Max, meu amor

Max, meu amor
Max, meu amor

Por Paulo Ricardo de Almeida

Oppenheimer, Ophüls, Opuls

Max Oppenheimer nasceu em Saarbrücken, Alemanha, em 6 de maio de 1902. Com o nome de Max Ophüls, dirigiu Dann schon lieber Lebertran (“Se é assim, prefiro, óleo de fígado”) e Die verliebte Firma (“A empresa apaixonada”), em 1931. Dois anos depois, obteve reconhecimento com o sucesso de Liebelei (“Namorico”), adaptação de Arthur Schnitzler. Judeu, emigrou para a França em 1933, devido à ascensão de Hitler, também filmando na Itália e na Holanda. A invasão nazista forçou-o ao exílio nos EUA, onde, em 1947, levou a cabo sua primeira produção em Hollywood, The Exile.

Da alta produtividade européia – La signora di tutti (1934), Divine (1935), Valse brillante de Chopin (1936), La tendre ennemie (1936), Ave Maria (1936), Komedie om Geld (“Comédia sobre dinheiro”, 1937), Yoshiwara (1937), Werther (1938), Sans lendemain (“Sem amanhã”, 1939), L’école des femmes (1939), De Mayerling à Sarajevo (1940) -, passou para apenas quatro filmes nos EUA – The Exile (1947), Letter from an Unknown Woman (“Carta de uma desconhecida”, 1948), The Reckless Moment (1949) e Caught (1949) -. Ali passou a assinar Max Opuls, a fim de evitar que a verdadeira família Ophüls (da nobreza germânica) o processasse pelo “empréstimo”. Longe de se irritarem, porém, os Ophüls mostraram-se encantados e permitiram que Oppenheimer adotasse o nome da família.

De volta à França na década de 50, realizou La ronde (1950), Le plaisir (1952), Madame de… (“Desejos proibidos”, 1953) e Lola Montés (1955), cujas características influenciaram Stanley Kubrick, Jean-Luc Godard e Jacques Demy: movimentação de câmera em elaborados planos-seqüência; mudanças nas pessoas do discurso (dentro do mesmo plano); narradores que interferem na história e a determinam; heroínas que se valem da própria fragilidade para manipular os espectadores; o carrossel, o picadeiro e a narrativa circular como metáforas da sociedade lúdica que violenta os personagens; a impossibilidade de sentimentos reais em um mundo no qual todos representam; as marcas que o passado deixa como herança…

Nos últimos anos, lutou pela manutenção do corte original de Lola Montés, mas não teve êxito e o filme permaneceu mutilado. Faleceu em Hamburgo, em 25 de março de 1957, quando preparava Os amantes de Montparnasse, que Jacques Becker realizou no ano seguinte.

 

 

Os movimentos de câmera

 

Ophüls confessou que usava planos-seqüência por não compreender a direção invisível, que mantém o eixo do campo/contracampo a fim de transmitir a ilusão da continuidade espaço-temporal; os seus travellings serviam para reconfigurar e confundir as pessoas do discurso e torná-las indistintas, de cena para cena e no interior de cada plano. O cinema clássico-narrativo alterna o olhar objetivo sobre a ação (terceira pessoa) com as impressões dos personagens sobre os acontecimentos (primeira pessoa) através do plano ponto-de-vista. Ora, em The Reckless Moment, na seqüência em que Lucia Harper (Joan Bennett) arrasta o cadáver do amante de sua filha pela praia, Max Ophüls mostra pleno domínio desse código que dizia não entender: o cineasta introduz cortes que apresentam planos ponto-de-vista da heroína, que observa ambos os lados para verificar se não há testemunhas que a possam incriminar. Desvia assim a câmera do fato principal (Lucia arrastando o corpo – terceira pessoa), rumo ao potencial dramático que existe na cena (serei descoberta? – primeira pessoa).

No entanto, Ophüls prefere o travelling ao corte, visto que o movimento de câmera lhe permite indeterminar as pessoas do discurso, ao contrário do plano ponto-de-vista, que as separa.  Em O prazer, a câmera primeiro acompanha Joséphine (Simone Simon), para em seguida, supostamente, assumir seu olhar enquanto ela sobe as escadas – mas as sombras nas paredes denunciam a falta de correspondência entre o corpo e a objetiva. Quando Francisco Ferdinando (John Lodge) recebe a esposa Sophie (Edwige Feuillère) no trem, em De Mayerling à Sarajevo, o ponto-de-vista se torna impessoal no momento em que o personagem avança de fora para dentro do quadro. Em Desejos proibidos, na cena de abertura, Louise de… (Danielle Darrieux) está dissociada da lente que a substituiria, impossibilitando distinguir se o monólogo ocorre de fato ou em pensamento. Em Liebelei, o plano estático que representa o olhar por trás das cortinas transforma-se no travelling que avança sobre a platéia que assiste à peça.

Ophüls trabalha com a confusão dos pontos-de-vista para instaurar o discurso indireto livre na narrativa: adaptou Arthur Schnitzler (Liebelei e La ronde) e Stefan Zweig (Carta de uma desconhecida). Para o cineasta, importantes são os afetos despertados nos personagens; as impressões que eles nutrem pelo que lhes ocorre; a tirania do passado sobre o presente; sonhos de relacionamentos que se desfazem; acasos contra os quais não há escapatória. Realidade, fantasia, encenação e farsa que se misturam nas heroínas ophülsianas…

 

 

As heroínas de Max Ophüls

 

“Um monstro sanguinário com olhos de anjo”: a definição de Lola Montés vale para todas as heroínas de Max Ophüls, uma vez que a fome por relacionamentos as leva a devorar os espectadores e os personagens que as cercam.

Lola Montés (Martine Carol) termina encarcerada, enquanto a platéia dentro do filme avança a fim de lhe beijar a mão. Público que representa os espectadores que observam na sala de cinema – espetáculo circense da narrativa que se funde ao próprio filme enquanto espetáculo. Não somos nós, contudo, que nos excitamos ao ver os personagens, mas eles que se exibem para quem lhes possa suprir a carência sentimental de que padecem, revelando ou ocultando de acordo com a manipulação tencionada.

São heroínas possessivas e egoístas, que controlam através da compaixão que provocam. Personagens melodramáticas conscientes de seus atos, e que os executam intencionalmente. Masoquistas por opção, sacrificam a felicidade para se refugiarem em devaneios românticos, enquanto destroem o fetiche que escolheram para amar.

Lola Montés provoca a revolução que derruba Ludwig I (Anton Walbrook) e, embora possa seguir com o estudante que a ajudou na fuga da Baviera, prefere abdicar do amor e remoer lembranças amargas. Christine (Magda Schneider) suicida-se em Liebelei porque o namorado era amante de outra mulher antes de conhecê-la. Babs (Edwige Feuillère), em Sem amanhã, sofre como estratégia de chantagem. Louise de…, em Desejos proibidos, dá esperanças a seus admiradores e conduz o marido e o amante ao duelo mortal.

A representação direta do abandono afetivo das heroínas ophülsianas ocorre em um homem: Smith Ohlrig (Robert Ryan), de Caught, sofre do coração quando não obtém o carinho desejado. Em Caught e em The Reckless Moment, os personagens masculinos assumem os papéis que Ophüls reserva às mulheres, de modo que Martin Donnelly (James Mason), embora saiba que não terá o amor de Lucia, mata o sócio e incrimina-se pelo assassinato que originou a chantagem, a fim de protegê-la. Mas, de todas as protagonistas, é a Lisa (Joan Fontaine) de Carta de uma desconhecida quem melhor se vitimiza para exercer sua força sobre aquele que ama, o músico Stefan Brand (Louis Jordan).

“Ao ler esta carta, eu já estarei morta”: a carta que a heroína escreve ao pianista estabelece a relação de poder que atravessa o filme. Em Carta de uma desconhecida, Lisa é a onipotente e onipresente narradora – cujo ponto de vista impera, distorcendo os acontecimentos para adequá-los aos próprios desejos -, ao passo que Stefan funciona como objeto de fetiche, refém da fantasia romântica que ela oferece em troca da compaixão do espectador.

Ophüls representa a assimetria entre Lisa e Stefan através das formas opostas com que a câmera revela os ambientes. Se, com Lisa, a câmera respeita os limites dos espaços (detendo-se no exterior do apartamento do músico, onde a heroína entra às escondidas), ao apresentar Stefan ela move-se com desenvoltura. É fundamental à narradora Lisa, em busca do amor do público, que a personagem Lisa tenha dificuldade para se aproximar do amado e que Stefan não a enxergue, embora seja em aparência senhor de si. Enquanto para Lisa Stefan é único, para Stefan Lisa é “mais uma”: ela se torna vítima e ele, carrasco, invertendo-se os papéis.

Ao se reencontrarem na ópera, Stefan, o prodígio de outrora que desperdiçou a carreira, não a reconhece: Lisa continua mais uma amante entre as várias que o pianista colecionou. Mas ela não era capaz de ler os pensamentos do amado? Lisa poderia declarar-se, mas não o faz – para conseguir a identificação do espectador, precisa alimentar o sofrimento em que está mergulhada.

Lisa, translúcida, vê Stefan rumar para o duelo contra o marido. Carta de uma desconhecida é um filme de fantasmas, narrado por um cadáver: o músico que vagou sem sentido durante a vida, a heroína que perseguiu o amor que lhe foi retribuído por breves momentos. A vitória final cabe a Lisa, pois Stefan não poderá esquecê-la: é a morte como ato derradeiro de poder sobre quem se ama.

 

 

O carrossel, o picadeiro e a narrativa
circular

 

Em Carta de uma desconhecida, Lisa retorna ao apartamento de Stefan e o espera. Quando chega, acompanhado por uma mulher, a câmera se move para representar o ponto de vista de Lisa. Mais tarde, o travelling se repete, mas é Lisa que está junto de Stefan. Quem observa o casal? A câmera revela o olhar fantasmagórico da Lisa narradora, que se vigia depois de morta. Max Ophüls alterna entre o sujeito da enunciação e o do enunciado: o senhor do jogo em La ronde, que se desdobra em vários papéis; ou Guy de Maupassant em O prazer, que se apossa de um dos personagens em “A modelo”.

O senhor do jogo em La ronde (Anton Walbrook) personifica o narrador ophülsiano, que interfere na trama, alterando-a. Ele se questiona sobre a própria identidade e a natureza do espetáculo: teatro ou filme? palco ou set? presente ou passado? Ophüls revela o artifício cinematográfico enquanto seu “raconteur” vaga entre cenários, troca de roupa, invoca o sol e a primavera e canta em frente ao carrossel, pois a narrativa existe por causa daquele que a conta. La ronde inventa o mundo através da farsa orquestrada pelo senhor do jogo, que determina todas as interações entre personagens, as entradas e saídas de cena e assume qualquer papel “por amor à arte do amor”. Casais que giram conforme os ditames do narrador e ao som circular da valsa, materializada no carrossel.

O carrossel se metamorfoseia no picadeiro em Lola Montés. Na estrutura, também circular, o mestre de cerimônias comanda os artistas que encenam a trajetória da cortesã. O espetáculo se inicia com as perguntas da platéia, que acendem as recordações de Lola: o personagem de Peter Ustinov aceita somente a do número de amantes, uma vez que já estava prevista na atração. Dentre os questionamentos possíveis, cabe ao narrador selecionar o interesse específico do público que dará vida à narrativa.

Em Max Ophüls, ao contrário do cinema clássico-narrativo, os personagens se vêem impedidos de reagir, pois há o passado que corrói as emoções através de imagens que retornam – sob a forma de lembranças, da tradição ou da família – e que permanecem no presente. Gaby Doriot (Isa Miranda), em La signora di tutti, recorda amores frustrados que a levam à morte. Ambroise (Jean Galland), em “A máscara”, de O prazer, dança até cair, em busca da juventude perdida, com a máscara que lhe esconde a idade avançada –
homem que se torna caricatura, real que se sujeita à aparência.

Como afirma o general André de… (Charles Boyer), em Desejos proibidos, “não se engane, minha querida, nosso casamento é superficial apenas superficialmente”: o luxo dos cenários, a ironia dos diálogos e a câmera que se movimenta constroem o espaço virtual onde o tempo se dobra sobre os personagens, em que a ficção, o teatro e a aparência suportam o peso da memória. Em La ronde, o conde (Gérárd Philipe) beija a prostituta (Simone Signoret) entre os olhos, depois de achá-la semelhante à outra que conhecera: momento de doçura, quando a mulher atual interpreta a que ecoa nos sentimentos de Philipe.

O passado se cristaliza, em Desejos proibidos, nos brincos de Louise de… A teia de coincidências que abraça as jóias substitui o carrossel em La ronde e o picadeiro em Lola Montés – e, se Ophüls não personifica o “raconteur”, é porque a narrativa de Desejos proibidos anda em círculos, composta por repetições, espelhamentos, idas e vindas, dos quais os personagens não conseguem se libertar. É sintomático que a heroína prometa os brincos a Nossa Senhora, a fim de que o amante sobreviva: somente forças extraordinárias poderão ajudá-los contra a máquina fílmica de Max Ophüls. Porém, a solução divina se revela outra mentira que integra o jogo, uma vez que Deus se encontra sob o tacão do cineasta.

 

 

Ética do amor, ética da imagem

 

A pertinência de Max Ophüls no cinema atual ultrapassa o esmero técnico e a beleza dos movimentos de câmera: ela se refere à ética da imagem e dos relacionamentos.

Com a morte da relação entre Joséphine e Jean (Daniel Gélin) em “A modelo”, de O Prazer, Ophüls indaga sobre os limites do amor: A liberdade deve ser preservada? O outro tem o direito ao contato? Vale sacrificar-se contra a solidão? Por mais que se amem em Acossado, de Jean-Luc Godard, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) e Patricia Franchini (Jean Seberg) não se entendem, e a perda da ética no relacionamento os leva
ao fim trágico.

A ética amorosa ophülsiana é compreendida por Jacques Demy. Se, em Lola, a protagonista (Anouk Aimée) espera o amado, em Os guarda-chuvas do amor, Geneviève o abandona e se casa com outro. Nos dois filmes, é o mesmo personagem – Roland Cassard (Marc Michel) -, que tenta as heroínas: Lola resiste, mantendo-se pura de sentimentos (conquanto prostitua o corpo), ao passo que Geneviève cede e vende a alma ao demônio.

Stanley Kubrick copia o gosto de Ophüls pelos planos-seqüência e pelos travellings, embora o mundo kubrickiano seja mais violento e sarcástico. Contudo, em Glória feita de sangue e em De olhos bem fechados, a ficção se sobrepõe à realidade, pois se no primeiro a guerra de trincheiras se espelha nos palácios, no segundo a Nova York onírica prevalece durante a jornada sexual de Bill Hartford (Tom Cruise). Há ética em imagens que substituem outras, que as falseiam, que se passam por reais? Tornam-se elas simulacros perfeitos, cristais sem pontos de fuga?

Ao falecer prematuramente em 1957, aos 54 anos, Max Ophüls não pôde filmar ao lado da geração que, influenciada por ele, levou adiante os questionamentos sobre o amor, a ética e o papel da imagem e da narrativa no mundo contemporâneo.

 

Paulo Ricardo de Almeida é crítico de cinema da revista eletrônica Moviola.

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