Duas (entre muitas) lições do Breve Discurso de Vargas Llosa

Por Eduardo Wolf

Seria um lugar-comum iniciar esta nova série de textos no site da Dicta falando do tremendo orgulho que foi contar com o prêmio Nobel Mário Vargas Llosa em nosso último número. Para todos os que fizeram e fazem a revista, tanto a excelente reportagem-entrevista que Martim Vasques realizou com ele quanto a publicação do texto do escritor constituem um marco no projeto da Dicta de seguir sempre buscando o melhor para seus leitores e de contribuir para um debate público de alta qualidade. Seria um lugar-comum, dizia eu, mas não é.

Não se trata de lugar-comum precisamente pelo tipo de reação que a premiação de Mário Vargas Llosa suscitou em certos meios, assim como o conteúdo de sua fala em Porto Alegre. Tanto ao vivo, pelo que nos mostra a matéria exclusiva de Martim cobrindo a passagem de Llosa em solo pátrio (ver “Elogio da Disciplina”, Dicta 6, p. 36), como por certos comentários mais gerais que suas considerações provocaram, pode-se perceber até que ponto chegou o comprometimento do mínimo de bom senso em matéria intelectual – e não apenas no país

1. Uma reação, uma lição

Arriscaria dizer que podemos encontrar nessa reação a primeira lição que o Breve discurso sobre a cultura nos deixou – e ficamos, a meu ver, não apenas com a tarefa de pensar sobre tal lição, de discuti-la, mas também de agir com base em nossa reflexão sobre as questões que ela suscita. Em parte, essas rodadas de debate no site da revista buscam dar conta dessas tarefas – mas o trabalho é, por certo, muito maior.

Muitos leitores acompanharam os desabonadores comentários que surgiram aqui e ali, como no caso de certa imprensa sueca, que condenou veementemente a decisão da Academia de premiar Vargas Llosa, escritor de talento indiscutível – e nem mesmo os seus rivais ideológicos lhe negam esse mérito. As vozes que normalmente tecem loas a intelectuais que defenderam (ou que ainda defendem) regimes totalitários e assassinos foram as primeiras a se erguer contra o prêmio dado a um intelectual que defende o Estado de Direito Democrático e o Livre Mercado. Mediante um procedimento não menos que esquizofrênico, esses críticos de Llosa querem nos convencer que apoiar regimes que fuzilam sumariamente seus dissidentes (isto quando não o fazem após humilhantes e desumanas perseguições e torturas) é uma atitude moralmente elevada, ao mesmo tempo que buscam incriminar Vargas Llosa (e quem quer que, como ele, compartilhe de suas convicções político-econômicas) pelas “injustiças” de nossas sociedades contemporâneas. Esquizofrenia chega a ser uma denominação doce, suave quase, para um pensamento deformado que escusa moralmente assassinos de arma em punho e culpa a mim e a você, leitor, pela morte de criancinhas africanas ou onde quer que seja.

Já acusação genérica de “direitista” ou “liberal” – como se tais termos correspondessem a entidades metafísicas reais e claramente definidas no mundo – contra o autor de Conversa na Catedral é, essa sim, um lugar-comum, e pior que isso, funciona como areia nos olhos do público, uma vez que o autor recebia o prêmio por sua produção literária, e não por sua postura política. Não quero parecer ingênuo e dar a entender que a Academia não tem critérios políticos, coisa sabida (e cá estamos nós novamente no terreno dos lugares-comuns…) por todos; reconheço mesmo que até esta última decisão tenha sido, digamos, potencializada por essa dimensão política, a saber, fugir da fama de conceder o prêmio sempre para escritores engajados à esquerda. Nada disso muda o fato de que se trata de um prêmio de Literatura, que o valor da obra escrita é o que pesa (alguém ainda se recusa a ler Pound ou a ouvir Wagner?) ou deveria pesar, e que no caso de Vargas Llosa, justiça seja feita, o prêmio foi mais que justo.

Mas afinal, o que teria dito Vargas Llosa no texto publicado na Dicta que poderia ser considerado tão absurdo, tão chocante, ou mesmo suficientemente controverso para que provocasse as reações que provocou? Certamente muito, senão tudo o que ele disse costuma ser alvo da crítica soi-disant progressista. Para isso mesmo convidamos os leitores a tecerem seus comentários. Creio que posso, ainda assim, destacar algumas dessas posições para frisar o disparate das reações mencionadas.

Já no início de sua fala, Llosa menciona um dos responsáveis diretos – senão o responsável direto – pelo embaralhamento da noção de cultura. Falando dos antropólogos, que cunharam (e fizeram vingar) a definição de cultura como sendo tudo-e-qualquer-coisa que um povo diga, faça, tema ou adore, ele prossegue:

Esta definição não se limitava a estabelecer um método para explorar a especificidade de um conglomerado humano (…). Queria também, como é evidente, abjurar do etnocentrismo preconceituoso e racista do qual o ocidente nunca se cansou de se acusar.

“O propósito não poderia ser mais generoso, mas já sabemos pelo famoso ditado que o inferno está cheio de boas intenções. Porque uma coisa é acreditar que todas as culturas merecem consideração já que sem dúvida em todas existem contribuições positivas para a civilização humana; e outra coisa muito distinta é acreditar que todas elas, pelo mero fato de existir, são equivalentes. E foi esta última que assombrosamente chegou a prevalecer em razão de um preconceito monumental, suscitado pelo desejo de abolir de uma vez e para sempre todos os preconceitos em matéria de cultura” (Dicta 6, p. 13).

Uma idéia abjeta e equivocada não pode ser corrigida por outra. Com o triunfo dessa concepção de cultura ideologicamente orientada, invenção dos antropólogos, mas logo aceita pelas humanidades em geral – para não dizer por todo o senso comum –, passou a ser considerado dogmático e racista afirmar que a civilização que nos legou Platão e Aristóteles é culturalmente superior àquela que nos legou apenas o exemplo vivo do canibalismo; ou mesmo que Maias e Astecas encontravam-se em um estágio civilizacional superior ao dos Tupinambás. A histeria da correção política, somada a uma tremenda ignorância em matéria intelectual, faz com que, por exemplo, um pesquisador em antropologia e etno-história de uma célebre universidade diga, sem corar, que já foi provado que o Princípio de Não-Contradição é apenas uma ficção eurocêntrica. A prova apresentada pelo pesquisador em questão era a seguinte: os índios da tribo x consideravam-se índios e araras ao mesmo tempo. A única coisa que um argumento desses prova é a ignorância monumental de quem o profere.

Permito-me ainda mais um exemplo do tipo de idéia que hoje é tomada como puro e simples “direitismo”, seja lá o que isso queira dizer. Falando de T. S. Eliot e de seu clássico “Notas para uma definição de cultura”, eis o que escreve Llosa, em sintonia com o autor dos Four Quartets:

“Porque cultura é algo que antecede e sustém o conhecimento, uma atitude espiritual e uma certa sensibilidade que o orienta e a ele imprime uma funcionalidade precisa, algo assim como um desígnio moral. Como crente que era Eliot encontrava nos valores da religião cristã o ponto de apoio do saber e da conduta humana a que chamava cultura.

“Mas não creio que a fé religiosa o único apoio possível para que o conhecimento não se torne errático e autodestrutivo (…). Uma moral e uma filosofia laicas cumpriram desde os séculos XVIII e XIX esta função para um amplo setor do mundo ocidental, embora seja certo que para um número cada vez maior de seres humanos seja evidente que a transcendência seja uma necessidade ou uma urgência vital da qual não podem desprender-se sem cair na anarquia ou no desespero” (pp. 15/16).

É estranho que alguém acuse uma posição como essa de “direitista” ou “reacionária”. É curioso que a postura de Llosa, reconhecendo o papel cultural e moral (bem como sua dimensão subjetiva) que a fé religiosa inegavelmente teve e tem, ao mesmo tempo em que reafirma sua convicção no Estado laico como um dos únicos modelos na conturbada história política da humanidade em que o direito à fé – qualquer que seja ela – e o direito ao ceticismo – de qualquer espécie – nos é garantido por lei e na prática cotidiana, é curioso, dizia eu, que tal posição seja acusada de direitismo. Mais que curioso, é uma flagrante hipocrisia, pois os mesmos intelectuais que criticam Llosa, esses verdadeiros teóricos da abjeção, são os primeiros a acusar, por exemplo, um candidato presidencial social-democrata e de formação marxista de “ameaça ao Estado laico” (vide nossa eleição passada), mas calam criminosamente diante de regimes monstruosos, buscando sempre a coerência com suas ideologias, incoerentes por natureza, e nunca a verdade do mundo e a coerência com valores.

Ora, não seria preciso – e nem seria decente – acusar Llosa do que quer que seja por conta de suas considerações. O único procedimento racionalmente aceitável e intelectualmente honesto seria mostrar que o estado de coisas que ele descreve não corresponde à realidade de fato, ou então mostrar que as conclusões que o autor de A cidade e os cachorros extrai não se sustentam com base nos fatos que lhes servem de premissas. Ocorre que seus detratores não podem fazer nem uma coisa, nem outra. Não podem mostrar que os fatos não são aqueles descritos porque a realidade os desmentiria, assim como não podem mostrar que as conclusões não se seguem porque estariam ferindo as leis mais elementares da lógica – e do bom senso. E nisso consiste a abjeção de tais críticas.


[1] Eduardo Wolf é bacharel em Filosofia pela UFRGS e mestrando pela mesma universidade.

8 comentários em “Duas (entre muitas) lições do Breve Discurso de Vargas Llosa

  1. De fato, o patrulhamento ideológico esquerdista na mídia e na academia demonstram que o “Muro de Berlim” ainda não caiu totalmente… Mas, sou otimista: creio que isso se deva a que muitos ainda não conseguiram se libertar de seus cânones e estruturas mentais marxistas e outros só ouvem isso de seus professores. Logo, é uma questão de tempo para que esse “vácuo” seja preenchido por algo mais, diria, ‘substancial’.

    É difícil debater com alguém que julga correto matar crianças (já nascidas) porque “faz parte” da “cultura” de um dado povo.

  2. Muitas vezes dá para pensar em que creem e o que afirmam os defensores das posições chamadas de esquerda. Esses seguidores daquilo que chamam luta pela justiça, aquela mesma praticada por Stálin, Lênin, Mao, Poll Pot, Fidel e demais acólitos de Marx e Engels; contradizem-se nos termos e nas intenções. Na verdade, combatem aquilo do que vivem e aquilo que os criou. Em nenhuma cultura identificada por eles como cultura, haveriam eles de dispor de tanta liberdade e isenção e garantias para dizerem o que dizem e enquadram sempre como aquilo que chamam sempre de direita. Qualquer que seja o algo que ocorra, se estiver isso fora daquilo em que se fundam suas concepções muito relativistas e relevantíssima da existência, ah!, eles irão conceituá-los sempre como reacionário. São pessoas do tipo que em volta de uma churrasqueira vivem a discutir o ponto de assamento da carne ao mesmo tempo em que pitam seus charutos incensatórios aos seus ideais não tão libertadores e que geraram ao fim mais genocídios do que justiça. Claro, nunca chegarão a uma conclusão definitiva sobre o ponto de assamento das carnes. Discutirão ao extremo e, depois, especularão se as outras carnes queimadas pela inquisição teriam o mesmo tratamento daquelas que seriam queimadas em outras culturas e, concluiriam então que não poderiam de fato saber ao certo, pois far-se-ia necessário a chance de provar uma e outra pra ter assim, uma avaliação concreta e dialética daquilo. Ora, só de pensar em provar a textura das carnes assadas, seja de uma ou outra cultura já demonstraria por si mesmo o inefável grau de relativismo libertário que acompanha tão brilhantes mentes e ideiais!

  3. Sempre vale ressaltar que somente a civilização ocidental (essa megera) permitiu a alguns membros de sua cultura repudiarem ela mesma (relativismo radical).

  4. Eduardo,

    gostaria, antes do que for, de te parabenizar por dar vez a este debate que creio tão importante. O texto está bom, mas tenho algumas objeções. Não obstante me alinhar à concepção também compartilhado por Vargas Llosa da cultura como cultivo, como ideal perfectivo e de aguçamento da sensibilidade, penso ser um equívoco sua crítica ao conceito de cultura antropológico.

    Não podemos nos esquecer que sua afirmação não se deu por um engajamento dos antropólogos ou por uma simples declaração de boas intenções destes. Em verdade, o conceito veio a se desenvolver não na antropologia, mas no historismus alemão e em seu apreço por produtos históricos específicos dotados de “significado” mais do que as potencialidades gerais enfatizadas pela noção de civilização (seu rival no pensamento social). É importante ressaltar-se que essa concepção alemã se opunha a ver-se um sentido comum à humanidade, um sentido na história, e assim também se afastava dos discursos soteriológicos pródigos em predições. (Sabemos bem quem são as crias destes…)

    Para uma disciplina consolidando-se como ciência tal qual se encontrava a antropologia, uma noção de cultura neutra e pluralista capaz de dotá-la de um aparato conceitual que lhe permitisse aprimorar os métodos empíricos de pesquisa, veio muito a calhar e lhe possibilitou um maior grau de rigor , além de abandonar o mero catálogo de classificação das sociedades humanas numa dada escala civilizacional.

    Da mesma maneira que é ingênuo dizer que os conceitos de oferta e demanda tiveram efeitos malévolos ao dar embasamento para o enriquecimento de banqueiros, também o é dizer que o conceito de cultura na antropologia veio a matar o apreço pelo cultivo. Ambos têm razões teóricas e metodológicas de existir, independente dos valores que animavam seus estudiosos.

    Um forte abraço,

    V.P.

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  6. Achei o texto pobre. Muitos parágrafos inúteis ou preenchidos com citações. E sua “crítica” não acrescenta coisa alguma. Pior: em vez de criticar o texto do Vargas Llosa, critica os seus críticos. Isso é perda de tempo. Se o tema do debate é um artigo, imagina-se que as ideias a serem discutidas são as ideias expostas pelo autor, e não por seus críticos. Seria melhor, então, dizer: é um debate sobre o debate, sobre outra coisa. E, aí, já não é um debate, mas um outro artigo como outro qualquer.

    Aliás, desculpem-me, mas achei essa ideia de debater os artigos da Dicta um tanto infeliz. Para isso serve a área de comentários do site, não? Se querem debater alguma coisa, debatam ideias, não os textos da própria revista. Não cabe a vocês fazer esse papel. Esse papel é nosso, dos leitores. E de outras revistas também. Vocês devem tratar é de produzir algo com conteúdo. E já me parece uma tarefa árdua. Esse negócio de “ombudsman” é coisa de corporativismo barato ou cabide de emprego. É coisa de jornal.

    Parece coisa de quem quer se auto-glorificar, e fica se olhando no espelho com uma falsa humildade: “Olha como sou bonito! Nem preciso que os outros me critiquem!”

    Ou pode ser mesmo uma carência de gente e de ideias novas para produção. Só vejo aqui textos do Martim, do Joel e do Julio. Onde está o resto da equipe? Não há o resto da equipe? Ou será que a burocracia e assuntos administrativos (que, aliás, têm sua importância) já tomaram conta do tempo de todo mundo?

    Além disso, para que fazer um debate se não há divergência de opiniões? Se todos pensam a mesma coisa, há de se debater o quê? Não se força um debate: ele surge naturalmente. Criar uma seção regular no site, voltada para debater os artigos da revista, pressupõe a existência de uma constante variedade de opiniões sobre um mesmo ponto, o que, na maioria das vezes, é falso.

    Querem provocar o contraditório? Produzam artigos, que podem até ser escritos sobre um mesmo tema. Mas, para isso, não é preciso criar uma coluna especial sobre os artigos da revista. Essa novidade já é a própria revista, não é?

    Back to basics, please!

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