O crack da responsabilidade
Nesta nada breve conversação travada pela Dicta&Contradicta nos últimos quatro anos, impõe-se um desafio tácito, que é contrapor o sensacionalismo factual de nossa mídia ordinária com ensaios críticos de fôlego. O objetivo não foi jamais fazer o debate in cathedra, e o sucesso da revista dá provas do espaço que havia para discussões com esse perfil. Análises maiores e mais detalhadas, e, dada a nossa periodicidade, naturalmente menos acaloradas, permitem o distanciamento necessário para uma vista mais ampla da complexidade do mundo, além de garantir as condições necessárias para a verdadeira tarefa do conhecimento humanista: distinguir, sem excluir, os elementos da realidade total, compreendendo-os em toda sua complexidade, isto é, conectando-os a todo o resto.
Na recente discussão sobre a ocupação da cracolândia paulista, alguns temas nos são caros e já estiveram, mesmo que tangencialmente, presentes em nossas páginas. O mais óbvio é sem dúvida aquele mais recente, destaque da última edição, no qual o psiquiatra inglês Anthony Daniels argumenta sobre a responsabilidade do usuário – “responsabilidade” em termos bem claros pois, para o autor, o vício é primeira e claramente resultado de uma escolha pessoal; o viciado não é somente vítima da droga, é antes, vítima de suas próprias escolhas, algoz de si mesmo.
Na Dicta 4 é outro psiquiatra, o professor Oliver Sacks, quem nos expõe uma reflexão intrigante sobre a internação não voluntária. Em As virtudes perdidas do hospício, artigo que a Dicta publicou em primeira mão, o médico mostra como o movimento antimanicomial criou um pequeno flagelo para famílias que se vêem obrigadas a conviver, mesmo incapazes de dar as mínimas condições devidas, com entes amados com distúrbios mentais. A ausência de condições mínimas é a pior condenação a que estas pessoas podem passar, e errar pelas ruas acaba sendo, por vezes, apenas mais um momento de seus tristes calvários.