Duas (entre muitas) lições do Breve Discurso de Vargas Llosa – Parte 2

Por Eduardo Wolf

“Entre a cultura e a especialização há tanta distância quanto entre o homem de Cro-Magnon e os sibaritas neurastênicos de Marcel Proust” (Mário Vargas Llosa)

Se no post anterior detive-me mais no tipo de acusação pueril que costuma ser feita a Llosa (e que caberia, pelos critérios dos teóricos da abjeção, a um George Steiner, a um Philip Roth, e isso fala por si), hoje gostaria de me ater a um dos aspectos que considero central em seu texto. Certamente outros tantos aparecerão em nossas discussões aqui no site.

2. Barbaramente especializados

Os parágrafos que Llosa dedica aos temas Cultura e saberes especializados e Especialização e progresso (Dicta 6, pp. 15/16) sintetizam uma reflexão de grande riqueza. Suas considerações bebem claramente em Ortega y Gasset , a quem definiu na entrevista para a Dicta como sendo “um personagem extraordinário que, infelizmente, estava muito à frente do seu tempo na Espanha e que não foi reconhecido como deveria ser em sua época (…). Era um liberal e na Espanha do seu tempo não existiam liberais” (Dicta 6, p. 31). É claro que essa não é sua única fonte, e podemos dizer sem medo de errar que suas considerações constituem um exercício notável daquilo mesmo que Vargas Llosa defende: considerações de um homem com trânsito pelo caldo de cultura que formou nossa civilização nos seus mais variados aspectos; de um homem atento às questões de seu tempo, dotado de inteligência e capacidade para expressar suas idéias com clareza – a gentileza do filósofo! –; em uma palavra, de um homem culto no velho sentido do termo que o mesmo Llosa reivindica para nossa época.

É por isso que considero notável a passagem da página 15 em que ele escreve:

“A cultura é, ou era, quando existia, um denominador comum. Algo que mantinha viva a comunicação entre pessoas muito diferentes, mesmo quando o avanço dos conhecimentos obrigava a especializar-se, isto é, a ir-se distanciando e incomunicando entre si. Era igualmente uma bússola, um guia que permitia aos seres humanos orientar-se no espesso emaranhado dos conhecimentos sem perder a direção, e tendo mais ou menos claro na sua incessante trajetória as prioridades, o que é importante e o que não é, o caminho e os desvios inúteis”.

Alguém poderia pensar que a posição de Llosa é ingênua; que é, na verdade, uma “aceitação da idéia européia de cultura” – objeções que confesso ter ouvido. Sou obrigado a discordar de tal objeção. Basta um simples exame da história de nossa cultura, dos gregos – e mesmo antes deles, se quiserem – ao século XX, para que se veja que os mais ricos debates, que as mais extremadas divergências, que a indescritível variedade de posições que a cultura ocidental permitiu em nossos parcos três ou quatro milênios de vida só foram possíveis precisamente porque os homens e mulheres de cada época contavam com um acervo comum de referências culturais que lhes servia de baliza para a própria divergência e para a inovação.

Já havia dito acima que não era apenas Ortega y Gasset que animava o espírito de algumas dessas posições de Llosa. E se por um lado não me atreveria a dizer que George Steiner é uma fonte para o escritor peruano, por outro me sinto como que compelido a comparar a passagem acima com um momento sublime de um igualmente sublime ensaio de Steiner, um clássico artigo contra o desconstrucionismo:

“Ao longo dos séculos, uma maioria decisiva de receptores bem-informados chegou a conclusões multiformes porém bastante coerentes sobre o significado da Ilíada, do Rei Lear ou das Bodas de Fígaro. E não apenas concordam quanto aos significados dos significados dessas obras, como se põem de acordo ao julgar que Homero, Shakespeare e Mozart são artistas supremos numa hierarquia que se estende dos mais elevados cumes da obra clássica até o trivial e o mendaz. (…) Essa concordância ampla fornece à cultura as energias provenientes da memória, oferece-lhe ‘pedras de toque’ (Matthew Arnold) contra as quais testar a nova literatura, a nova música, a nova arte ”[1]

Mesmo quem quiser divergir de Llosa (ou de Steiner), somente poderá fazê-lo se estiver engajado nessa great conversation que constitui aquilo que chamamos de cultura. Do contrário, como poderíamos perceber a radical inovação tecnológica que uma lâmpada, um carro ou a banda larga significaram (e continuam a significar) para nossa civilização? Como poderíamos reconhecer a novidade de uma composição poética como a de Eliot – ou a pictórica de um Picasso? Como poderíamos sequer entender o próprio conceito de “desconstrução”, carro-chefe do assim chamado “pensamento” dos pós-modernos? Como, senão pelo simples e evidente fato de que partilhamos uma mesma cultura que nos oferece, para além de referências, critérios?

Creio que era isso o que Vargas Llosa tinha em mente quando escreveu, logo a seguir, que “ninguém pode saber tudo sobre tudo, mas ao homem culto a cultura lhe servia pelo menos para estabelecer hierarquias e preferências no campo do saber dos valores estéticos.” O oposto disso seria diluir a hierarquia evidente que há entre um hexâmetro de Homero ou um soneto de Shakespeare, de um lado, e os romances da coleção Sabrina – diluição que se segue forçosamente dos argumentos desconstrucionistas defendidos por tantos medalhões (falsos brilhantes) de nosso tempo.

Creio que ao menos alguns leitores concordarão comigo que um caso que se faz notavelmente sensível para que se perceba o dilema que Vargas Llosa está apontando é o da Universidade. Nosso tempo – que trocou a “universalidade dos saberes” que é marca distintiva dessa instituição por uma bandeira política, a do “para todos” – passa por uma situação singular: temos especialistas “a mãos cheias”, doutores em todas as áreas; mas dificilmente uma universidade, hoje, é capaz de formar um indivíduo culto. Seria cômodo imaginar que se trata de uma posição regressiva, reacionária; uma posição que não reconhece os extraordinários avanços que nossa sociedade experimenta. Vargas Llosa deixa claro que não se trata disso, e vale a pena tecer um ou outro comentário para além do que ele já nos oferece em seu texto.

É indiscutível que a especialização dos saberes é um dos lados da mesma moeda que estamos a chamar de “nossa civilização” – e como citei no parágrafo anterior, Llosa é o primeiro a reconhecê-lo. Ocorre que uma moeda de um lado só vale menos – se é que vale alguma coisa. E se temos hoje um saber muito especializado, mesmo nas humanidades (a filologia, a lingüística, o saber histórico, o comentário filosófico), por outro lado é bem verdade também que um filósofo que desconheça por completo a cultura literária ou artística de sua sociedade é antes um arremedo de filósofo, como um professor de Letras que não conheça história ou filosofia faz antes mal do que bem aos seus alunos – e a si mesmo.

Certa feita, dois professores meus (excelentes, aliás) conversavam e, em um momento de confissão pessoal, um deles disse lamentar saber tanto sobre “a terceira antinomia de Kant”, quando na verdade deveria ter se preparado para “saber tanto de tanta coisa”. Era injusta a avaliação que o professor em questão fazia de si, e digo-o por experiência como seu aluno. Mas era uma angústia real, e mais que isso: um sintoma preciso do dilema que vivemos hoje e que, a meu ver, somente poderá ser resolvido se tivermos uma concepção mais rica, mais robusta do que seja cultura.

Nesse sentido, Ortega y Gasset mostra-se merecedor de todos os elogios que lhe tece Llosa, como bem mostra essa célebre passagem de La rebelión de las massas[2] sobre a qual conversávamos dias desses o Marcelo Consentino e eu:

El especialista [científico, técnico, político, etc.] nos sirve para concretar enérgicamente la especie [de hombre-masa] y hacernos ver todo el radicalismo de su novedad. Porque antes los hombres podían dividirse, sencillamente, en sabios e ignorantes. Pero el especialista no puede ser subsumido bajo ninguna de esas dos categorías. No es sabio porque ignora formalmente cuanto no entra en su especialidad; pero tampoco es un ignorante, porque es ‘un hombre de ciencia’ y conoce muy bien su porciúncula de universo. Habremos de decir que es un sabio-ignorante, cosa sobremanera grave, pues significa que es un señor el cual se comportará en todas las cuestiones que ignora no como un ignorante, sino con toda la petulancia de quien en su cuestión especial es un sabio”.

Parece-me decisivo frisar, contudo, que a resposta para esse problema não está no retorno ao predomínio das generalidades, tão comum em certas áreas de humanas durante muito tempo – e em especial no Brasil. Nossa resposta deverá ser muito mais complexa, e a tarefa, portanto, muito mais árdua. Porque o que cabe aos homens e mulheres cultos de nosso tempo é aliar o rigor do especialista, quando isso se mostra necessário – e o ambiente universitário é uma dessas circunstâncias, indiscutivelmente – à formação cultural ampla. Isso porque o generalista superficial não é menos um deficiente cultural que o especialista estéril. Antes, são ambos verdadeiros estelionatários do pensamento.


[1] Do ensaio “Presenças Verdadeiras”, publicado em Nenhuma Paixão Desperdiçada, Editora Record, 2001.

 

[2] Capítulo XII, “La Barbarie del ‘Especialismo’”.

4 comentários em “Duas (entre muitas) lições do Breve Discurso de Vargas Llosa – Parte 2

  1. Não concordo com a declaração de que do descontrucionismo e do ” ‘pensamento’ pós-moderno’ se segue a equiparação de romances de banca de revista com Shakespeare.

    Que crítico/pensador especificamente voce diria que defende algo desse nível?

    Uma coisa é dizer que não existem interpretações fixas ou derradeiras para uma obra (Barthes, entre tantos), outra é dizer que não existe distinção entre obras literárias.

    Derrida, Bloom, Culler, Hartman, De Man. Nenhum desses autores diz nada parecido.

  2. Pingback: Duas objeções às lições de Wolf | Dicta & Contradicta

  3. “pues significa que es un señor el cual se comportará en todas las cuestiones que ignora no como un ignorante, sino con toda la petulancia de quien en su cuestión especial es un sabio”.”

    Sempre que leio essa frase me recordo de Richard Dawkins…

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