Duas perguntas sobre a nova tradução de “Guerra e Paz”, de Leon Tolstói

Se Guerra e paz é tido muitas vezes como um livro imenso e intransponível (a edição da Cosac Naify tem 2536 páginas), a recompensa de lê-lo é diretamente proporcional a essa fama. A infinidade de personagens e as digressões filosóficas são decisivas para o livro ser o que é – o estilo absolutamente livre de Tolstói ao escrevê-lo, sua resistência aos padrões literários de sua época, a preocupação em dizer aquilo que tem a dizer sem seguir nenhum um estilo que não o dele próprio.

Tolstói pesquisou obsessivamente e usa esse material para retratar a campanha de Napoleão na Rússia. Mas o livro não pretende ser uma crônica histórica. O centro da narrativa está na reflexão sobre a verdadeira força que parece mover os povos, sobre o que fez, afinal, milhões de pessoas praticarem, umas contra as outras, “uma quantidade tão inumerável de crimes, embustes, traições, roubos, fraudes, falsificações de dinheiro, pilhagens, incêndios e assassinatos, como não se encontra nos autos de todos os tribunais do mundo em séculos inteiros”.

Tolstói não hesita em direcionar uma crítica vigorosa aos historiadores de então, que no seu entender resumiam os acontecimentos nas ações de algumas figuras poderosas, e cita com ironia uma série de ordens e dispositivos militares para provar que os documentos oficiais e as ações daqueles que estão no topo da escala do poder são incapazes de explicar ou mesmo de definir os rumos da história.

Toda a construção dessa teoria, baseada num raciocínio e num poder de argumentação invejável já é por si só impressionante. Mas Guerra e paz é ainda mais do que isso: ao lado de Napoleão (retratado como um gorducho presunçoso), de Kutúzov, o comandante em chefe do exército russo, e de outros personagens reais, se movem centenas de vidas fictícias. E são essas figuras, imaginadas por Tolstói, como Natacha, Andrei, Pierre e Mária, que fazem com que Guerra e paz seja tão transbordante de vida. Duvido que o leitor, depois de conhecê-los, queira sair dali, daquele mundo tomado por batalhas, conselhos militares, ambições heroicas, entusiasmos patrióticos, bailes, caçadas, banquetes, paixões de juventude, questionamentos filosóficos, amores e decepções. A própria maneira de narrar escolhida por Tolstói, que flutua entre os pontos de vista de seus personagens (e se estende por um período de quinze anos), permitiu que ele retratasse um imenso espectro de paixões e de situações de vida, e que as figuras que as protagonizam nos parecessem tão próximas. O livro parece abrigar o mundo, a vida inteira está ali, e talvez por isso Guerra e paz seja diferente de absolutamente tudo que você já tenha lido.

Ao ler o texto acima, duas perguntas surgem:

1) Por que ultimamente o editor (no caso, a editora) da obra publicada escreve um texto mil vezes mais interessante do que qualquer um que foi publicado por um resenhista ou um crítico literário da grande imprensa?

2) Por que a Cosac Naify resolveu cobrar quase duzentos reais por dois livros encadernados em uma capa de veludo azul que irritará as mãos de quem quer realmente ler a obra e não apenas colocar na estante como elemento de decoração?

Eis alguns mistérios de nosso mercado editorial brasileiro.

3 comentários em “Duas perguntas sobre a nova tradução de “Guerra e Paz”, de Leon Tolstói

  1. À laia de resposta:

    1) Porque leu a obra;
    2) Que esperar duma editora que se chama “Cosac Naify”? Parece que o veludo seria rosa choque, mas o conselho editorial deliberou escolher azul, pois cores frias calham melhor com tons pasteis.

  2. Parece que esta é uma edição especial, com tiragem limitada. Depois será lançada uma edição”normal”, sem plumas & paetês.
    Mas o veludo não surpreende. Quem não se lembra da maldita edição de “Bartleby, o escrivão”, em que para ler é preciso cortar folha por folha?

  3. A ser verdade o que disse Angelo Galvão, tomara que essa edição especial esgote logo, de preferência no Natal. Quero logo uma versão normal, com capa mole. Se bem que o preferível seria de papel jornal, edição de bolso, o que seria pedir demais à Cosac Naify.

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