As máscaras de Eliot

As máscaras de Eliot
As máscaras de Eliot

Por Martim Vasques da Cunha

Pode acontecer que um poeta acredite dar expressão
apenas à sua experiência particular; os seus versos talvez
representem para ele apenas um meio de falar de si mesmo sem
se denunciar; no entanto, para seus leitores, aquilo que escreveu
pode tornar-se a expressão tanto dos seus sentimentos secretos
como do júbilo ou do desespero de toda uma geração. Mas ele
mesmo não precisa saber o que a sua poesia chegou a significar
para outros, como um profeta não precisa compreender
o significado das palavras que profere
.

T.S. Eliot, Virgil and the Christian World (1951)

Em meados de 1914, Bertrand Russell escrevia a uma amiga comum, Lady Ottoline Morrell, a respeito de Thomas Stearns Eliot, ex-aluno seu: “Ele é o único que é civilizado e, mais exatamente, ultracivilizado, pois conhece bem os seus clássicos, tem familiaridade com a literatura francesa de Villon a Vildrac, e é sempre impecável em matéria de gosto; mas não possui nenhum vigor ou vida – ou entusiasmo”.

Sem dúvida, há um toque de crueldade nesta descrição. Afirmar que Eliot não tinha entusiasmo e supor que seu gosto refinado em literatura seja uma espécie de armadura contra a “corrente selvagem da vida” talvez seja uma forma discreta de insultá-lo. Afinal, foi nesse mesmo ano que o então ex-aluno de Harvard compôs seu primeiro grande poema, A canção de amor de J. Alfred Prufrock, publicado três anos depois. Essa seria a primeira amostra de como a mente de Eliot tinha entusiasmo suficiente para capturar o que Russell Kirk chamava de “a imaginação moral de seu tempo”. Mas é provável que “Bertie” não tenha chegado a tomar consciência disto simplesmente porque não tinha imaginação, e muito menos moral…

Ainda assim, sua observação influenciou a maioria dos críticos e – pasmem – dos admiradores de Eliot. Impressionados por ela, abordamos seus versos pensando encontrar um professor no alto de sua cátedra, um sábio que observa tudo e todos com lânguida e gélida elegância – e essa impressão parece confirmar-se quando nos deparamos com seus textos críticos. É aqui que o “diagnóstico” de Bertie parece dificultar ainda mais uma avaliação honesta, e como resultado a crítica de Eliot é hoje vista como um mero apêndice de sua poesia.

Nada poderia ser mais errado. As poesias e os ensaios do “Old Possum” complementam-se de maneira impressionante, mostrando a coerência habitual de um poeta que, mesmo quando escrevia em prosa, não abandonava a sua tarefa maior. A complementação não é apenas temática; há também uma coerência de procedimentos estilísticos e, sobretudo, de comunicação indireta, em que Eliot se vale do uso de “máscaras” – no caso de sua crítica, dos escritores que o influenciaram – para mostrar ao leitor, não só a “imaginação moral” do mundo presente, mas a paisagem interior que atravessa num momento específico de sua vida.

As “máscaras” eram um recurso de que seu amigo Ezra Pound já usava e abusava na poesia, com a nítida intenção de criar um distanciamento emocional entre o leitor e o criador. Para Eliot, tinham ainda outra função: eram uma forma de distanciamento, mas não do leitor e sim da emoção; destinavam-se a fingir emoções a fim de dominá-las e, desta forma, poder expressá-las corretamente – ou seja, com o equilíbrio necessário para que o leitor possa compreender que o assunto do poema não é algo meramente subjetivo, mas objetivo, concreto e real.

Ou seja, personas como Prufrock, Gerontion ou o Peregrino de A terra devastada são formas de comunicação que Eliot estabelece com seu público para que este entenda que há algo maior em jogo. E o que é que está em jogo? Nada menos que todo o problema da tradição, considerada já em inícios do século XX como um cadáver que precisava ser eliminado da cultura ocidental e substituído por uma nova maneira de olhar o mundo – o modernismo revolucionário que viria a transformar a estrutura da realidade em um pesadelo…

Eliot dá-se conta da gravidade deste problema à medida que a sua obra evolui. Ao publicar o Prufrock, em 1917, somente tem clara uma coisa: o mundo é um lugar que o ser humano não consegue ou não quer compreender direito. E para compreender honestamente o mundo onde se encontra, é necessário adquirir uma noção correta do passado – no caso, da tradição que sustenta a poesia. Como encontrá-la? Ora, nos próprios poetas. E talvez a única maneira de entendê-los seja simpatizar com eles, identificando-se com certos pontos de vista, vendo que talvez sejam espelho dos problemas do leitor (no caso, o próprio Eliot) – ou seja, que de certa forma refletem os dilemas da sociedade.

Uma das coisas mais impressionantes da obra crítica de Eliot é que o uso das “máscaras” não se limita somente aos poetas ou romancistas. Há uma galeria enorme de filósofos, pregadores, críticos literários e até cientistas políticos. Essa variedade só prova uma coisa: o entusiasmo de Eliot por estar sempre aberto ao que acontecia, não só no seu íntimo, mas também no mundo ao seu redor, implacável e próximo do absurdo. A sua crítica começa paralela à poesia, e logo o poeta já nos mostra quem são os seus “padrões de qualidade”: os poetas metafísicos, em especial John Donne, Andrew Marvell e George Herbert, o angustiado Pascal, o pecaminoso Baudelaire e, claro, a verdadeira meta orientadora de toda sua vida – Dante Alighieri.

O fascínio de Eliot por esses poetas preocupados com a tensão entre a carne e o espírito, entre o querer e o não-poder-fazer, são indícios de um dos grandes fatos silenciosos ou silenciados do século XX: a sua lenta, mas firme, conversão ao cristianismo. Quem lê Prufrock, Gerontion ou A terra devastada, não imagina que exista ali uma alma que se debate entre o inferno moral da modernidade e as suas aspirações pessoais mais honestas e íntegras.

Seja como for, estes poemas são por um lado retratos a nu de uma sociedade que perdeu o contato com o espírito; e o trabalho de Eliot como crítico – exercendo aqui a sua função de manter a tradição e, desta forma, de fazer uma “crítica da vida” e de formar “um critério” – é um dos pilares da construção que tenta ultrapassar a decadência do presente em que o poeta vive. Por outro, a escolha de seus “heróis morais” submete-se a um padrão de angústia íntima, habilmente oculto, de que poucos leitores conseguem perceber alguma coisa.

Vamos tomar como exemplo o seu famoso ensaio sobre Pascal. Ali temos uma sensibilidade aguçada para a vida do espírito, para o que realmente movimenta o homem em seus desejos e em suas frustrações:

 

“Pascal é um homem do mundo entre ascetas, e um asceta entre homens do mundo; tinha o conhecimento da mundanidade e a paixão do ascetismo, e nele os dois fundem-se num todo individual.

“A maior parte da humanidade é intelectualmente preguiçosa, não sente curiosidade, deixa-se absorver por futilidades e é emocionalmente tíbia, e por isso incapaz seja de muita dúvida, seja de muita fé; e quando o homem vulgar se chama a si próprio ‘cético’ ou ‘descrente’, trata-se em geral de uma simples pose que disfarça a aversão a pensar sobre qualquer coisa até chegar a uma conclusão. A desiludida análise de Pascal acerca de sua servidão humana é, por vezes, interpretada no sentido de que Pascal seria, na realidade e em última análise, um descrente que, no seu desespero, seria incapaz de suportar a realidade e de fruir a satisfação heróica do homem livre que nada venera.

“Na realidade, porém, o seu desespero, a sua desilusão, não constituem nenhuma demonstração de fraqueza pessoal; são perfeitamente objetivos, porque são momentos essenciais no progresso da alma intelectual; e para pessoas do tipo de Pascal são análogos à aridez, à noite escura, que é um estágio essencial no progresso do místico cristão. Desespero semelhante, quando nele cai um caráter doente ou uma alma impura, pode ter as mais desastrosas conseqüências, embora com as mais soberbas manifestações; e graças a isso temos As viagens de Gulliver. Em Pascal, porém, não encontramos tal deformação; o seu desespero é em si próprio maior que o de Swift, porque o coração nos diz que corresponde aos fatos e não pode ser posto de lado como doença mental; mas era também um prelúdio necessário ao júbilo de fé, e um elemento deste”.

 

Seria Eliot falando do próprio Eliot? Não podemos afirmar nada; mas reparemos no que afirma de um poeta que também se equilibrou no trapézio do desespero, Charles Baudelaire:

 

“Foi um daqueles que têm grande força, mas força apenas para sofrer. Não conseguia fugir ao sofrimento e não conseguia transcendê-lo, portanto atraía a dor. O que podia fazer, porém, com aquela imensa força passiva e sensibilidade que nenhuma dor era capaz de enfraquecer, era analisar o sofrimento. E nesta limitação é completamente distinto de Dante; nem chega a ser como alguma figura do Inferno de Dante.

“Por outro lado, contudo, um sofrimento como o de Baudelaire inclui a possibilidade de um estado positivo de beatitude. Na verdade, no seu modo de sofrer já há uma espécie de presença do sobrenatural e do sobre-humano. Rejeita sempre o puramente natural e o puramente humano; por outras palavras, não é nem ‘naturalista’ nem ‘humanista’. Por não ser capaz de se adaptar ao mundo atual, tem de rejeitá-lo em favor do Céu e do Inferno; ou, por ter a percepção do Céu e do Inferno, rejeita o mundo presente – os dois modos de pôr o problema são defensáveis.

“Há nas suas afirmações muitos resíduos românticos – ses ailes de géant l´empêchent de marcher, diz do Poeta e do Albatroz, embora não de modo convincente -, mas há também verdade acerca de si e acerca do mundo. É claro que o seu ennui pode explicar-se, como tudo, em termos patológicos ou psicológicos; mas, segundo o ponto de vista contrário, é também uma verdadeira forma de acédia, com origem na luta infrutífera em direção à vida espiritual”.

 

Os dois trechos acima revelam alguém que conheceu pessoalmente as experiências descritas e sabe que têm uma dinâmica, uma força que tanto pode minar todo o entusiasmo, como também devolvê-lo dobrado, se conseguir ultrapassar os obstáculos pessoais. Eliot admira a situação espiritual de Pascal ou compadece-se da de Baudelaire; mas, acima de tudo compreende-as, porque, muito provavelmente, também as vivenciou. Não se trata de uma mera análise, de um mero trabalho de crítica didática; trata-se de uma transmissão de experiência, de uma “tradição” no seu sentido original, de uma verdadeira comunicação entre os vivos, os mortos e os que ainda não nasceram. Enfim, a crítica eliotiana revela minuciosamente como essa tradição ainda está viva em nosso presente – e é com os seus elementos que surge o verdadeiro “critério”. Eliot foi um dos principais mentores desse critério, pois, como afirma Roger Scruton, o que o distingue “não é o seu apego às coisas do passado, mas sim o seu desejo de viver completamente no presente concreto, de compreendê-lo em suas imperfeições e de aceitá-lo como a única realidade que nos é oferecida”.

Para realizar essa tarefa, Eliot sabia que não poderia cair nos extremos, seja de um Pascal, seja de um Baudelaire. Poderia ter encontrado o seu equilíbrio em Dante, em Goethe, em Samuel Johnson ou mesmo em Shakespeare; mas surgiu-lhe John Dryden, o grande poeta inglês do século XVII, e foi nele que Eliot encontrou o exemplo do poeta que gostaria de ser: alguém que toma a sério as palavras que escreve, representa em si o próprio drama da raça humana e continua o seu trabalho, não de repúdio, mas de reconciliação. Em um ensaio sobre Dryden, escrito na década de 30, usa um estilo sensivelmente diferente do dos outros textos críticos; já não vemos o professor no alto de sua cátedra, mas apenas o poeta empolgado ao descobrir um semelhante, seja pela percepção da forma poética, seja pela visão de mundo baseada na espontaneidade. Eliot dá as mãos a Dryden, embora reconheça que ele “carecia daquilo que o seu mestre Ben Jonson tinha de sobra: uma ampla e unitária concepção da vida. Faltam-lhe penetração e profundidade”.

Ao mesmo tempo, porém, sabe que,

 

“na verdade, seria mais pertinente dizer, mesmo sob a forma de um paradoxo pouco convincente, que Dryden se distingue sobretudo por sua habilidade poética. Apraz-nos o que, como Mallarmé, ele fez de sua matéria-prima. Nossa avaliação é apenas em parte uma apreciação da engenhosidade: afinal de contas, o resultado é poesia. Muito do mérito especial de Dryden consiste em sua habilidade em fazer, do pequeno, o grande; do prosaico, o poético; do trivial, o grandioso. Nisso ele difere não apenas de Milton, que precisa de uma tela de amplas dimensões, mas também de Pope, que exige uma de tamanho menor. Se compararmos qualquer ‘personagem’ satírica de Pope com uma das de Dryden, perceberemos que o método e a intenção divergem amplamente. Quando Pope altera, ele reduz; trata-se de um mestre da miniatura”.

 

É esta mesma “miniatura” que Eliot busca, não em sua obra, mas em sua vida, porque isso lhe permitirá viver como um anônimo entre seus semelhantes, como poeta que faz a sua arte no silêncio, sem nenhum estrondo, tendo por companhia apenas o suspiro da criação. Obviamente, isso não o impede de procurar a “penetração e profundidade” que faltariam a Dryden; afinal, já tinha encontrado essas duas qualidades em Pascal e Baudelaire. Mas a ausência delas pode ser substituída por três características que marcam o trabalho da poesia e que Eliot foi novamente buscar em Dryden: a invenção, a variedade e a eloqüência.

A surpresa é que o próprio Dryden teve de encontrar essas “três felicidades” em Virgílio e Ovídio [1], e as define neste trecho antológico que o nosso poeta do século XX certamente adoraria ter escrito: “Portanto, a primeira felicidade da imaginação do poeta é propriamente a invenção, ou descoberta do pensamento [adequado]; a segunda é a fantasia, ou a variação, impulso ou moldagem daquele pensamento, na medida em que o juízo os apresenta como apropriados àquele assunto; a terceira é a eloqüência, ou a arte de vestir e adornar o pensamento encontrado e variado com palavras adequadas, significativas e sonoras. A vivacidade da imaginação mostra-se na invenção, na fertilidade da fantasia
e na precisão da expressão”.

Vê-se aqui a linhagem de tradição em que Eliot se baseia para realizar o seu trabalho de manter a “imaginação moral” de sua época em um equilíbrio sadio. Para encontrá-lo, o próprio poeta tinha de ser o exemplo de uma harmonia interior, de um norte que pudesse reorientar as pessoas que haviam perdido algo que já não tinham como recuperar. Isso não ocorreu, contudo, sem lutas interiores que exigiram dele uma força de espírito descomunal. Para chegar à “felicidade harmônica” de Dryden, Eliot tinha de reconhecer a sua verdadeira vocação, que pendia nada mais nada menos que para a loucura e a destruição de seu próprio ser.

Em um de seus textos mais conhecidos, Wordsworth e Coleridge, T.S. Eliot comenta um dos versos de Dejection: an Ode, o poema que Samuel Taylor Coleridge escreveu quando atravessava a maior crise de sua vida. Neste parágrafo comovente, não podemos deixar de perceber, impressionados pelo tom de súbita afeição, que talvez se trate de uma reflexão pessoal sobre o que se passa em sua alma:

 

“Quando disse que Coleridge se intoxicava com metafísica, pensava seriamente nestas suas palavras: ‘And haply by abstruse research to steal / From my own nature all the natural man’ [‘E talvez, por meio de pesquisas do oculto, / Furtar à minha natureza todo o homem natural’]. Coleridge era uma dessas pessoas – e desconfio que Donne tenha sido outra – de quem se podia dizer que, se não tivessem sido poetas, poderiam ter feito alguma coisa das suas vidas, poderiam mesmo ter seguido carreira; ou, ao contrário, que se não se tivessem interessado por tantas coisas, se não tivessem sido dilacerados por paixões tão diversas, poderiam ter sido grandes poetas.

“Teria sido melhor para Coleridge, como poeta, ler livros de viagens e explorações do que ler livros de metafísica [esoterismo] e economia política. O seu desejo de ler livros de metafísica e economia política era sincero, porque de fato tinha um certo talento para esses assuntos. Todavia, durante alguns anos fora visitado pela Musa (não sei de nenhum poeta a quem esta metáfora banal se aplique com mais propriedade),  e a partir de então foi um homem perseguido por fantasmas. Não tinha vocação para a vida religiosa, porque neste caso é necessário novamente que intervenha alguém semelhante à Musa, ou antes um ser muito superior; e estava condenado a reconhecer que a pouca poesia que escrevera valia mais do que tudo o que podia fazer com o resto de sua vida. O autor de Biographia Literaria era já um homem destruído. Por vezes, contudo, ser um ‘homem destruído’ é em si mesmo uma vocação”.

Quando Eliot escreveu essas linhas, ele próprio se considerava um “homem destruído”: seu casamento com Vivien Haigh-Wood estava dilacerado, pois ela tinha de ser internada a toda a hora em diversos hospícios devido a problemas mentais aparentemente incuráveis; seu trabalho como bancário o consumia; e sua vocação poética parecia tragada por um abismo sem fim. Sim, em 1933, ano em que o texto sobre Coleridge foi escrito, Eliot era já o homem que tinha escrito A terra devastada, Os homens ocos e Quarta-feira de Cinzas e, supostamente, a sua conversão definitiva ao cristianismo deveria ter-lhe dado alguma paz, algum equilíbrio para continuar a sua missão como poeta representativo da humanidade. Mas nada disso acontecera: pelo contrário, Eliot sentia a vida esfarelar-se em suas mãos.

O daimon da poesia – algo parecido com a “Musa” de Coleridge – exigia demais, exigia tanto que até o deserto e a secura das palavras vazias eram mais suportáveis. O que Eliot não tinha como suportar era a sombra de uma vocação não frutificada porque o mundo tentava aprisioná-lo – e não somente o mundo, mas também as pessoas que mais esperavam dele, que o pressionavam para que voltasse a escrever versos como Prufrock ou Gerontion, quando ele já não podia fazê-lo pelo simples fato de que a acomodação é impraticável para o verdadeiro poeta. Ele tem de abraçar o caos, a incerteza e o naufrágio – caso estes o aceitem. Talvez não o façam; no entanto, é dever do artista, mesmo que seja um “homem destruído”, levar essa experiência à sociedade da maneira mais clara e articulada possível. O poeta atravessa o inferno e passa pelo purgatório, e só chega ao paraíso depois de uma longa jornada em busca do bem árduo.

A referência a Dante não é aleatória: Eliot sempre buscou no grande florentino um modelo para a sua trajetória espiritual, se não para sua poesia, por causa de “uma lição que nenhum poeta, de qualquer língua que conheço, pode dar”: a amplitude do âmbito emocional. A vocação de “homem destruído” é certamente um destino terrível. Todavia, Eliot deixa claro que precisamos de um Coleridge ou de um Dante porque “o grande poeta deveria não só apreender, mas também distinguir mais claramente do que os outros homens, as cores ou sons ao alcance da visão ou do ouvido vulgares; deveria apreender também as vibrações situadas além do alcance dos homens vulgares, e ser capaz de fazer os homens verem e ouvirem mais em cada extremo do que poderiam alguma vez distinguir sem a sua ajuda”. E, ninguém sabe fazer isso melhor do que Dante, apesar de “termos um Coleridge, um Dryden, um Byron ou um Jonson: perto do primeiro, eles são apenas especialistas“.

“Dante, porque podia fazer tudo o mais, é por essa razão o maior poeta ‘religioso’, embora chamar-lhe um ‘poeta religioso’ seria diminuir a sua universalidade”, escreve Eliot em um texto da maturidade. “A Divina Comédia exprime tudo o que o homem é capaz de experimentar no campo da emoção, do desespero da depravação à visão beatífica. Por isso, lembra constantemente ao poeta a obrigação de explorar, de encontrar palavras para o indizível, de capturar aqueles sentimentos que as pessoas mal podem sentir porque não têm palavras para elas; e, ao mesmo tempo, lembra que aquele que explora para além das fronteiras da consciência vulgar apenas será capaz de regressar e comunicar aos seus concidadãos aquilo que experimentou se tiver sempre uma compreensão sólida das realidades com que já estão familiarizados”.

Esta “compreensão sólida” vem somente do confronto com a destruição que existe em sua alma. Mas tal confronto não pode durar para sempre pelo simples motivo de que, a partir do momento em que o poeta flerta com a loucura, não se pode deixar possuir por ela, mas tem de dominá-la, agarrá-la, transformá-la na travessia necessária que todo ser humano deve fazer para encontrar a sua unidade sadia, para depois refleti-la sobre a sociedade onde vive. Como fazer isso? Será que o destino do artista no mundo moderno é ficar dilacerado entre o desespero muito atual de Coleridge e a beatitude perdida de Dante? Pode haver um meio-termo, o equilíbrio que Eliot tanto desejava em sua vida?

Para encontrar este equilíbrio, é necessário passar por uma transmutação, uma metamorfose de todo o ser, para não dizer uma “transfiguração”. E isso somente a religião – ou melhor, a experiência autêntica da religião como um relacionamento pessoal com Deus – pode fazer. Esta idéia norteará não só a poesia madura de Eliot, especialmente os Quatro quartetos, mas também as suas peças teatrais e, claro, a sua obra crítica, que pouco a pouco também se firma como uma crítica dos princípios religiosos (ou anti-religiosos) da sociedade moderna. Para ele, a religião é a verdadeira seiva que alimenta a modernidade, mesmo que esta não o queira. É o motor propulsor de uma vida que, por mais que negue a transcendência, não deixa de percebê-la quase de forma subterrânea, pulsando discretamente, a orientar o cotidiano. E a poesia – que, sim, também tem uma função religiosa, mas não é somente religiosa – deve recuperar essa seiva em toda a sua força para que ela volte a alimentar um mundo que, após o fracasso da modernidade, poderá abrir-se para um novo horizonte.

Qual seria esse novo horizonte? Eliot nunca respondeu à pergunta. Não teve tempo suficiente. Ainda assim, em seus últimos escritos, pôde apontar algumas direções, sempre usando o artifício da “máscara”. O exemplo disso é o seu ensaio sobre o “poeta metafísico” George Herbert, praticamente desconhecido se compararmos a sua fama com a de um Donne, mas igual a ele em grandeza literária; podemos dizer que é quase “um retrato do artista quando sábio”. Como Eliot, Herbert tinha uma vocação metafísica – desta vez no seu sentido autêntico – e um temperamento aberto para o mundo; podia ao mesmo tempo ser um pastor anglicano extremamente popular e guardar seus pensamentos mais íntimos em poemas construídos com minuciosa autoconsciência; experimentava a tensão de ser um homem de Deus como algo sério e que impunha escolhas difíceis, sem nunca esquecer que, no fim, o que importa é o que a vida nos pergunta, não o que queremos responder a ela; e tinha pleno conhecimento de que a arte só salva quando se ergue sobre o fundamento de uma obra maior – a própria Criação.

De fato, eram duas sensibilidades parecidas, seja em visão de mundo, seja em sofisticação poética. É só vermos estas estrofes de um poema de Herbert, Affliction (I) (“Aflição I”):

 

[…] thou thorowest me

Into more sicknesses.

Thus doth thy power cross-bias me,
[not making

Thine own gift good, yet me from

[my ways taking.

 

Now I am here, what thou wilt do

[with me

None of my books will show:

I read, and sigh, and wish I were

[a tree –

For sure I then should grow

To fruit or shade: at least some

[bird would trust

Her household to me, and I should

[be just.

 

Percebemos que é outra forma de articular a mesma experiência do Gerontion, em que Eliot se pergunta de forma sintética: “After such knowledge, what forgiveness?” (Depois de tal conhecimento, qual perdão?). E a experiência em questão é também a mesma descrita no Eclesiastes: a de que qualquer coisa que se ampare neste mundo é de uma vaidade fugaz, sem sentido, sem finalidade, e a única forma de escapar, ainda que de maneira precária, é olhar para a “tampa de marmita” que nos cobre – o céu.

O livro pelo qual George Herbert é conhecido é a coletânea chamada The Temple, publicada postumamente; de acordo com Eliot, é simplesmente um dos maiores escritos devocionais de todos os tempos, comparável aos Pensamentos de Pascal. E a comparação entre Herbert, Pascal e o mesmo Eliot não é aleatória; afinal, os três tinham uma coisa em comum: a ambição. “Não precisamos negar que Herbert foi ambicioso”, escreve o nosso poeta já no fim da vida, em 1962. “Sabemos que tinha um temperamento exaltado; sabemos que apreciava belas roupas e a convivência com pessoas elegantes, e teria ficado satisfeito com um cargo na Corte. Todavia, ao lado da luta para afastar o pensamento das atrações oferecidas à ambição mundana, descobre-se ‘um desânimo espiritual que o levava a olhar a própria vida, a vida que realmente levava, como sem valor e inútil’. Atribui-se a causa disto em parte ao mau estado de saúde, mas mais ainda a uma falta de confiança mais arraigada. Talvez tenha sido a falta de confiança em si próprio, ou o medo de pôr à prova as suas capacidades entre homens mais confiantes, que o levou ao refúgio de um obscuro presbitério. Tinha de libertar-se do torturante sentido de frustração e impotência e de aceitar a vaidade da sua própria experiência. Se é assim, a fraqueza de Herbert tornou-se a fonte do seu maior poder, porque o resultado foi The Temple“.

Essa força é a que surge do reconhecimento da própria fragilidade, da própria miséria como ser humano. Foi o que T.S. Eliot buscou em sua vida e em sua obra. Ele foi um dos poucos a encarar, com coragem, o coração das trevas do seu século. A felicidade que almejava encontrar em Dryden chegou somente no final da sua trajetória; em uma carta a William Turner Levy, datada de 1962, época de seu segundo casamento com Valerie Fletcher, Eliot escreve que “é uma coisa maravilhosa, meu caro William, estar casado e ser feliz, e um estado abençoado para aqueles que, na minha idade, têm uma esposa bonita, boa e sensata, com uma boa cabeça e um gosto apaixonado por poesia – ela tem tudo para me fazer feliz e estou-lhe humildemente agradecido”. Por sua vez, quando Aldous Huxley o visitou em 1958, observou que “Eliot se encontrava curiosamente disperso – talvez o resultado de estar finalmente feliz em seu segundo casamento”. A vocação de “homem destruído” não se cumprira.

Eliot morreu no dia 4 de janeiro de 1965. O que fica são os fragmentos com os quais escorou suas ruínas – a sua “pequena obra” -, véus e máscaras que dizem apenas uma coisa: o sangue da alma que, entre preces disfarçadas de poemas, murmura algo que só o poeta é capaz de dizer por toda a humanidade.

 


 

[1] “Felicidade” – felicity – transita aqui entre três significados, o de “realização”, o de “perfeita adequação” (como na frase “uma palavra feliz”) e o de boa sorte (“felicidade no jogo”).

 

 

Um comentário em “As máscaras de Eliot

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