O primeiro discurso

 

Por Samuel Johnson

Se houver tempo, e ouvirdes com calma a razão,
Explicarei por que é preferível percorrer o campo
Pelo qual o grande filho de Aurunca tocou os seus cavalos.

Juvenal

Por que estender-me em campo tão batido,
Por que manejar armas tantas vezes usadas em vão?
Se o tempo o permitir, e a imparcialidade me prestar atenção,
Este ensaio talvez vos ofereça alguma resposta.

Elphinston

A dificuldade do primeiro discurso em qualquer nova ocasião é experimentada por todo o homem nas suas relações com o mundo, e confessada pelas formas fixas e regulares de saudação que a necessidade introduziu em todas as línguas. Pesava sobre o critério a perplexidade de ser ver obrigado a fazer escolhas ali onde não via motivo para preferências, e assim considerou conveniente estabelecer algum método fácil de introduzir os assuntos que, proporcionando por um lado a sedução da novidade, desfrutasse por outro da segurança de uma receita.

Poucos autores ter-se-ão apresentado ao público sem desejarem que tivessem sido inventados há tempos uns modos fixos de introdução que os libertassem dos perigos que o desejo de agradar produz infalivelmente e evitassem os vãos expedientes de mitigar as censuras por meio de pedidos de desculpas ou de chamar a atenção por meio da clareza excessiva.

Os autores épicos consideraram a parte proemial do poema um acréscimo tão valioso aos seus empreendimentos que adotaram quase unanimemente as primeiras linhas de Homero, a tal ponto que basta ao leitor ser informado do assunto para saber de que forma o poema há de começar. Esta solene repetição, no entanto, tem sido até agora o distintivo peculiar da poesia heróica; nunca foi estendida às categorias menos elevadas da literatura, antes parece ser considerada um privilégio hereditário a ser desfrutado apenas por aqueles que o reclamam em virtude do seu parentesco com o gênio de Homero.

Mas as regras que o uso pouco judicioso desta prerrogativa inspirou a Horácio podem aplicar-se também à orientação de quem se candidata a uma fama menor. Efetivamente, poderá ser conveniente para todos lembrarem que o autor “não deveria suscitar expectativas que não está em seu poder satisfazer, e que é mais agradável ver a fumaça dar lugar à clara chama do que ver a chama desfazer-se em fumaça”.

Este preceito tem sido obedecido há muito tempo, tanto graças à autoridade de Horácio quanto à sua conformidade com a opinião geral da sociedade; no entanto, sempre houve aqueles que não consideravam um desvio da modéstia louvarem os seus próprios esforços, e que se julgavam intitulados pelos seus méritos indiscutíveis a uma exceção às limitações comuns e a exaltações não admitidas ordinariamente. Talvez acreditassem que, ao entregar à humanidade, como Tucídides,  “um legado eterno”, fosse um favor adicional informá-la do seu valor.

Em algumas ocasiões, porém, pode ser tão perigoso exigir demais como exigir de menos. Há algo de cativante na coragem e na intrepidez, a que nos rendemos freqüentemente como a um poder irresistível; nem é razoável que espere a confiança dos outros quem, a todas as luzes, desconfia de si mesmo.

Plutarco, ao enumerar as diversas ocasiões em que um homem pode proclamar as excelências próprias sem causar uma justificada repulsa, omite o caso do autor que faz a sua estréia no mundo – a não ser que se possa incluir esta hipótese na sua afirmação geral, a de que alguém pode legitimamente louvar-se a si mesmo quanto àquelas qualidades que não há meios de conhecer senão pela sua boca; por exemplo, quando se encontra entre estranhos e não terá ocasião alguma de exercer de maneira adequa os seus talentos. Mas só dificilmente se concederá que o caso de um autor seja de alguma forma análogo a este, porque necessariamente terá de mostrar o grau dos seus méritos aos seus juízes quando comparecer diante deles para ser julgado. Dever-se-ia recordar, porém, que os juízes só dificilmente se disporão a ouvir a sua causa se não estiverem dispostos a conceder-lhe o seu favor.

No amor, único estado que cumula o coração de um grau de apreensão inferior apenas ao de um autor, considera-se uma máxima que o sucesso é obtido mais facilmente por meio de avanços indiretos e imperceptíveis. Aquele que confessa cedo demais a sua condição de apaixonado cria obstáculos aos seus próprios desejos; e aqueles a quem as frustrações conferiram experiência esforçam-se por ocultar a sua paixão até lhes parecer que a sua senhora deseja que a revelem. O mesmo método, se se pudesse aplicar aos escritores, pouparia muitas queixas sobre “as dificuldades dos tempos” e os “caprichos da crítica”. Se um homem pudesse insinuar-se imperceptivelmente no favor do público e só proclamar as suas aspirações às honras literárias quando tivesse a certeza de não ser rejeitado, poderia depositar melhores esperanças na sua estréia como autor, pois é possível que as suas falhas escapem ao desprezo mesmo que ele próprio nunca atinja grande consideração.

Mas, uma vez que o mundo pressupõe que todo o homem que escreve é um ambicioso por aplausos – como certas damas se condicionaram a pensar que todo o homem que se exprime cortesmente pretende o amor -,
o aborto de qualquer empreendimento intelectual traz consigo um desprezo irrefreado, no qual a maioria das mentes participa sem o menor escrúpulo por considerá-lo uma vitória honesta sobre pretensões injustas e esperanças exorbitantes. Os artifícios daqueles que a si mesmos se puseram neste perigoso estado de autores têm-se multiplicado, por isso, na proporção tanto do seu medo como da sua ambição, e devem ser contemplados com tanto maior indulgência quanto são suscitados simultaneamente pelos dois principais motores da mente humana, o desejo do bem e o medo do mal. Com efeito, quem se admirará de que, atraídos por um lado e intimidados por outro, alguns procurem ganhar favor subornando o juiz com as aparências de um respeito que não sentem, outros suscitar compaixão confessando uma fraqueza de que não estão persuadidos, outros ainda atrair consideração mostrando abertura e magnanimidade por meio da ousada afirmação dos seus méritos e da reivindicação pública de honras e prêmios?

A exibição arrogante e ostentosa das suas próprias pessoas tem sido o refúgio habitual dos que escrevem diariamente. Em defesa dessa prática, pode-se dizer que o que lhe falta de prudência é compensado pela sinceridade; e que aqueles cujas fanfarronices levam alguém a examinar as suas realizações podem ao menos alegar que só o defraudaram de um pouco do seu tempo.

 

Pois quê? Precipita-se a hora.

Lembra-te de que em breve vem a morte,

[ou a feliz vitória.

Horácio [1]

Trava a batalha; e passado um momento,

A morte ou a conquista feliz dão fim à luta.

Francis [2]

 

Afinal, a questão de saber quem ganhou a batalha logo se decide, e não somos obrigados a percorrer nem meio fólio para saber que o escritor não foi fiel às suas promessas.

Uma das muitas razões que me levam a empreender o entretenimento dos meus compatriotas por meio de um breve ensaio às terças e aos sábados é que espero não cansar muito aqueles a quem não chegue a agradar, de modo que, se eu não for louvado pela beleza das minhas obras, ao menos seja perdoado pela sua brevidade. Mas não considero necessário revelar se as minhas expectativas se dirigem antes à clemência ou ao louvor, pois, tendo ponderado com vagar as razões em favor da arrogância e aquelas em favor da submissão, parecem-me tão perfeitamente equilibradas que a minha impaciência por lançar-me à batalha da minha primeira realização não me permitirá continuar prestando atenção às trepidações da balança.

Com efeito, há muitas vantagens praticamente exclusivas deste formato de publicação naturalmente capazes de empolgar o autor, seja ele confiante ou timorato. O homem que, na sua própria opinião, já conquistou os louvores do mundo pela extensão do seu conhecimento ou pela vivacidade da sua imaginação, aceita com gosto o modo de apresentar as suas habilidades que mais rapidamente lhe granjeará a oportunidade de ouvir a voz da fama. Exalta-lhe a imaginação pensar que poderá ouvir outros lerem entre transportes de alegria, já no dia de amanhã, o que agora escreve. Deliciar-se-á pensando que o autor de longos tratados necessariamente tem de avançar entre ansiedades, não aconteça que, ainda antes de terminar a sua obra, a atenção do público se tenha desviado para outro assunto; já aquele que não está confinado a um tópico único pode, muito pelo contrário, acompanhar o gosto nacional em todas as suas nuances e apanhar a aura popularis – o vento da fama – seja qual for o quadrante de que sopre.

Tal perspectiva é igualmente favorável para aliviar as dúvidas dos precavidos e os terrores dos timoratos. Porque, para estes, a brevidade de cada texto é um encorajamento poderoso. Aquele que duvida da sua habilidade para dispor as partes dessemelhantes de um plano extenso, ou teme perder-se em um sistema complicado, pode ainda alimentar a esperança de arranjar umas poucas páginas sem perplexidade; e se, ao repassar os depósitos da sua memória, descobrir que as suas coleções são pequenas demais para um volume, pensará que ainda assim podem ser suficientes para um ensaio. Aquele que temeria gastar tempo demais numa experiência cujo resultado desconhece, persuade-se de que alguns dias bastarão para que descubra o que pode esperar da sua erudição e do seu talento. Se não considera o seu critério suficientemente esclarecido, poderá retificar as suas opiniões por meio dos comentários que todo periódico fará. Se se tiver enredado num assunto intratável por falta de suficiente ponderação, poderá abandoná-lo sem ter de confessar a sua ignorância e passar a outros temas menos perigosos ou mais manejáveis. E se descobrir que, apesar de todo o seu esforço e de todos os seus artifícios, não consegue merecer o favor nem atingi-lo, poderá deixar de lado o seu projeto e, sem dano para outros ou para si, retirar-se para diversões mais prazerosas ou estudos mais promissores.

 

Samuel Johnson, The First Address, publicado em The Rambler, 20 de março de 1750. Texto traduzido a partir da coletânea Samuel Johnson, The Rambler, organização e introdução de S.C. Roberts, London: J.M.Dent & Sons Ltd., e New York: E.P.Dutton & Co. Inc., 1953.

 

Tradução de Henrique Elfes.


 

[1] “Quid enim? Concurritur horae. / Memento cito mors venit, aut victoria laeta”.

 

[2] “The battle join; and, in a moment’s flight, / Death, or a joyful conquest, ends the fight”.

 

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