Read not the Times. Read the eternities.
(Henry David Thoreau)
Não é preciso ser professor para ensinar. O diálogo, e mesmo o debate, franco, honesto e profundo, é um meio de aprendizado. E portanto todo mundo que dialoga, que coloca suas ideias de maneira aberta e apaixonada, além de aprender, ensina. É nesse sentido que buscamos ensinar. E quem ensina obviamente quer ensinar a verdade. Pois se o objetivo de um interlocutor é convencer os outros do que ele considera falso, ele não ensina, mas engana. E se não há distinção entre verdadeiro e falso, mas apenas pontos de vista igualmente válidos, para quê ensinar? Cada um que fique feliz e contente com sua opinião. Se alguém discute, argumenta ou dialoga, e o faz honestamente, esse mesmo ato já manifesta sua crença em algo como objetivamente verdadeiro, e na verdade como algo bom e digno de ser disseminado.
Só que a verdade tem níveis, e é preciso fazer escolhas. Uma coisa são os eventos do dia a dia, a variação do dólar, o “mundo real”, o efêmero; enfim, tudo o que se lê nos jornais; aquelas informações essenciais para se viver e transitar neste mundo. Contudo, se em nenhum momento levantarmos a cabeça para ver além delas, teremos vivido a vida “não examinada” da pesada sentença de Sócrates.
Indo mais fundo, podemos tentar organizar esses fatos cotidianos, selecionando os mais importantes, e tentar desvendar os processos históricos por detrás deles: as ideias e os valores em jogo nos grandes movimentos das sociedades. O que não é fácil, como nos mostra o filósofo Olivier Boulnois. Numa conferência inédita (“O que há de novo na Idade Média?”), ele argumenta, com boas evidências, que um dos lugares-comuns mais repetidos sobre nossa história, o da ruptura entre Idade Média e Renascimento, é na verdade uma simplificação espúria. Será que alguma tese histórica, que não seja trivial, se sustentaria no confronto com os fatos minuciosamente examinados?
Para além da dificílima verdade histórica, que busca captar o efeito (ou a falta dele) das ideias e dos valores na existência humana, está a discussão sobre quais ideias e quais valores merecem nossa adesão. E aí chegamos propriamente nas big questions. O que é verdadeiro? O que é bom? O que é belo? A forma mais convencional de se tratar essas questões, forma da qual nós mesmo usamos e abusamos, é com longos tratados argumentativos. Podemos percorrer a história procurando exemplos claros de certos valores, ou avaliando a consequência das ideias. E daí temos o festival de “ideias que levaram ao nazismo” (alguém ainda tem de fazer uma lista de todas elas), que o editor-chefe invariavelmente corta fora sem dó. A realidade oferece muito poucos testes de ideias, e olhando apenas para ela não dá para tirar nenhuma conclusão acerca do sentido do mundo ou da existência. Quem o faz é porque traz, de outras fontes, estruturas narrativas nas quais os fatos serão encaixados, mas as quais eles nunca poderão refutar.
Felizmente, há um outro caminho para as grandes questões, sem o inconveniente da argumentação ou do teste: a arte. O universo criado pela arte é proporcional a nossas capacidades; afinal de contas, ele nasce delas. E se no mundo real tateamos uma imensa escuridão munidos do palito de fósforo de nossa razão, na obra de arte temos uma salinha bem iluminada esperando nossa visita.
A arte não se importa primariamente com a realidade dos fatos. Claro, uma história pode ser “baseada em fatos reais”, mas não é isso que fará dela uma boa história. A verdade que importa para ela é a do nível mais profundo: a dos valores e das posições existenciais mais básicas. E para se expressar bem nesse plano, as histórias e imagens fictícias, cujos elementos são todos pensados para transmitir uma mesma mensagem, são mais eficazes do que os eventos reais, cujos elementos heterogêneos não apontam para nenhuma direção facilmente identificável e nem denunciam uma origem comum. É sobre essa relação entre arte e realidade que versa o artigo de Nicolau Cavalcanti em nossa seção de filosofia.
Alguém se lembra do editorial passado, seis meses atrás? Prometíamos que, neste número, falaríamos algo sobre como pretendemos ensinar. É este, se assim podemos falar, o tema desta edição: como a ficção, a imagem, o símbolo, enfim, o falso, são, muitas vezes, melhores educadores do que o fato, o literal, o verdadeiro. Pois a arte não parte de premissas verdadeiras nem chega por raciocínio válido a uma conclusão também verdadeira. Sua lógica é outra: ela não argumenta; ela mostra. Ao invés do silogismo, ela emprega o símbolo. A realidade está aí independentemente de nós. Não é o ato humano de interpretação que cria o passado histórico. Muito pelo contrário: toda interpretação, para ser aceitável, tem de se pautar pelos fatos e pelos dados que a observação imparcial descobre. “Ciência ideológica” não é ciência. Ao mesmo tempo, a realidade costuma ser complexa o bastante para que muitas diferentes interpretações, contraditórias entre si, sejam possíveis para um mesmo fato ou período.
Existem símbolos no mundo real? A realidade está aqui para que a leiamos como um livro? Pergunta bastante incerta; o conhecimento da humanidade já foi muito mal-direcionado por causa dessa crença nos fatos e nos seres como símbolos de realidades espirituais. Por outro lado, também não se pode descartar essa possibilidade, ainda mais em face da nossa tendência espontânea de procurar significados. Uma coisa, porém, é certa: a arte tem símbolos. Eles foram colocados lá conscientemente pelo autor. Este é, por sinal, o tema do artigo mais longo da história de nossa humilde revista, escrito por Henrique Elfes. Sua proposta original era analisar a obra de um certo escritor; mas para fazê-lo resolveu esboçar um pequenino preâmbulo sobre a simbologia literária, que cresceu e cresceu até se tornar o tema e chutar o tal do escritor para escanteio – ou para uma próxima edição. E seu artigo deu mais um salto inesperado ao tratar da realidade última para a qual os símbolos apontam: a do espírito.
O que veio bem a calhar já que neste nosso oitavo número inauguramos a seção de teologia. O quê?! Teologia? Seria uma revista cultural o lugar apropriado para aulas de catequese? Permitam-nos explicar a nova adição. Parece-nos que há dois motivos para a existência de uma seção de teologia. Em primeiro lugar, as grandes questões da existência humana acabam invariavelmente tocando o problema da transcendência, da ordem e do sentido do mundo; a filosofia já trata disso, mas sempre, se for boa filosofia, usando a razão para chegar a diferentes respostas ou perguntas. A teologia, embora também use a razão, traz consigo um elemento novo: a fé, ou seja, crenças cuja origem está, de acordo com aqueles que nelas creem, em alguma revelação ou fonte sobrenatural. É impossível escapar de uma questão seguinte: se aceitamos usar, junto da razão, dados e crenças vindos da fé, qual fé escolheremos ou privilegiaremos?
Nosso objetivo é ser plural, no bom sentido do termo. Não no sentido de dizer que todas as “fés” são iguais, o que equivaleria a reduzi-las todas a preferências subjetivas (que é o exato oposto do que todas elas ensinam), mas sim no de dar espaço para que diversas perspectivas teológicas diferentes (cristãs, judias, islâmicas, budistas etc.) mostrem o que têm a dizer e a interrogar do leitor.
O segundo motivo que justifica, a nosso ver, uma seção de teologia, é o fato de que os valores e ideais sobre os quais se fundam nossa civilização têm uma origem teológica, e mais especificamente cristã. Conhecer a teologia do cristianismo, com suas crenças, suas tensões e seus achados, é também conhecer muito do que deu origem ao nosso mundo. Por isso mesmo, nosso artigo inaugural, escrito por Marcelo Consentino, é inspirado na obra de Hans Urs Von Balthasar, teólogo católico suíço de meados do século passado, cuja importância no pensamento da Igreja Católica é inversamente proporcional ao conhecimento de sua obra no Brasil. A imagem que Balthasar tinha do mundo contemporâneo, no qual pedaços do “coração” da Igreja foram preservados ao mesmo tempo em que as sociedades se afastavam de sua instituição e mesmo de sua fé, encaixa-se perfeitamente nessa importância histórica que a teologia tem, ou deveria ter, mesmo para quem não tem fé.
Para fazer a ponte entre teologia e filosofia, entre fé e razão, publicamos neste número um perfil de Søren Kierkegaard, escrito por
Álvaro Valls, maior autoridade brasileira no filósofo luterano dinamarquês. Para complementar o perfil, publicamos em primeira mão trechos da tradução inédita que Valls vem fazendo da obra de Kierkegaard.
Ainda nessa chave teológica cristã, mas com uma visão diferente, vinda do cristianismo ortodoxo russo, Renato Moraes investiga, na obra de Dostoievski, as diferentes faces do ateísmo que tanto preocupava o escritor, e que trariam, segundo ele, a ruína da humanidade.
E numa chave ateológica, terrena, Joel Pinheiro expõe a realidade e a visão exaltada do homem (ou de certo tipo de homem) criadas por Sergio Leone. Resta saber até que ponto essa visão é ou não realista (e voltamos à relação entre arte e realidade), coisa que não cabe ao artista responder. Seu propósito, afinal, não é argumentar, mas mostrar. O que a arte faz é manipular e nos mostrar diferentes visões do mundo e do homem, e permitir que o leitor ou espectador experimente um mundo guiado por aqueles valores, e, fazendo um exercício de correspondência com a sua própria experiência da realidade, decida se o que a obra lhe mostra ressoa ou não em sua alma. A realidade é sempre o fim, mas nem sempre o meio.
Como sempre, é nosso dever agradecer àqueles sem os quais este número da Dicta não seria possível. Queremos dar especial destaque à Febratel pelo apoio a nossa empreitada cultural e a João Lazzarotto, irmão do saudoso Poty, por nos ceder gentilmente as brasileiríssimas ilustrações que embelezam nossas páginas.
O IFE passa por mudanças profundas. Depois de uma mandato de três anos e meio, Guilherme Malzoni Rabello deixa a presidência do Instituto. Seria eufemismo dizer que sem sua liderança o barco sequer teria saído do estaleiro; ou melhor, sequer teria sido construído. Em seu lugar assume o timão Marcelo Consentino. Passar a presidência de um engenheiro a um teólogo… é dessa dialética terra-céu que tiramos nosso vigor. Seja como for, a Dicta segue em frente, banhando-se na glória de autointitular-se “a melhor revista de ensaios do Brasil” (prática consagrada pelos nossos concorrentes). Relevem a evidente ficção desse título e meditem a questão profunda que se coloca: o que ele revela sobre a cultura nacional?
A expectativa é grande! Só fiquei intrigado com o fato de o artigo que recebe o maior destaque na capa não ser sequer mencionado no editorial.
A frase do Thoreau é muito boa!