora recente da revista e gostei imensamente de conhecer a publicação.
    A edição verde, sintetizada simpaticamente por um dos editores, certamente dinamizará o sucesso que as três edições anteriores (cores primárias) já acumulam. Cumprimentos especiais a Marcelo Consentino e Leandro Oliveira, cujos esforços para a obtenção da qualidade dos textos e autores acompanhei mais de perto.
    Não sei se já incorporaram nesta, mas reitero a sugestão de resumos em inglês e espanhol dos textos.
    No mais, que venha o retorno que esperam!

  2. Como fã da revista e como aquele que outrora mais vendia Dictas no Mkt, desejo destas longínquas plagas latinas todo o sucesso do mundo a esta edição.

    Obrigado por vocês existirem. Fate i bravi!

    Zé.

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  4. Encomendo já a revista cultural mor brasileira. Com textos do blogueiro-mor do Brasil, do dramaturgo-mor, do analista de poemas-mor. do editor-mor, etc. mor.

  5. A revista.Momento esperado.Será minha primeira.
    As letras só encontram seu verdadeiro sentido impressas;páginas,tinta,cheiro,tato,espaço.

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