Kafka à beira do abismo

Kafka à beira do abismo
Kafka à beira do abismo

por Rodrigo Duarte Garcia

Em um de seus poemas mais famosos, Eugenio Montale pedia que dele não esperassem a fórmula do mundo, mas apenas sílabas torcidas e secas como um ramo. São dois versos e uma assombrosa explicação do que deve ser a literatura e, principalmente, do que ela não deve ser. Montale procurava apenas retratar a realidade em colagens e imagens móveis, fugindo da armadilha de tentar conformá-la a esquemas conceituais, o mundo como idéia de que nos fala Bruno Tolentino. A existência não pode mesmo ser resolvida e representada em fórmulas matemáticas embaladas a vácuo. A obra de arte ordena as trevas da vida – em sílabas torcidas e secas como um ramo -, e a impulsiona imortalizada à frente, com todas as imperfeições inevitáveis da linguagem.

A literatura é, assim, essencialmente o resultado da fissura que existe entre as palavras e a realidade, essa brecha inevitável diante de todas as limitações do conhecimento humano perante a complexidade e o mistério do mundo. Ao defrontar-se com a grandeza da existência e seus dramas intrincados – a solidão, a finitude, o mal, enfim, todos os pontos que definem os paradoxos do ser -, o autor é inevitavelmente impelido a tomar partido por uma de duas posições que, a bem da verdade, podem ser resumidas no respeito diante do assombro ou uma certa arrogância. A tentativa orgulhosa de aprisionar toda a tensão do real em sistemas abstratos encerrados em si mesmos, ou aceitar com prudência o mistério da realidade e a limitação da linguagem para exprimi-lo, renunciando a uma onipotência artística impossível.

É essa, por exemplo, a escolha de Joseph Conrad, que sabia ser a missão do escritor a de apenas fazer o leitor ver e sentir a voragem do abismo. Ou a de Manuel Bandeira e suas platitudes: “Se há estrelas no céu, refleti-las. / E se os céus se pejam de nuvens, / como o rio, as nuvens são água, / refleti-las também, sem mágoa, / nas profundidades tranqüilas”. E também a de Shakespeare, que levava às últimas conseqüências a lição de Hamlet à companhia de atores:

 

“[…] qualquer coisa exagerada foge ao propósito de representação, cujo fim, tanto no princípio como agora, era, e é, oferecer um espelho à natureza; mostrar à virtude seus próprios traços, ao ridículo sua própria imagem, e à própria idade e ao corpo dos tempos sua forma e aparência” (Hamlet, Ato 3, cena 2, 19-24; trad. Anna Amélia Carneiro de Mendonça).

 

Se ao artista é mesmo exigida uma posição firme frente à realidade que pretende retratar, o verdadeiro criador – de Dante a Bach a Turner – é exatamente aquele que toma o mistério da existência como a sua premissa mais importante. Mário Ferreira dos Santos dizia que no sublime há sempre algo de misterioso, algo que infunde na alma temor e beatitude. E se – em seu impulso à eternidade – a grande arte busca o belo e o sublime, ela precisa necessariamente conter, ainda que de maneira subjacente, os fundamentos transcendentes do ser.

Por outro lado, a exigência de que se tenha como princípio estético esse assombro perante as tessituras da realidade de maneira alguma equivale à defesa de uma arte estritamente religiosa. O exemplo da pintura holandesa – o insight é de Hegel, na Estética – é bastante esclarecedor, porque, embora a arte flamenga do Século de Ouro estivesse completamente inserida no contexto do calvinismo e do horror à representação de imagens sagradas, ela ainda assim se assentava sobre uma base metafísica. É notável verificar como mesmo aqueles temas profanos – as paisagens, as naturezas-mortas, todas as cenas do quotidiano – estão sempre ancorados em luzes e cores de uma visão de mundo transcendente, nesse profundo respeito pelo mistério da existência, o inesauribile segreto de que falam Ungaretti (“Ali chega o poeta / e depois regressa à luz com seus cantos / e os dispersa / Desta poesia / me sobra / aquele nada / de inesgotável segredo“; trad. Geraldo Holanda Cavalcanti) e o Drummond de Claro Enigma.

Na longa história da literatura, as grandes obras foram sempre construídas sobre esses pilares metafísicos da realidade, mas não muitos autores fizeram do próprio mistério do mundo o seu projeto, como de maneira universal o fez Franz Kafka. Dirigindo a luz da literatura para os recantos mais escuros e insondáveis da natureza humana, ele de fato não apenas tomava os fundamentos transcendentes do mundo como sua premissa estética. Muito além, Kafka fez do mistério o seu tema central. E o resultado, como nos diz Borges, são parábolas sobre a relação moral do indivíduo com a divindade e o universo, uma obra feita de fábulas terríveis que retratam em fragmentos toda a agonia da existência.

O peso desse mistério existencial foi mesmo a constante que acompanhou Kafka durante a vida inteira. Na Carta ao pai (1919), é ele próprio quem diz: “Desde que comecei a pensar, tive uma preocupação com a afirmação espiritual da minha existência que tudo o mais me foi indiferente” [1]. De fato, tudo o mais lhe foi indiferente, e essa preocupação – com todos os assombros de estilo – acabou refletida inteiramente na obra que Kafka se propôs a construir. Ele costumava dizer que havia passado o tempo a escrever e representar os seus piores pesadelos, de maneira que “não sobrou muito da vida”.

Vida que enfim lhe foi curta e relativamente sem emoções: nascido em Praga, no verão de 1883, Kafka passou ali quase toda a existência. Formou-se em direito e trabalhou como advogado para algumas companhias de seguro, utilizando todo o tempo livre – que incluía temporadas de convalescença devidas à tuberculose que viria a matá-lo – para escrever. Sentia-se terrivelmente oprimido em sua relação com o pai, que desprezava o ofício de escritor e a literatura como um todo. Embora tenha chegado a envolver-se com algumas mulheres, havendo inclusive frustrado dois noivados com Felice Bauer, Kafka nunca se casou e acabou morrendo aos quarenta anos, em um sanatório nos arredores de Viena.

A obra de Franz Kafka é composta de fragmentos móveis e colagens, à maneira justa e dolorosa dos paradoxos que percebia na realidade. São contos, novelas e romances que – em um estilo transparente lapidado nas leituras de Flaubert, Swift e das Sagradas Escrituras – retratam o respeito pelo mistério do mundo e todo o assombro da existência.

Se de um modo ou de outro toda arte tem pretensão ao realismo, Kafka buscava representar em formas novas essa realidade psíquica do espírito atormentado e espantado pelo mistério. As atmosferas criadas em sua obra remetem a terras devastadas, campos estéreis de inverno, labirintos burocráticos, catedrais arquitetonicamente incorretas e aldeias isoladas, perdidas na neve. Do mesmo modo, cada personagem é sempre construído conforme o plano de um intermediário com o inefável em suas formas mais terríveis: o mal e a culpa. Por isso talvez seja mesmo impossível amar um personagem de Kafka. São anti-heróis burocratas, agrimensores e caixeiros-viajantes por quem experimentamos às vezes – e no máximo – uma certa pena, mas é só.

A verdade é que, para retratar a face mais terrível da realidade, Kafka renunciou a uma arte que buscasse o belo e atirou-se de cabeça a uma representação do sublime, tal como o entendia Edmund Burke, em seu A Philosophical Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, de 1757: aquele delight fundado no terror que despertam em nós a vastidão e o infinito, o atributo artístico psicológico que infunde no receptor uma sensação de terror, aliada entretanto à margem de segurança da consciência serena de que, na realidade, não se está a correr perigo algum. É essa, por exemplo, a experiência que nos marca quando lemos em Melville a descrição da batalha travada entre Ahab e Moby Dick. Kafka, porém, levou essa empreitada da representação do sublime às últimas conseqüências. Porque, em suas obras, o horror não apresenta margem de segurança alguma. Muito ao contrário, faz aflorar a consciência assustadora de que o perigo está sempre à espreita e é inerente à existência humana.

As imagens simbólicas e transcendentes permeiam toda a obra de Franz Kafka, e –
ao contrário do que se poderia supor -, seus escritos não deixam de ser uma afirmação de fé e esperança. A angústia metafísica não é desespero. No melhor estilo do que propõe Kierkegaard, ela é apenas a conseqüência da fé difícil que vem de uma agonia. Em um aforismo famoso, Kafka dizia que “a fé é como uma guilhotina, tão leve, tão pesada”. Mas o fato é que este ato kafkiano de fé não propõe modelos ou algum tipo de resposta exata: é de certa forma uma abstenção, uma suspension of disbelief elevada à segunda potência, nos limiares da sanidade. Em muitos momentos, o respeito que ele demonstra pelo mistério toma mesmo ares de uma completa incomunicabilidade [2], que, entretanto, a sua grandeza espiritual não seria nunca capaz de conceber.

Kafka era um judeu heterodoxo – “às portas de um cristianismo em que é incapaz de entrar”, segundo Otto Maria Carpeaux – e que, em todo caso, sentia-se incapaz de dar uma resposta a certas perguntas da existência. Pelo que enfim devemos agradecer imensamente. Tolstoi foi irrelevante quando se propôs a fundar uma nova religião e passou a escrever fábulas de um cristianismo água-com-açúcar. Franz Kafka nunca teve pretensão semelhante. Para ele, as possibilidades deixadas em aberto representam sempre uma recusa consciente.

Mário Ferreira dos Santos dizia que a unidade do verdadeiro artista está no fato de que a transposição de cada limite e de cada fronteira não implica jamais um salto no abismo, mas sempre uma preparação para a transfiguração. Que em Kafka nunca vem – e não por perversão ou niilismo. O anti-clímax e a ausência de redenção refletem justamente essa renúncia de Kafka a pretender resolver artisticamente os paradoxos do ser. Mas também não era um pessimista, pois sabia que, apesar das sombras, do peso da culpa e do mal no mundo, há sempre a esperança em algo além. Kafka nos traça uma janela apavorante no mais das vezes, mas verdadeiramente aberta ao infinito.

Franz Kafka realmente não pretendia explicar o mundo por meio da literatura e, a bem da verdade, parecia possuir um verdadeiro terror de que os leitores o tomassem – e a sua obra – como fio condutor para o que quer que fosse. E talvez tenha sido justamente esse repúdio por um papel sagrado – que efetivamente não lhe podia pertencer – o motivo pelo qual pediu que os seus escritos fossem queimados pelo amigo e testamenteiro Max Brod, no que foi sabidamente desobedecido. Em um pequeno conto das Narrativas do espólio (1914-1924), é inevitável pensar em Kafka como o guarda que, ao ser consultado por alguém sobre direções e caminhos a serem tomados, responde: “De mim você quer saber o caminho? Desista, desista”. E podemos ler no mesmo contexto as últimas linhas do conto “Uma folha antiga”, de Um médico rural (1919): “A nós, artesãos e comerciantes, foi confiada a salvação da pátria; mas não estamos à altura de uma tarefa dessas, nem jamais nos vangloriamos de estar. É um equívoco e por causa dele vamos nos arruinar”.

Do escritor não se deve mesmo exigir nada além de sílabas secas como um ramo. Porque a arte em si não redime nada, não pode salvar ninguém. A narração e a memória podem perpetuar tanto a luz da salvação quanto a treva da mais terrível perdição. É exatamente a questão que Ian McEwan propõe em Reparação: “Como pode um romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua imaginação, ela determina os limites e as condições” (trad. Paulo Henriques Britto). McEwan conta o caminho da expiação de uma culpa antiga por meio da literatura e a sua conclusão é o desespero, o reconhecimento tardio de que “desde o início a tarefa era inviável”. Em uma cena famosa de A metamorfose (1912) – considerada por muitos como a obra-prima de Kafka -, Gregor Samsa é atraído à sala de estar pela música do violino tocado por sua irmã e, arrastando-se sob a forma de um inseto asqueroso, quer ser redimido de sua condição pelo belo e pela identificação com aquilo que nos torna homens. E é na frustração e no anti-clímax desse objetivo que somos mais uma vez confrontados com a verdade dura de que, se a arte humaniza e civiliza, em última análise não salva ninguém.

O mistério da salvação foi um tema muito caro a Kafka. Em duas de suas obras principais, O Processo (1914) e O Castelo (1922), a questão é vista sob pontos de vista diametralmente opostos, mas complementares. A primeira – O Processo – conta a trilha circular de Josef K., “detido sem ter feito mal algum”, e que passa a buscar os motivos desse processo ao mesmo tempo em que tenta ser absolvido das acusações feitas por um tribunal insondável. Kafka dizia que o Juízo Final é uma corte marcial permanente, e é justamente essa realidade transcendente que ele parece querer retratar nos fragmentos de O Processo: a sombria noção de um pecado original talvez irremissível e de uma divindade de quem muito pouco ou quase nada se pode saber. A impressão que temos é a de que o mal percebido por ele é tão grande que a própria idéia de salvação lhe parece bastante improvável. E Josef K. revolta-se: “Não há dúvida de que por trás de todas as manifestações deste tribunal […] se encontra uma grande organização. […]. E que sentido tem essa grande organização, meus senhores? Consiste em prender pessoas inocentes e mover contra elas processos absurdos e na maioria das vezes infrutíferos, como no meu caso. Diante dessa falta de sentido do conjunto, como evitar a pior das corrupções entre os funcionários? É impossível, nem o supremo magistrado teria êxito”.

Por outro lado, há a perspectiva da personagem Leni, uma mulher lá não muito casta, por assim dizer, mas que aponta o caminho para Josef K.: “Por favor, não pergunte nomes, mas corrija os seus erros, não seja mais tão inflexível, contra esse tribunal não é possível se defender, é preciso fazer uma confissão. Na próxima oportunidade, faça essa confissão. Só aí existe a possibilidade de escapar – só aí. No entanto, mesmo isso não é possível sem ajuda externa”. Reconhecer a própria miséria, humilhar-se e talvez contar com a ajuda da graça divina, mas Kafka não parece admitir esse socorro gratuito com muita facilidade. E Josef K. também não parece muito empenhado em acatar o conselho de Leni e empreender qualquer tentativa de auto-conhecimento de suas próprias faltas, preferindo investigar os motivos externos que poderiam ter originado o seu processo. A questão da culpa e da necessidade de uma autoconsciência das próprias falhas humanas já havia sido tratada como tema central da pequena obra-prima Na colônia penal (1914), sobre a máquina terrível que usa uma espécie de rastelo para imprimir o castigo das sentenças no corpo dos condenados.

De uma forma ou de outra, Kafka faz do percurso individual a única possibilidade de salvação. Em O Processo, ele diz: “Nada que seja comum pode se impor contra o tribunal. Cada caso é examinado em si mesmo, é o tribunal mais cauteloso que existe. Portanto, não se pode obter nada numa ação conjunta, só um indivíduo isolado às vezes alcança alguma coisa em segredo – e só quando o alcança é que os outros ficam sabendo; ninguém sabe como aconteceu”. É o mesmo ponto de vista mostrado no conto “Diante da Lei”, de Um médico rural – também uma parábola incorporada a O Processo -, em que existe uma única porta e via de salvação para cada indivíduo. E as perspectivas de alcançá-la não parecem nada boas. No final, a morte de Josef K. – “como um cachorro” – reforça a consciência de que, embora a existência e a salvação sejam um mistério a que aspiramos em nossa condição humana caída, não podemos obter todas as respostas. E nem Kafka se propõe a fornecê-las.

Se em O Processo esse mistério da salvação é apresentado sob uma perspectiva “de cima para baixo”, O Castelo inverte completamente as premissas e coloca a questão sob uma ótica oposta. Otto Maria Carpeaux dizia que O Processo narra o processo de Deus contra o Homem, ao passo que em O Castelo, ao inverso, é o Homem quem move um processo contra Deus. O romance conta a história de K., o agrimensor que chega no meio da noite a uma aldeia isolada e envolta pela neve e a névoa escura. Aparentemente contratado pelo conde do lugar, ele passa então a buscar a sua admissão no Castelo – repetida e sumariamente recusada – e é confrontado com uma infinidade de situações absurdas, entre a inacessibilidade das autoridades oficiais e a contradição que reina entre todas as suas ordens. K. persiste e persegue obsessivamente as respostas que não lhe podem ser dadas. A história é uma narração épica e metafísica do homem em busca de sentido, em busca da salvação. E a atmosfera em que o enredo se dá é idêntica a de um daqueles pesadelos terríveis em que tentamos chegar a certo lugar sem nunca conseguir. Borges comparava o drama kafkiano de O Castelo a uma renovação literária do famoso paradoxo de Zenão de Eléia: a flecha não pode jamais alcançar o seu alvo porque precisa antes passar por sucessivos pontos intermediários ad infinitum.

Kafka costumava dizer que por impaciência fomos expulsos do Paraíso e também por impaciência é que não chegamos à vida eterna. Porque a impaciência conduz ao desespero. E o desespero está sempre a rondar o agrimensor K., em O Castelo: “Certamente essa permanência e essa espera inúteis, dia após dia, que sempre se renovam sem qualquer perspectiva de mudança, que esmagam, tornam a pessoa incerta e, no final, até mesmo incapaz para qualquer outra coisa que não seja esse ficar sem fazer nada desesperado”. A tentação da angústia é transformar-se em desespero. Daí a importância dessa paciência que vem de uma fortaleza sobrenatural. Kierkegaard afirmava que, ao contrário da justiça e da coragem, a paciência é a virtude mais difícil de retratar e simbolizar poeticamente. O insight é interessante e Kafka talvez tenha conseguido esse prodígio na representação da perseverança de K.
em suas andanças perdidas entre borrascas de inverno e os becos sem saída que nunca o levam ao Castelo. E essa paciência vem-lhe da certeza de uma vocação insondável: afinal, “o que poderia ter me atraído para este lugar ermo se não fosse o desejo de permanecer aqui?”

Mas a perseverança de K. tem algo também de diabólico, da justificação auto-suficiente e a qualquer custo pelas próprias obras – à mesma maneira descrita em O Processo -, sem recurso à graça divina ou sequer aceitação da sua possibilidade. K. pretende alcançar o Castelo exclusivamente por seus méritos, mesmo porque não lhe parece haver outra hipótese possível. As tribulações do caminho representam para ele a certeza do abandono definitivo de um deus absconditus, e é confrontando essa impressão que a personagem Olga lhe diz: “Existem obstáculos, pontos discutíveis, decepções, mas isso significa apenas aquilo que já sabíamos antes, que nada será dado de presente a você”.

Apenas nas últimas e inacabadas páginas do romance é que K. toma consciência dessa impossibilidade de extorquir a salvação a fórceps. No diálogo final, ele percebe enfim que as suas tentativas de chegar ao Castelo com mãos de ferro são “como se nós dois tivéssemos nos empenhado muito, com bastante ruído, infantilmente demais, inexperientes demais, para alcançar algo que, por exemplo, com a tranqüilidade, a objetividade de Frieda, tivesse sido fácil de ganhar, fácil e imperceptivelmente; como se esperássemos obtê-lo através do choro, arranhando, puxando, à maneira de uma criança que puxa a toalha da mesa mas não consegue nada, apenas põe abaixo todo o esplendor exposto e o torna inacessível para sempre”. A tentativa empreendida durante toda a história de alcançar o Castelo à força é a perdição de K. Ao fazê-la, torna as portas do Paraíso inacessíveis para sempre. “Quem quiser salvar a sua vida, a perderá”, diz o Evangelho. A perseverança de K. era, desde o início, apenas um anúncio do seu fracasso.

O universo de Kafka é feito exatamente dos paradoxos e vielas obscuras que infundem no leitor essa perplexidade frente à verdade exposta de que certas coisas simplesmente não podemos conhecer. A realidade é misteriosa e a literatura de Franz Kafka espelha os fragmentos desse mistério, o terror de nossas limitações em face de toda a vastidão que envolve a existência humana. Em um grande ensaio, Samuel Johnson conta a lenda do monarca oriental que possuía um empregado apenas para lembrá-lo de sua mortalidade. Todas as manhãs, em determinada hora, o homem gritava: “Remember, prince, that thou shalt die“. A obra de Kafka é esse oficial de plantão, lembrando-nos a cada momento do mistério que circunda cada vão de nossas misérias. E, diante disso, o impulso que nos assalta é o de repetir-lhe o que sussurra ao médico o paciente do conto Um médico rural, no livro homônimo: “Em vez de me socorrer, está tornando mais estreito o meu leito de morte”. Franz Kafka não queria socorrer ninguém. Ele não podia socorrer ninguém. E a verdade é que autor nenhum pode. Olhando de frente o mistério do mundo e todos os seus abismos, Kafka segue à risca os versos de Montale e oferece apenas as sílabas torcidas e secas que tornam mais estreito e incômodo esse nosso leito de dor.

 

Rodrigo Scalamandré Duarte Garcia, poeta, escritor e ensaísta, é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e trabalha como advogado em São Paulo.

 

 


 

[1] Todas as transcrições da obra de Kafka remetem aqui às traduções de Modesto Carone ao português, nas edições da Companhia das Letras.

 

[2] No pequeno conto “O novo advogado”, de Um médico rural (1919), o narrador afirma: “mas ninguém, ninguém, sabe guiar até a Índia. Já naquela época as portas da Índia eram inalcançáveis, mas a direção delas estava assinalada pela espada do rei. Hoje as portas estão deslocadas para um lugar completamente diferente, mais longe e mais alto; ninguém mostra a direção; muitos seguram espadas, mas só para brandi-las; e o olhar que quer segui-las se confunde”.

 

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