Mundo, pensamento e linguagem

Mundo, pensamento e linguagem
Mundo, pensamento e linguagem

por Luiz Antônio Lindo

A discussão sobre a natureza da linguagem tem um passado tão longo, foi empreendida por tantos homens de ciência e de arte, e de tantos modos diferentes segundo a vontade e as circunstâncias de cada um, que ao examiná-la tem-se a impressão de navegar pelos vastos e vagos horizontes do alto-mar. Nestas circunstâncias, é natural que se escolha algum estudioso em concreto para servir de ponto de referência.

Uma figura fascinante neste sentido é Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848- 1925), considerado um dos fundadores da escola analítica, situado bem na encruzilhada da qual partem a filosofia da linguagem e a lógica modernas, bem como diversas teorias matemáticas. Antes de examinar mais em detalhe algumas das suas idéias, porém, teremos de tentar situá-lo dentro de um esboço de panorama histórico.

Mundo, pensamento e linguagem desde sempre formam um trio; a grande difi culdade encontrada pela filosofia, e que recebeu soluções diversas ao longo da história, consiste em saber como ordenar os vértices desse triângulo na mente, no papel e na realidade.

Com os pensadores do racionalismo iluminista, o “pensamento” reinou soberano na história das idéias, e por um momento pareceu que o mundo cairia no esquecimento, pois o mergulho radical e exclusivo nas nossas potências racionais pretendia fazer dele um mero simulacro. As “idéias claras e distintas” de Descartes foram elevadas ao patamar do conhecimento mais perfeito: formidável era vigiar a minha mente, depurá-la da ganga de obscuridades e lançar-me no infinito da razão especulando e ordenando tudo que penso segundo o critério da melhor idéia.

Era natural, nesse contexto, que a linguagem recebesse pouca atenção e fosse rebaixada a um segundo plano. Era vista como um código, nada mais que expressão do pensamento. A partir do que se conhecia pensando, se falava. A chave da linguagem estaria no conhecimento do que se levava à interlocução, pois se achava que por meio do compartilhamento do código lingüístico seria possível realizar o que a telepatia não conseguia, isto é, a perfeita comunicação do pensamento…

O problema que essa concepção teve de enfrentar mais tarde, e que não passaria despercebido a Frege, foi que distinguia entre a apreensão do conceito e a sua “posterior” expressão na linguagem. Conceito e símbolo codificador eram considerados duas realidades distintas e independentes, que poderiam ser vinculadas arbitrariamente. Era natural, porém, que neste ponto surgisse a dúvida: como seria possível apreender o conceito sem expressá-lo em palavras?

No século XIX, coincidindo mais ou menos com o estudo das línguas orientais na Europa, entre as quais o sânscrito, e o surgimento da filologia, começa a haver uma compreensão por assim dizer mais evolutiva das línguas. “Descobrem-se” o “vernáculo” – para usar essa expressão no sentido de língua mais vulgar ou mais chã -, os dialetos regionais, os contos populares. E passa-se então a entender a linguagem como uma espécie de atividade orgânica, “natural”, que não se explica simplesmente pelos conceitos apreendidos e expressados. A chave do conceito parece já não abrir todas as portas do significado.

O vernáculo é ao mesmo tempo algo mais e algo menos que um mero código conceitual. Algo mais, porque apresenta uma vitalidade e expressividade que faltam ao conceito: por exemplo, mal-entendidos de todo gênero, jogos de palavras, trocadilhos, lapsos, são “rebarbas” significativas ou epistêmicas, e no entanto representam funções lingüísticas legítimas. Algo menos, porém, porque o vernáculo quotidiano, em comparação com o léxico ou a terminologia científica (com a sua correspondência idealmente de “um para um” entre conceito e termo), deixa muito a desejar em precisão expressiva.

No entanto, podia-se ver na língua vulgar o universo mais abrangente da linguagem, dentro do qual a terminologia se elevaria triunfal por estar dotada de uma capacidade semântica superior; considerava-se que o termo científico possuía uma profundidade maior que a do vocábulo trivial por originar-se de um estudo deliberado e detalhado e estar destinado a ser desenvolvido ou validado por meio de comprovações.

Nessa linha de desenvolvimento da filosofia, passou-se portanto a considerar a linguagem como algo que subsistia por si só, de maneira quase independente do pensamento. À medida que se rejeitava a noção de que fosse simples código, e paralelamente se experimentava um crescimento inaudito das ciências experimentais e matemáticas, chegou-se a considerá-la, a ela e não ao pensamento, veículo essencial para o conhecimento do mundo. Se no racionalismo pensamento e linguagem se opunham a um mundo evanescente, agora mundo e linguagem por assim dizer se opunham ao pensamento, ou ao menos o condicionavam.

Com Frege nasce uma nova tentativa, que será rica em resultados, de integrar o mundo e a ciência através da lógica, mais exatamente de uma linguagem lógica concebida nos moldes da characteristica universalis de Leibniz. Essa tentativa, que seria levada adiante por Bertrand Russell nos Principia mathematica e por Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus, pretendia aprimorar os meios de prova nas ciências e inspirava-se na função organizadora da matemática e no seu poder de unificar o conhecimento. Representou a criação de uma nova lógica, que formulava em linguagem matemática a lógica proposicional de Aristóteles e dos estóicos, levando-a adiante, tornando-a mais precisa e abrindo-lhe alguns campos inteiramente novos.

Como geralmente se dá nessas descobertas que abrem novas perspectivas, Frege não se opôs simplesmente aos conceitos que vigoravam no seu tempo, mas realizou uma nova síntese que integrava tanto a noção da linguagem como código quanto a sua compreensão como entidade por assim dizer “independente” do pensamento. A racionalidade do pensamento, desde os primórdios da invenção grega do pensar por teses, era encarada na filosofia e nas ciências como a base de todo progresso. A partir de Galileu e Newton, encontrou um grande aliado na matemática: a quantificação cada vez mais precisa das medidas e a matematização crescente dos conceitos científicos permitia confirmar ou descartar as hipóteses dedutivas ou intuitivas; ao mesmo tempo, as diversas notações matemáticas constituíam por assim dizer autênticas “línguas”, essas sim conformes com a concepção da linguagem como código.

Frege, que tinha tido uma formação predominantemente matemática, geométrica e científica, como vimos, voltou-se muito cedo para o campo das relações entre a matemática e a lógica. Na sua Begriffsschrift (“Escrito sobre os conceitos”), de 1879, voltou-se para a análise lógica da indução matemática, pois tinha a intenção de provar que a matemática nascia da lógica. Já esta obra de juventude foi considerada o ponto de inflexão na história dessa disciplina.

Nas Grundlagen der Arithmetik (¨Fundações da aritmética”), de 1884/1890, trata do conceito de número. Na Introdução dessa obra, formulou três princípios que se mostrariam fundamentais tanto para o desenvolvimento da filosofia da linguagem como da lógica:

– sempre distinguir claramente o psicológico do lógico, o subjetivo do objetivo;

– nunca perguntar pelo sentido de uma palavra isolada, mas apenas no contexto de uma proposição (é o chamado “princípio do contexto”); e

– nunca perder de vista a distinção entre conceito e objeto (Begriff e Gegenstand).

O primeiro será retomado e trabalhado por Popper, e servirá para refutar o psicologismo de Freud e outros autores, que viam no pensamento unicamente uma função de processos mentais mecânicos ou químicos ocorridos no cérebro ou sistema nervoso, como se não houvesse um conteúdo nesse pensamento. Em essência, se a própria noção de que o pensamento se explica inteiramente por esses processos fosse verdadeira, seria ela mesma resultado desses processos, e o seu conteúdo seria inválido.

Em filosofia da linguagem, a distinção entre psicologia e lógica resguarda uma percepção antiga mas fundamental: que o conceito, aquilo que a linguagem transmite e é objeto ou conteúdo do pensamento, é algo essencialmente distinto de um mero processo psicológico físico-químico; que na linguagem se cruzam, quase se poderia dizer, duas dimensões de ser.

O segundo, o princípio do contexto, diz que o significado duma palavra deve ser procurado no contexto duma proposição e não isoladamente. Contrariamente, o sentido completo de uma proposição não é simplesmente a soma dos sentidos dos termos que a compõem. Uma proposição qualquer, como por exemplo “Fulano é um gênio”, significa uma coisa quando usada apenas de maneira afirmativa e praticamente o contrário quando usada de maneira irônica; é preciso levar em conta o contexto lingüístico e extralingüístico, que inclui o tom de voz, as intenções do falante etc.

O terceiro princípio retoma o antigo tema da distinção entre o singular (objeto) e o universal (conceito), que já tinha sido abordado pela filosofia medieval na oposição entre haecceitas (literalmente “istidade”, o fato de ser isto) e quidditas (literalmente “oqueidade”, aquilo que define o que uma coisa é). Frege define o objeto, logicamente, como um nome próprio ou um termo geral acompanhado de artigo definido; e o conceito como um termo geral apenas (com ou sem pronome indefinido). Não deixou, porém, de dar-se conta que isso conduz a “estranhezas” lingüísticas, que exemplifica com a frase “o conceito ‘cavalo’ não é um conceito, ao passo que a cidade de Berlim é uma cidade”: este conceito, individualmente, é segundo a sua definição um objeto singular.

Frege elaborou toda uma notação que reunisse lógica e linguagem, à semelhança das notações matemáticas. Neste campo, porém, o seu código não foi levado para a frente, sendo substituído pela notação mais simples e funcional de Russel e Whitehead.

Em 1892, Frege publicou um artigo que talvez represente o principal marco miliar que lançou: Über Sinn und Bedeutung (“Sobre o sentido e a referência”). A tese central amplia o trabalho iniciado com a distinção entre conceito e objeto, indicando que há dois aspectos diferentes do significado de toda expressão, quer se trate de nomes próprios, de locuções ou sentenças completas. Nesse ensaio, Frege afirma que uma expressão “exprime o seu sentido” e “representa ou designa [aponta para] a sua referência”. Bedeutung, no caso de nomes próprios, indica o portador do nome, o objeto que representa (a pessoa que se chamava, por exemplo, “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac”); Sinn aquilo a que chama o “modo de apresentação” do objeto (no caso, “poeta parnasiano”).

Essa distinção refuta a tese literalista de John Stuart Mill que negava qualquer significado a um nome próprio além do objeto a que se refere (no caso, a pessoa de Olavo Bilac). A principal objeção levantada por Frege reside em que, se fosse assim, as duas expressões “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac” e “poeta parnasiano”, pelo princípio da identidade (a = b), deveriam significar precisamente a mesma coisa, o que claramente não acontece. Como os distintos sentidos podem ser comunicados, o sentido é algo objetivo, não uma mera atribuição subjetiva individual.

Juntamente com a de conceito / objeto, esta distinção funda consistentemente uma ontologia racional que estende o seu alcance sobre o próprio mundo. Os grandes racionalistas como Hegel e Kant tinham absorvido o mundo, realidade extramental, na realidade intramental ou pensamento; depois de Frege, Russel, o último Wittgenstein (não o primeiro, do Tractatus) e, em um plano diferente, Gadamer, tentarão novamente dissolvê-lo no conjunto lógica e linguagem, estabelecendo a concepção da linguagem como mero instrumento da práxis humana. Mas nenhum deles consegue explicar de maneira satisfatória que possa haver diversos sentidos com a mesma referência, isto é, objetos exteriores independentes do nosso conhecimento. Frege recoloca o mundo na ordem das considerações epistemológicas e metafísicas, e além disso o faz relacionando-o diretamente com a linguagem.

Em termos de uma teoria ontológica da verdade, essa análise da linguagem presta serviços inestimáveis. Frege partiu dos números que, como sabia a partir da sua formação científica e matemática, estão plenamente representados na estrutura física do mundo (como o revelam quer os métodos de validar os achados científicos, quer os processos de elaboração das obras tecnológicas, em que o cálculo subjaz fundamentalmente), e chegou à descoberta de que o nome próprio condivide com o número essa relação intrínseca com a realidade, revelada por uma teoria da significação que estabelece um elo entre a língua natural e a lógica.

Com relação às teorias da linguagem como entidade “orgânica” independente do pensamento, Frege mostrou como há uma epistemologia e uma lógica que subjazem à significação, e com isso reintroduziu o pensamento na linguagem, ao menos como pólo da conceitualização. Mundo, pensamento e linguagem revelam-se firmemente unidos, mas cada qual estabelecido por direito próprio num âmbito seu.

 

Luiz Antônio Lindo é Doutor em Letras Clássicas pela USP. Leciona Filologia Românica e História Social na FFLCH-USP, e é organizador da Semana de Filologia da USP.

 

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