A vida toda de costas

Bruno Tolentino

IV.

Nunca entendi que o coração sofresse
como sofre por causa do ilusório,
que fizesse de si um consistório
de fantasmas inúteis, e que nesse

fundo de calabouço se metesse
tanto remorso, tanto mais inglório
quanto nunca serviu: que padecesse
porque entulhasse um fictício empório

com suas ficções e seus delírios.
O tigre mata à toa, o coração,
fabricando e alongando seus martírios,

estraçalhando-se a si mesmo em vão,
imita a fera absurda e, como os tiros
na noite, morre só, na escuridão.

 

De 1604 passamos ao fim do século XX, quando Bruno Tolentino, após uma longa temporada na Europa, retornava ao Brasil e começava a lançar seus livros. Sua obra é quase marcada pela denúncia da mentira romântica; digo “quase” porque seria mais exato dizer que ela se volta para um desejo muito fundamental e trata mais deste desejo específico do que do esquema geral.

O amor começa na admiração; admiramos aquilo que parece melhor, mais vivo, aquilo que parece ser mais do que nós mesmos. Percebemos a nossa banalidade e queremos repeli-la. As obras de arte, por sua própria natureza, concentram aquilo que é essencial e por isso parecem ter mais vida. Também existem instantes muito mais intensos do que os outros, e desejamos congelá-los de algum modo. O propósito da arte parece ser efetuar este congelamento, muito útil porque a sensação de estarmos excluídos da beleza e da vida é aterradora. No entanto, a beleza precisa ser verdadeiramente bela, precisa estar próxima da verdade, e a verdade da existência obriga-nos a aceitar a banalidade e a mortalidade. O objeto que negar isso comunicará apenas ilusão, ou, para usar o termo que Tolentino preferiu, “Idéia”. E assim como a coquete que se compraz no sofrimento da coisa amada ou o Amor que engana, “a Idéia te convida mas não recebe nunca”, como diz em “O espectro” (O mundo como Idéia). O verdadeiro amor entre homem e mulher deve consumar-se no corpo, mas a coquete nega o corpo assim como a “Idéia” nega a vida.

Para falar disso, Bruno Tolentino, um tanto à moda de Vinícius de Moraes, opta por uma sintaxe direta, quase coloquial – lembrando, é claro, que o coloquial de um poeta erudito pode não ser o mesmo da maioria da população, mas isso não o torna menos coloquial. Este poema tem quase um tom de conversa, ainda que tenha palavras menos comuns – mas não menos adequadas – como “consistório” ou “calabouço”. A diferença em relação aos outros poetas que vimos é que Tolentino dá a certas palavras certos sentidos específicos. Assim como a “Idéia”, que aqui não aparece, o “ilusório” se refere não a qualquer concepção errada, mas àquilo que criamos para tentar aprisionar os momentos mais intensos da vida, esquecendo – ou fingindo – que a fugacidade não existe. Por isso, o “coração” aqui sofre por não abraçar o tempo, não olhar o que acontece, enamorando-se de estátuas como se elas pudessem ser algo melhor do que pessoas.

A cada vez que a cousa amada recusa aquilo que se esperava, seja por maldade ou natureza, o coração tem três opções: admitir que foi ele quem fabricou uma ilusão para fugir da finitude, enamorar-se de uma nova estátua, de uma nova Idéia, ou desejar aprimorar seu amor por aquela estátua. Se ficasse com a primeira opção, tudo bem. Mas ao insistir na busca pela chave secreta do universo, por aquilo que concederia uma vida mais intensa, não faz outra coisa além de colecionar ilusões, “fabricando e alongando seus martírios / e estraçalhando a si mesmo em vão”.

Bruno Tolentino pode alegar que nunca entendeu por que o coração fizesse isso, mas entendeu muito bem; o que ele quer dizer é que não aceita que aparentemente tenha de ser assim. Baltazar Estaço vem com uma invectiva categórica; Bruno Tolentino dá seu próprio testemunho: aquilo parece a fonte da juventude, mas é a cabeça da Medusa, e buscá-la fará o coração “morrer só, na escuridão”.

Se a pregação contra a mentira romântica quase sumiu por quatrocentos anos, que fique ao menos a voz de quem a viveu e rejeitou.

 

Pedro Sette Câmara é poeta e ensaísta. Traduziu A origem da linguagem, de Eugen Ro­senstock-Huessy (Rio de Janeiro: Record, 2002).

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