Por Guilherme Malzoni Rabello
Vamos assumir logo de uma vez? Todo mundo aqui concorda com o Mario Vargas Llosa!
Se você, leitor, esperava o contrário, só posso pedir desculpas e avisar que você não está sozinho. A coincidência chega a ser engraçada: depois do Eduardo Wolf dizer o óbvio nesse site (parte 1 / parte 2), intelectuais do mundo inteiro se juntaram para criticar o direitista-reacionário Vargas Llosa por um motivo qualquer. Se tiverem paciência, podem conferir as notícias em diferentes idiomas aqui, ou aqui, nesse outro e lá também (e por fim aqui).
Mas essa é uma casa de respeito e este é um debate sério. Interessa-me, portanto, não o que disse Vargas Llosa, com o que todos concordamos; interessa-me a glosa que Eduardo Wolf fez de Vargas Llosa, e a essa, sim, tenho um ou dois comentários a fazer. Então, aux armes!
A crítica da crítica da crítica… e a moral da história?
Segundo o que foi publicado, a primeira lição que podemos tirar de Vargas Llosa seria o disparate das reações que suas idéias suscitam. Novamente eu concordo com o Wolf, mas será que isso tem alguma importância?
Em primeiro lugar, nem o mais desavisado dos distraídos fica surpreso com o fato. Chamar o Vargas Llosa de direitista é mais ou menos como pedir ao Chico Buarque que assine um manifesto, ou olhar o Macaco Tião fazendo palhaçada no zoológico. Todas elas têm sua graça, mas não são propriamente uma novidade.
Se não foi por serem “estranhas” que as reações mereceram destaque, resta a opção de o terem merecido por seremimportantes. Uma coisa pode ser importante de duas maneiras: importante em si, ou importante pelas suas implicações. No primeiro caso, voltamos ao Macaco Tião; ficamos, portanto, com a hipótese de que as reações disparatadas ao discurso do Vargas Llosa são importantes porque revelam um aspecto importante da nossa situação.
Com isso eu concordo, e aposto que o Wolf também. Mas, um minuto: não fiz todo esse raciocínio para chegar exatamente ao local de onde tinha partido? Outra vez: todo mundo sabe que a situação está preta!
Eis, portanto, minha crítica à primeira lição do Wolf: o que ele fez foi mostrar como o Vargas Llosa é uma das tantas ilustrações de um problema que existe para muito além da Dicta, do Vargas Llosa, das reações bizarras. Caberia indagar se essa ilustração trouxe algo de novo ao problema. Mas novamente a resposta me parece negativa: apenas um exemplo a mais.
Por outro lado, essa história toda levanta uma questão que não é óbvia: qual o papel da crítica na formação de uma cultura? E, sobretudo, qual o papel da crítica quando ela se debruça sobre si mesma e vira crítica da crítica da crítica…?
Em outras palavras: é mais importante desfazer um mal-entendido ou partir em busca de uma nova explicação? Há prevalência de uma sobre a outra ou as duas empreitadas são culturalmente equivalentes? As perguntas são difíceis, e o melhor que posso fazer é arriscar o meu chute — que talvez seja jogado fora depois de outro bom debate.
Parece-me que há uma prevalência ontológica na busca por novas explicações. Essa é a essência do conhecimento e se não for por isso o melhor que temos a fazer é desistir de tudo e ouvir Bach. Por outro lado, será que existe uma prevalência prática da crítica? Que ela tem sua importância é evidente; sem desfazer as besteiras, corremos o risco de nos prender a elas. Minha dúvida é se essa importância tem caráter absoluto. Será mesmo necessário ler Derrida, ou será que suas idéias “morrem sozinhas”?
Enfim, enquanto não me convenço a respeito da resposta, encaro o problema mais ou menos assim: a crítica precisa ser feita com contundência, mas esse me parece quase o “o lado sujo” da filosofia. Com todos os meus sentimentos, preferiria simplesmente ignorar o pensamento de Foucault. Ars longa, vita brevis etc. Mas sei que a crítica é necessária e essa concessão eu faço ao Wolf: talvez a sua ilustração seja mais importante do que eu gostaria que fosse. Mas, por favor, vamos mudar de assunto?
O problema do problema
O que me leva à segunda lição do Eduardo, a saber: o problema da Universidade e o binômio universalidade x especialização. Vou falar das duas coisas, mas começo com uma história.
Dia desses, uma amiga professora universitária me escreveu dizendo que tinha dois alunos que queriam falar comigo. Ela dá aula para a graduação numa faculdade de medicina e os dois alunos estavam, salvo engano, no quarto ano. Lá fui eu encontrá-los e a conversa começou com eles me contando sobre como sentiam falta de uma formação mais humanista no curso de medicina; como a faculdade não os preparava para enfrentar os problemas humanos que necessariamente encontrariam. Um deles chegou a dizer algo assim: “fui fazer medicina porque gostava de lidar com pessoas, mas cheguei aqui e nada do que me ensinam lida com isso”.
Após a exposição deles, fiz um comentário e a conversa foi para um lado bem mais prático (eles queriam dicas para fazer uma revista na faculdade). Vou contar o que disse a eles, mas antes devo confessar duas coisas que pensei cá com meus botões enquanto eles falavam.
Estavam na minha frente duas pessoas angustiadas com a sua formação, indignadas com a maneira com que eram ensinadas. Mas enquanto eles contavam suas histórias meu pensamento voltou à Grécia e comecei a pensar se aquela conversa não teria acontecido também entre os alunos de Platão na Academia. E fiquei imaginando os jovens gregos indignados com o professor “que só fica falando nesse Sócrates” e “que nunca responde as nossas dúvidas”, ou algo do gênero.
Qual o meu ponto? Não me parece bom pensamento generalizar “O Problema da Universidade” e trazer tanta importância para o caso atual. Não sei até que ponto esse problema é novo e tenho dúvidas de que em algum momento a Universidade tenha sido capaz de “formar indivíduos cultos”. Os meus dois amigos estavam de fato angustiados, como eu também estava quando fazia faculdade e continuo a estar no doutorado. Será que essa angústia não nos é própria? Sempre estamos insatisfeitos com a maneira de aprender simplesmente porque aprender é agustiante. Se esse for o caso, institucionalizar essa angústia natural e chamá-la de “O Problema da Universidade” é uma maneira falsa de esconder algo que sempre nos acompanhou (e vai acompanhar); ou seja, que conhecer é angustiante.
“Ah, mas você nunca foi à FFLCH”, ouço alguém dizer. E aí está a importância da questão: o fracasso de uma boa parte das Universidades não advém de problemas teóricos, de concepção de mundo. Na maioria das vezes é um simples caso de polícia: de formação de quadrilha a falsidade ideológica. Transformar isso em um problema teórico é dar-lhe um caráter que ele não tem e, portanto, distanciar-se da melhor maneira de solucioná-lo.
Antes que arrume confusão, é melhor voltar para minha história. Não foi só no Centro Acadêmico da Academia platônica que pensei enquanto os alunos de medicina falavam. Lembrei também que daqui a alguns anos eles serão médicos e eu paciente. Aí fiquei com medo: não quero discutir os Four Quartets com meu cardiologista! Não me interessa se o cirurgião gosta de Beethoven!
Qual meu ponto? Para além da piada, não me parece que o problema da “especialização x universalidade” atinja de maneira igual todas as áreas do conhecimento. Para ser exato, acho que isso é um problema exclusivo das humanidades, ou nem isso.
Para as ciências práticas, o importante é saber lidar com o específico: quero o meu celular cada vez melhor e pronto. Se o engenheiro que o projetou será ou não culto, isso é problema dele. Nas Ciências Humanas o problema é diferente, mas também não se coloca como uma escolha entre “especialização x universalidade”. Simplesmente porque o conhecimento das ciências humanas não pode ser específico e ficar só nisso. É uma questão de natureza: da mesma maneira que a “universalidade” nas ciências práticas só serve para ajudar a resolver os problemas específicos, nas ciências teóricas o conhecimento específico só vale se existir em função do universal. Colocar o problema como uma escolha entre duas alternativas já é em si parte do problema. E a solução não estará nunca em escolher um lado.
Mas nada disso eu falei aos dois que estavam na minha frente. A eles disse o seguinte: “vocês estariam dispostos a ficar mais dois anos na faculdade para ter uma formação mais humanista?” Eles não responderam, mas acho que sem saber já tinham encontrado a solução: não existem respostas simples para esse tipo de problema e o único erro é se contentar com isso.
Exatamente o mesmo vale para nós. Talvez não existam respostas para os problemas que tratamos nesse texto. Mas nossa única tarefa é tentar resolvê-los. Provavelmente não vamos conseguir, mas pelo caminho teremos contribuído para uma cultura digna do nome. Essa é a aposta!
Todos sabemos que, em 1968, era a formação humanista que os estudantes pediam nas universidades francesas. Auge do estruturalismo e início do pós-estruturalismo, as universidades estavam alvoroçadas com a antropologia lévi-straussiana, a história althusseriana e a psicanálise freudo-lacaniana, e os estudantes queriam participar disso, receber esta formação – e que ela valesse créditos. Mas a questão principal, à época e válida ainda hoje, é: quão possível é ensinar “humanidade”? E mais: através da universidade? Ou ainda: o contato com as obras “humanísticas” tem realmente algum impacto na moralidade de alguém? Eu não gostaria que entrássemos em coisas meio óbvias como a imoralidade de grandes autores (sei lá, Heidegger, Pound e outros clichês), mas somente levantar se realmente existe a possibilidade de a “humanidade” ser ensinada.
Para não deixar passar batido, é importante asseverar que há trabalhos de “humanização” em atendimento na saúde nos melhores lugares do mundo (inclusive no Brasil) e que têm sim algum impacto no trabalho cotidiano dos médicos, psciólogos, enfermeiros, etc. Mas creio – sim, é uma ironia – que não envolve árias, TSELiot ou Fellini.
Agora, Guilherme, este ponto é muito importante: a suspensão das certezas atinge realmente as ciências humanas de forma avassaladora (e de forma muito tímida algumas áreas estranhas, como a Física e a Matemática) e não a Engenharia e/ou a Medicina. Isto diz algo sobre a efetividade não somente destas, mas daquelas. O que será que houve? Eu, confesso, nem imagino.
Uma última provocação, já que o caso – talvez seja – arriscar alguma crítica a Llosa. Aí vai: eu entendo perfeitamente a importância de sua crítica a Foucault devido a um único fator: a predominância do pensamento foucaultiano nas humanidades em muitas universidades do país e do mundo, mas gostaria de argumentar o seguinte: a) o pensamento foucaultiano por aí disperso é um arremedo barato de suas idéias (oriundo especialmente dos seus textos mais panfletários e não de seus textos mais robustos); b) Foucault deu contribuições muito interessantes para a área das humanidades (o que é reconhecido por quinhentas mil pesssoas decentes (também à direita) no meio intelectual), como Ian Hacking e outros; c) Foucault nunca exerceu patacoadas exageradas como outros pós-modernos (nunca usou matemática para analisar a “cibernética do feminismo”); d) Foucault teve posicionamentos estranhos em política, mas isso não é sua maior contribuição.
Ou seja, reitero, ainda que entenda a pertinência da crítica de LLosa a ele, acho que o bom posicionamento de um intelectual não é desmerecer um autor por completo (como parece ser o caso), mas compreendê-lo em sua relevância (somente no que há), limpar o terreno das más interpretações (sempre as há) e estimular o debate em torno de suas contribuições importantes. Por sinal, sobre Foucault, é algo que está faltando há horas: que alguém decente no Brasil (alguns fazem lá fora) apresentem suas idéias de forma não politizada (que não pareça panfleto para projeto político), aprofundem suas contribuições à epistemologia das ciências humanas (é a única área onde ele realmente tem coisas relevantes) e limpe os textos dos foucaultianos de exageros como “a loucura não existe”, “tudo é contrução social” ou “o estado cria o criminoso”.
Caro Guilherme,
Concordo com você inteiramente.
Bons professores e livros recomendáveis somente podem transmitir algo de valor se a pessoa que se alia a eles já tiver sido capaz de perceber em si mesma – e não em outros ou no mundo em que vive – os seus maiores obstáculos.
Imaginar que um curso universitário ensinará a lidar com tais embaraços é confundir aquisição de cultura com obtenção de títulos acadêmicos, coisa e outra que, não poucas vezes e cada vez mais, ligam-se apenas de maneira esquemática e inessencial.
Um professor somente conseguirá iniciar seus alunos se conseguir algo mais do que articular conteúdos bibliográficos. Para cumprir sua função com algum proveito, precisará, antes e fundamentalmente, demonstrar desejo inequívoco pela cultura e paixão pelo saber ministrado. Sem isto, não há educação (ou transmissão) possível.
Abordando outro aspecto da questão, é desanimador constatar que, hoje, psiquiatras e psicoterapeutas consideram procedimento natural e legítimo reduzir os conflitos anímicos (neuroses, angústias e mal-estares) a disfunções orgânicas e/ou sociais, levando as pessoas, com isto, a desobrigarem-se de seus achaques e das interrogações que eles colocam.
A enorme maioria dos problemas humanos não se resolve particularizando caso a caso os saberes instituídos, mas, bem ao contrário, resolve-se ampliando o saber pessoal até que este ganhe uma dimensão de universalidade capaz de dar ao sofrimento que se vive o sentido profundo que lhe falta. Sem isto, não há tratamento capaz de recuperar ninguém efetivamente.
Vê-se que cultura é coisa impossível de receitar ou prescrever. Devemos falar dela, e é bom que falemos com desejo, mas não podemos destacá-la e ensiná-la, posto que é fundo da vida humana e não, como se pensa por aí, uma de suas figuras ou aspectos.
A cultura é oceânica, não cabe num balde ou numa caixa d’água; quero dizer, em cursos e universidades. Não é transportável ou portátil porque somos nós que, conscientes ou não, nos movemos nela. De modo que sua travessia é um tentame diário, pessoal, infindável, intransferível e mais do que recomendável.
Abraço,
Porquê o Martim fecha a caixa de comentários quando exerce sua verve literária? Ele escreve bem, gostei dos textos dele. A impressão que fica é que ele quer evitar uma possível “contaminação” por parte dos comentários, seja falando bem ou mal dos textos dele. Se for esse o motivo eu até entendo.
Também acho que ele deveria abrir os comentários. O segundo texto é bem mais interessante que o primeiro.
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Os dois alunos deveriam estar dispostos a passar dois anos a mais na faculdade, como os franceses dispõem-se a sacrificar onze anos até terem seu doutoramento em Medicina. Aqui está, explícito, o “problema da Medicina”: a incapacidade institucional de selecionar alunos que, médicos, não trocarão o joelho esquerdo pelo direito. O que falta, certamente, não é instrução técnica e treinamento da mecânica e dos protocolos clínicos e cirúrgicos, mas ressuscitar e privilegiar uma noção hoje considerada de mau gosto: a de que uma profissão possa (ou deva) ser revestida de especial dignidade.
Infelizmente, a criação de departamentos e disciplinas de Humanidades nas faculdades de Medicina serve apenas para alimentar já antigas disputas de poder na Academia. Vejo, entetanto, nos caminhos alternativos (revistas, ligas acadêmicas de estudo e sociedades literárias) a possibilidade da formação de profissionais distintos, que sejam no futuro prova material de que o conhecimento técnico é requisito mínimo e absolutamente insuficiente para o exercício satisfatório da Medicina.