Agostinho

por Antonio Fernando Borges

Tudo naquela noite parecia anunciar um (digamos) suave clichê literário, não uma heresia calculada pela Matemática dos Sábios. O jantar corria bem, o restaurante era ótimo – e o sorriso no rosto da linda moça à minha frente, mais do que uma promessa, era um milagre no ambiente e na noite. Se a boca estava seca, era em decorrência da escolha errada do vinho (rascante demais), e não de algum pressentimento extemporâneo. Mesmo assim, eu perguntava a mim mesmo: teria eu, finalmente, uma noite feliz?

Então, na alvoroçada mesa ao lado da nossa, alguém gritou (foi quase um berro) um comentário infame, desses em voga, contra o último e saudoso papa. E todos deram uma gargalhada. Então, num contágio que muitos chamariam de inevitável, a linda moça à minha frente também riu, e afinal gargalhou. Mas, como eu não gargalhasse nem risse, em pouco tempo ela se fez séria, e disparou:

– Puxa, você ainda não consegue rir dessas coisas?!!! Será que você nunca vai se adaptar?

A Psicometria Matemática dos Sábios dizia que a adaptação e a superação de traumas dependiam diretamente do avanço exponencial dos dias e de uma respiração adequada. Mas eu, que preferi sempre guardar minha crença em nichos discretos, conseguia perfeitamente encaixar no rosto a máscara bem azeitada da obediência, e sempre tinha dado certo. Por dentro, eu continuava crendo em Deus, sem que à minha volta percebessem.

Até que naquela noite, na calma interrompida do jantar, algo começou a dar errado, e a linda moça (de cujo nome já não quero me lembrar) acabou percebendo.

 

Quem reconhece o drama quando ele se precipita sem platéia?

No dia em que anunciei aos quatro ventos que seria escritor, e não padre (como a família sonhava), não havia ninguém por perto para ouvir ou contestar a notícia. Eu estava sozinho no pátio do Seminário, esgueirando-me para não ser visto e castigado pelos superiores. Precisei de muitos dias e de todo aquele silêncio e solidão para afinal decidir.

Escritor!

Na época, eu tinha 21 anos e acreditava em Deus o suficiente para ter a certeza tranqüila de que Ele me compreendia. Mas também conhecia bastante de mim mesmo para saber que o que me arrastava para a Literatura não era nenhuma “nobre intenção”: era a vaidade. Não era sequer aquele orgulho banal dos que sonham com seu nome em vitrines e prateleiras, ou mesmo a proverbial sede de nomeada dos autores de província.

Eu pretendia mais…

Queria, para mim, aquela sensação de onipotência que um velho poeta amigo de meu pai vivia mencionando – sempre às escondidas, porque sabia da ortodoxia religiosa da família. (Sendo ele ateu, representava um perigo para minha “vocação sacerdotal” deixá-lo mais de meia hora a sós comigo.)

No dia em que o esquema de vigilância falhou, o velho poeta estava especialmente inspirado e explícito:

– O escritor é o único deus possível, meu caro! Neste mundo condenado à vacância cega e anônima da matéria, só a Literatura é capaz de dar vida própria às metáforas.

E arrematava:

– Num mundo sem divindades criadoras, o artista é o único deus! E não há tabaco, elixir ou fármaco que se compare!

Naquela tarde, o entusiasmo pagou seu preço em indiscrição: meu pai (ou algum parente abelhudo) deve ter ouvido a preleção do velho. Não posso atribuir a simples coincidência o fato de que, dois dias depois, eu empreenderia a eternamente adiada viagem rumo ao Seminário.

 

Testemunha do meu súbito desconforto no meio do jantar, a linda moça que dividia a mesa e a noite comigo perguntou (entre objetiva e impiedosa):

– Não me diga que você ainda acredita…? Não: seria imprudência demais.

O garçom ainda não tinha trazido o prato principal, mas tanto eu quanto ela já tínhamos percebido que o jantar parecia – metaforicamente – esfriar. Até eu me surpreendia com minha irritação, fugindo ao equilíbrio de sempre. A simples menção dos acontecimentos políticos recentes, a pergunta em tom de ironia, a doçura que ia dando lugar à malícia naqueles olhos verdes – tudo parecia apontar para o fracasso da noite.

Mas parece que alguém (por que não Ele?) desejava que aquela noite prosseguisse – mesmo que o gran finale (se viesse a haver algum) ficasse para outro dia… O que aconteceu em seguida não foi de caso pensado: na verdade, eu não fiz mais do que olhar ressentido para a mesa ao lado – foi um olhar, apenas, concentrado no rosto do moço cuja blasfêmia de salão estava esfriando as chances da minha noite.

Não foi premeditado, insisto – mas também não demorei a reconhecer, mesmo tão fora de contexto, meu velho e conhecido olhar de hipnotizador e ilusionista de teatro. Afinal, fazia anos que eu vivia assim: com a ajuda de gestos e trajes planejados, fingia possuir poderes sobre a matéria e os corações humanos, enquanto guardava só para mim a consciência vaidosa de que tudo aquilo era, no fim das contas, um dom legítimo (e não um mero punhado de truques), que eu me empenhava em disfarçar.

Foi esta mesma vaidade indisfarçável que eu voltei a sentir ali, naquela noite, enquanto desejava, sinceramente, que o moço da mesa ao lado… deixasse de existir. Então, aconteceu.

Foi uma questão de minutos, segundos – aquela cronologia incerta dos pesadelos. O corpo do moço despencou sobre o prato à sua frente, todos gritavam quase ao mesmo tempo, e então alguém se aproximou (o mais cínico da mesa?) e constatou, com cruel ironia, para todos ouvirem:

– Chamem a ambulância, a polícia… Pensando bem, nem precisa ter pressa.

Deus do céu! Olhei, espantado, para o jovem morto – e tratei de observar, cada vez mais apreensivo, as reações das pessoas em volta dele, incapazes de desconfiar que algo de sobrenatural (expressão proibida, no mundo novo sem Deus) tinha acabado de acontecer, que talvez eu fosse o responsável por “aquilo”.

Agostinho produzia milagres discretos e operava pequenas (mas assombrosas) maravilhas – e, graças a isso, só fazia ampliar sua aura santificada entre alunos e mestres do Seminário. Mas, apesar do nome e da aura crepuscular do filho dileto de Santa Mônica, não era nunca de maneira explícita (ou por vontade própria) que ele exibia o dom que havia recebido, e que no fim das contas parecia incomodá-lo.

Para cada doença ou febre sanada num superior ou companheiro de estudos, ou mesmo a cada ave ferida que ele repunha a voar, Agostinho costumava recorrer a um argumento lógico ou às “forças imponderáveis do Acaso”, na hora de explicar aquilo que nossos olhos assombrados tivessem visto. Era (ou parecia) um santo. E, para minha infinita decepção, atribuía tudo à intervenção divina – talvez por não se considerar, afinal, digno de interferir no mundo dos homens.

Desde que o conheci, percebi que éramos diferentes – e o abismo entre nós só fez aumentar à medida que os estudos, o recolhimento e as provações se intensificavam. O que nos separava não era a crença maior ou menor em Deus – mas a forma como esta Fé se revelava e florescia. Para empregar a linguagem comum dos homens (e não a de um padre velho e cansado): se para Agostinho, a existência de Deus fluía como a água clara, alegre e corrente dos arroios mais simples, dentro de mim parecia haver, em troca, um mar tempestuoso e amargo, de ondas irregulares e violentas.

Naquela tarde em que eu tinha decidido abandonar o Seminário (enquanto arrumava a bagagem às escondidas, como um pecador qualquer), me vi fazendo um balanço das perdas e ganhos daqueles últimos três anos de leituras, provações e recolhimento. Era uma conta apertada, com cifras difíceis de se contabilizar. Eu tinha conquistado o que antes me parecia o mais difícil, mas que àquela altura representava minha miséria maior: a crença em Deus. Usando, mais uma vez, a fala simples dos homens: ter a certeza, irrevogável, de Sua Realidade e Onipotência era algo que já não me nascia de nenhum esforço da lógica, nem das horas de meditações e penitências. Era uma presença límpida, efetiva, mas que habitava também meus abismos mais dolorosos e sofridos.

Porque a verdade é que, em mim, a existência divina doía. Onde teriam ido se esconder a proverbial serenidade, a sensação de apaziguamento e justiça de que falavam certos livros, na sedutora expressão: a Paz de Cristo? Li mal todos os livros (e até mesmo o Livro) e naquele tempo as explicações sempre me fugiam. E, sinceramente, ainda hoje me fogem…

Enquanto preparava a saída furtiva, na indolência do dormitório, eu tentava dissecar a origem daquela minha miséria: acreditar em Deus (e eu sabia, ai de mim!, de Sua existência e seu Poderio) fazia de mim uma pessoa pior. Por uma razão pouco “nobre”: a fé me diminuía, dava-me plena consciência de minha insignificância perfeita – e isso eu já não conseguia agüentar!

Quantas vezes, naqueles anos de Seminário, eu tinha acordado no meio da noite, pensando nas palavras do velho escritor ateu, amigo de meu pai: “O artista é o único deus”. Àquela altura, eu já sabia que o velho estava errado naquela história de “vacância cega e errante da matéria”. Mas tinha ainda uma breve esperança de que, talvez na Literatura, eu viesse a encontrar a “epifania das divindades criadoras” de que ele tanto falava. Mesmo que eu viesse a me revelar uma divindade bem pequena, eu precisava tentar…

Faz muito tempo – mas ainda me lembro:

Não havia canto da mala (ou da consciência) onde eu pudesse esconder aquela certeza da fuga: o que me arrastava dali era o orgulho (primo daquela humilhação que me esmagava), e eu precisava me libertar – se não da convicção em Deus, pelo menos daquele testemunho permanente de Agostinho. Em seu silêncio, em sua discrição, ele parecia sempre anunciar e garantir um futuro longo e sem pressa (a Eternidade, quem sabe?), num mundo cada vez mais recheado de fé.

Ao fundo, era como se eu ouvisse sussurrar que a Matemática dos Sábios já se preparava para demonstrar que toda aquela nossa idéia sagrada estava com os dias contados. Mas nós, de tão jovens, éramos irreparavelmente convictos e (também) surdos para entender aquilo.

 

Com a barriga à prova de disfarces e a calva já bastante avançada (eu conferia pelo grande espelho, na parede dos fundos do restaurante), certamente eu era àquela altura a imagem fiel do padre bonachão que um dia, ainda jovem, eu mesmo desistira de ser – e que a nova Lei dos Sábios Matemáticos proibira, com duas canetadas. Mas era também graças a essa estampa que podia, afinal, ganhar a vida como uma espécie de flibusteiro de salão, fingindo ter poderes e dons que eu dominava de fato.

Ali, minha platéia certamente era outra, e a própria cena incluía um cadáver nada fingido e sobre o qual minha responsabilidade pairava. Ali, também minha performance teria de assumir uma natureza bastante diferente da costumeira, em que truques matematicamente explicáveis reforçavam a tese dominante nesses tempos: a inexistência do mistério e do
sobrenatural.

Nem precisei pedir licença à linda moça que (àquela altura) já não se encontrava à minha frente, na mesa, mas misturada aos outros curiosos que testemunhavam aquele espetáculo da morte – como sempre, tão banal e tão encantatório.

Eu me deslocava devagar, entre os presentes, mas sem dificuldades logísticas. Só o que me atrasava era a certeza de que qualquer atitude que eu tomasse iria desembocar num caminho sem volta: morto ou redivivo o ex-blasfemo da mesa ao lado, tudo naquela cena (naquela noite, naquele encontro interrompido no restaurante) pendia para uma despedida irreparável.

Eu sabia o que precisava ser feito – e também o preço que teria a pagar.

 

Sempre que alguém nos desafia com palavras do estilo “Você vai ter que ser forte”, podemos estar certos de que o fim do mundo é iminente – e que, em breve, de alguma forma, o céu haverá de cair sobre nossas cabeças. Naquela antiga tarde no Seminário, eu terminava de arrumar minha bagagem furtiva quando vieram me avisar que o Reitor queria me ver, e era urgente.

Não eram boas razões, como costuma ocorrer nesses casos – aparentemente a meu favor, eram notícias de fato irrevogáveis, e trágicas até o fim. Na linguagem resumida dos homens, eu precisava voltar para casa imediatamente. Meu pai tinha acabado de morrer, de um modo pouco definido que abrangia de um vago suicídio ao enfarte fulminante. A causa, em compensação, era clara e incontornável: a falência financeira total, tantas vezes adiada, e àquela altura coroada de dívidas insanáveis, com seqüestro dos últimos e escassos bens, etc.

Etc. Etc. Etc.

Traçado o quadro geral, computados os detalhes, o resto da história caberia na crônica de qualquer família em plena derrocada. A não ser, claro, por alguns detalhes especialmente dolorosos para mim: em pouco mais de um mês, eu estava de volta ao Seminário. Dentro do que havia sobrado da família em ruínas (minha mãe e dois irmãos pequenos, a serem sustentados pela caridade dos tios), não havia recursos para meu sustento e estudo. Na linguagem banal dos homens: tudo aquilo que, no começo, pudesse ter sido vocação religiosa tinha se tornado meu único horizonte de sobrevivência.

O resto da história, eu dizia, poderia caber num punhado bem prosaico de palavras: abandonei os sonhos de escritor, ordenei-me sacerdote e passaram-se os anos – faltando apenas acrescentar: até que a nova lei dos Sábios Matemáticos…

Mas qual! Quem me dera!

Nem isso…

Com os anos – e como eles passaram! -, acostumei-me a conviver com uma crença menos humilhante em Deus. Mas quem vislumbrou, no exercício da Literatura, alguma epifania possível não poderia se libertar assim tão facilmente dessa matriz tão tentadora. Afinal, bastaria um punhado de papel, tinta, alguma imaginação – e o resto…

Bem, e o resto?

O resto é estar aqui escrevendo, misturando aos fatos minhas vontades irrealizadas. Se, até agora, não consegui atingir qualquer modalidade do êxtase de que falava o amigo ateu de meu pai, ao menos tenho aprendido a usar a arte da palavra como um modo de compensação e consolo – e até a mentir um pouco, sem afinal pecar. Mas um homem desiludido, ou à espera da morte, tem o dever de proclamar a Verdade, ainda que não vá fazer isso do alto-dos-telhados.

À verdade, então:

Retornei ao Seminário, estudei e me ordenei, passando a exercer o sacerdócio por cidades e décadas a fora – e isso foi (tem sido) tudo.

Não houve, também, nenhum cataclismo político ou espiritual levado a cabo por qualquer improvável casta de Sábios Matemáticos: dentro de meu espírito conturbado e ressentido, tudo jamais passou de uma fantasia tentadora, capaz de interromper a humilhação que temperava minha crença irremovível em Deus.

De meu companheiro de Seminário, que tinha o nome e a aura do filho de Santa Mônica, nunca mais tive notícias. Aliás, nem mesmo voltei a vê-lo: tinha abandonado o Seminário durante minha breve ausência, e a própria família (a pedido dele) recusou-se sempre a revelar seu novo paradeiro. Tudo o que fiquei sabendo (e que o tempo logo tratou de abafar) foi que ele tinha afinal perdido o controle habitual, em termos de lógica e discrição: generosamente descuidado, tinha revertido o “humanamente irreversível” em favor de um padre-mestre dado como morto, por afogamento – e, dessa vez, havia dezenas de testemunhas. Parece que sua humildade não suportou a exposição excessiva. Todos (foi o que me disseram, também) compreenderam seus motivos sinceros.

Nunca mais soube dele. Mas gosto de estar aqui brincando com a idéia de vê-lo interagir no sinistro universo-sem-Deus que eu tanto fantasiei – um mundo prosaico, feito exclusivamente de palavras, onde eu o imagino gentil e generoso, como ele era, mas ao mesmo tempo fraco, ciumento e humano – como eu sou.

A confusão tinha tomado conta do restaurante, e a polícia já havia sido chamada. Mas não foi difícil, para mim, conseguir chegar até bem perto do morto, abrindo caminho entre todos aqueles corpos inertes e aqueles rostos espantados. Difícil mesmo (mas não demorado) foi tomar a decisão de fazer o que tinha que ser feito, e me preparar para as conseqüências. Optei, enfim, por ser rápido – e sobretudo discreto.

(Mesmo assim, eu sabia que não haveria de escapar para sempre.)

Quando o morto abriu os olhos e tossiu, com a expressão de quem iria demorar a compreender o que estava acontecendo, eu já me encontrava distante – mas não o suficiente para deixar de ouvir a linda moça informar, como alguém que se justificasse:

– Era o nosso primeiro encontro, coisa arranjada por amigos. Só sei que o nome dele é Agostinho, e quase mais nada.

 

Antonio Fernando Borges é jornalista, editor e escritor. Publicou Que fim levou Brodie? (Rio de Janeiro: Record, 1996, Prêmio Nestlé de Literatura de 1997), Braz, Quincas & Cia. (São Paulo: Companhia das Letras, 2002), Não perca a prosa (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2003) e Memorial de Buenos Aires (São Paulo: Companhia das Letras, 2006).

 

 

 

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