Os últimos Bach

Os últimos Bach
Os últimos Bach

Por Gabriel Navarro Colasso

Quando se pensa em classicismo na música, surgem quase que exclusivamente três nomes – Haydn, Mozart e Beethoven -, e as apresentações em salas de concerto geralmente se limitam a esta tríade. É um fato que são os gênios que melhor sintetizam o estilo e que mais repercussão tiveram nos séculos seguintes; no entanto, seria interessante lembrarmos também alguns nomes e estilos periféricos ou menores do século XVIII, pois estes contribuíram muito para a criação e consolidação do classicismo. Assim, dedicarei este artigo aos filhos de Johann Sebastian Bach, Carl Philipp Emanuel e Johann Christian.

Antes de mais nada, parece interessante traçarmos um brevíssimo panorama da música do Século das Luzes. Ainda que arbitrária, a divisão habitual entre os historiadores da música pode ser-nos útil: barroco tardio, do final do século XVII até meados da década de 1740; período de transição (auge do rococó ou estilo galante), de 1755 a 1775; classicismo, de 1775 até o início da década de 1810. Deve-se notar que houve um estilo paralelo ao galante, e de influência similar: o Empfindsamkeit (“sentimentalidade”), movimento pré-romântico análogo ao Sturm und Drang literário.

As principais características do barroco tardio são a escrita contrapontística, em que várias vozes [1] cantam simultaneamente, cada qual uma melodia diferente (para quem estiver interessado em uma explicação mais completa e refinada deste assunto, recomendo a leitura do capítulo sobre a “forma fugada” no livro de Aaron Copland, Cómo escuchar la Música, México: Fondo de Cultura Económica, 1992); e o uso de diferentes “afetos” e “temperamentos”, visando sempre a criar profundos contrastes (e.g.: num concerto, podemos ter o primeiro movimento rápido, evocando uma situação de júbilo; o movimento lento, solene e introspectivo; e o final rápido, com um tema pastoral). Destacam-se neste período os seguintes compositores: J. S. Bach, Haendel e Scarlatti. Alguns historiadores indicam certas obras do final da carreira de Bach como mais adequadas às formas do estilo galante do que ao barroco tardio.

Geralmente, aquilo que defini como “período de transição” no início do texto (o estilo galante e o Empfindsamkeit) é negligenciado em boa parte das Histórias da Música e similares; passa-se do barroco para o classicismo, como se um fosse efeito direto do outro. Na verdade, porém, tanto o estilo galante como o Empfindsamkeit contribuíram bastante para o estabelecimento do estilo reinante no último quarto do século XVIII, e os principais compositores desta transição foram filhos de Bach.

Dentre os vinte filhos que Johann Sebastian teve, quatro se destacaram como compositores: Wilhelm Friedemann, Carl
Philipp Emanuel, Johann Christoph Friedrich e Johann Christian. O primeiro e o terceiro pouco destaque tiveram em vida e poucas das suas obras sobreviveram ao tempo, mas vale a pena fazer uma pequena nota sobre suas vidas.

Wilhelm Friedemann Bach (1710-1784), o filho preferido de Johann Sebastian, demonstrava grande habilidade nos teclados desde tenra idade – por exemplo, o Clavierbüchlein, uma das obras didáticas do seu pai, foi escrito tendo-o por “alvo”. Na segunda metade da década de 1720, Friedemann foi enviado a Merseburg para estudar violino com Johann Gottlieb Graun. Ao terminar a escola, em 1729, matriculou-se na Universidade de Leipzig, onde durante quatro anos estudou direito, filosofia e matemática. Assim como Carl Philipp, trabalhou como ajudante do pai, dando aulas particulares, ensaiando com os músicos da orquestra. Graças à influência de Johann Sebastian, foi aprovado nos testes para organista da Sophienkirche em Dresden (1733), cargo que ocuparia por treze anos.

Em 1746, novamente apoiado na reputação do pai, tornou-se o organista da Liebfrauenkirche de Halle, onde sua fama de virtuoso tomou corpo e notoriedade. Em meados da década de 1750, sua situação em Halle tornou-se insatisfatória e começou o atrito entre Wilhelm e os empregadores, culminando em sua saída, em 1764; a partir daí, e até o final da vida, passou a dedicar-se exclusivamente à composição e ao ensino. A atenção que Johann Sebastian dedicou a este filho marcou muito seu estilo: enquanto a estética barroca já havia sido abandonada por todos, Wilhelm Friedemann figurava como uma espécie de compositor “arcaico”, intimamente relacionado, assim como seu pai, à escola de organistas do norte da Alemanha do final século XVII, mais conhecida graças a Dieterich Buxtehude e Georg Böhm.

Johann Christoph Friedrich (1732-1795), assim como os irmãos, recebeu sua educação musical do pai e posteriormente de um primo distante, Johann Elias. Em 1749, iniciou seus estudos na Universidade de Leipzig, mas teve de abandoná-los no ano seguinte devido à morte de Johann Sebastian. Aos dezoito, aceitou o cargo de músico da corte do conde de Bückeburg, casa que serviria até sua morte. No ano de 1759, tornou-se Konzertmeister, cargo que agregava as obrigações de compor e reger a orquestra da corte.

Em 1778, ausentou-se por um tempo da corte para visitar os irmãos (Carl Philipp, em Hamburgo, e Johann Christian, em Londres) com seu filho, Wilhelm Friedrich Ernst, que tinha na ocasião dezoito anos e precisava de estímulos musicais que não poderia encontrar na provinciana Bückeburg. Esta viagem foi-lhe muito proveitosa, pois trouxe novas influências também para Johann Christoph, como Mozart e Gluck. A experiência vivida em Londres fez com que se tornasse mais clássico no final da carreira, marcada inicialmente pelo estilo do norte da Alemanha – que lhe vinha do pai -, e pelo italiano, que enfatizava mais a lírica melódica e as texturas monofônicas, dominante na corte onde trabalhava.

Carl Philipp Emanuel (1714-1788) foi o filho de Bach que mais fama e proeminência atingiu. Sua reputação era tamanha que, em 1799, o compositor Carl Czerny, ainda rapazinho, ao ser admitido como aluno de Beethoven, recebeu uma indicação especial sobre o tratado musical de Carl Philipp. Após o teste de admissão, Beethoven escreveu ao pai do menino:

 

“O garoto tem talento; eu próprio lhe darei aulas. Aceito-o como aluno. Mande-o à minha casa uma vez por semana. Mas, antes de mais nada, consiga para ele o compêndio de Emanuel Bach intitulado Da verdadeira maneira de tocar teclados (“Versuch über die wahre Art das Clavier zu spielen”), que ele deverá trazer logo na primeira aula” (Cartas, diários, cadernos de conversação, reminiscências de contemporâneos, São Paulo: Veredas, 2006, pág. 13).

 

Emanuel conta em sua autobiografia que, aparte dos teclados, não recebeu quase nenhuma instrução musical na infância. Em 1731, ao terminar a escola, começou a estudar direito em Leipzig e permaneceu como o principal assistente de seu pai, mas em 1734 passou para a Universidade de Frankfurt. Foi durante este período universitário que seu potencial como compositor aflorou e ele passou inicialmente a ter aulas com o pai. Terminados os estudos em Frankfurt, Carl Philipp recebeu uma proposta de emprego na corte do então príncipe-regente Frederico II da Prússia, em 1738. O déspota ilustrado havia recrutado dezessete músicos (Emanuel era o cravista) e os conduzia na condição de flautista.

Carl Philipp manteve-se como empregado da corte até 1768, quando obteve o cargo de Kappellmeister em Hamburgo. O período que passou na corte de Berlim pode ser descrito como ambíguo, pois se por um lado o ambiente de trabalho e a remuneração eram vantajosos, por outro Emanuel não tinha muita liberdade nem espaço para expor suas obras, uma vez que o rei era flautista e um outro músico da orquestra, Johann Joachim Quantz – que recebia privilégios e compunha música para o monarca, tendo chegado a compor mais de trezentos concertos para flauta e orquestra -, tomava todos os espaços possíveis.

As obrigações de seu cargo em Hamburgo abarcavam a composição de peças para festejos religiosos e cívicos, a regência das orquestras das cinco igrejas da cidade e a instrução musical dos alunos do Johanneum. As suas obras sacras são, em grande parte, adaptações com acréscimos orquestrais de peças de seu pai, de seu irmão Johann Christoph ou de Telemann, que fora seu antecessor em Hamburgo e seu padrinho.

A parte mais robusta e interessante da produção de Carl Philipp são as peças para teclado (cravo, principalmente), tanto solo como acompanhado. Seu tratado teórico teve grande influência sobre os músicos até meados do século XIX. Seu estilo, fortemente marcado pela influência do Sturm und Drang, cheio de mudanças bruscas de temperamento e notas dissonantes, estava longe do que determinava o cânone vigente na época. E sua música contagiou vários dos contemporâneos: Haydn teve acesso a algumas peças suas que tinham sido publicadas; Christian Gottlob Neefe, que foi professor de Beethoven em Bonn, era um grande admirador da sua obra e do seu tratado; e Diderot, ao buscar peças com que presentear a filha cravista, adquiriu alguns dos seus manuscritos.

Tanto em Berlim como em Hamburgo, Emanuel pouco se relacionava com outros músicos, mas com poetas, escritores, comerciantes e intelectuais; dentre seus convivas figurava Gotthold Ephraim Lessing, importante poeta alemão que influenciou nomes como Goethe.

Johann Christian (1735-1782), também conhecido como “o Bach londrino”, é o mais novo dos filhos de Johann Sebastian. Apenas uma pequena parte de sua educação musical lhe foi dada pelo pai, cabendo a maior parte ao seu irmão Carl Philipp. Em 1754, partiu para a Itália, onde estudou inicialmente em Bolonha e posteriormente em Nápoles e Milão. Nesta última cidade, converteu-se ao catolicismo e foi admitido no cargo de organista da catedral da cidade, em 1760, permanecendo lá por dois anos. Neste período, impulsionado pelo novo mundo musical que conhecera ali, enveredou com sucesso pela ópera, sendo comissionado para apresentações em várias cidades italianas e da Europa.

Em 1762, foi chamado para compor duas óperas para o King’s Theatre de Londres. Uma vez ali, começou sua carreira como “músico de aluguel”, não se prendendo a um único empregador. No primeiro ano em Londres, conheceu aquele que seria seu parceiro em várias apresentações, Carl Friedrich Abel; os dois tornaram-se a grande sensação da cena musical londrina do final do século XVIII. Os “Bach-Abel Concerts”, como eram conhecidos, duraram de 1764 até 1779, período no qual, apesar de manter a residência em Londres, Johann Christian viajou por toda Europa apresentando seu trabalho – incluída a cidade de Mannheim, sede da orquestra mais reputada da época, onde sua ópera mais suntuosa, Temistocle, foi encenada pela primeira vez.

Johann Christian teve grande influência sobre Mozart. O encontro entre os dois deu-se por ocasião da primeira turnê que o pequeno Wolfgang fez pela Europa, em 1765, e as cinco primeiras sinfonias de Mozart são arranjos de peças do “Bach londrino”. Apesar de ter recebido reconhecimento pela produção orquestral, as suas óperas nunca deixaram de ser bem acolhidas. Johann Christian foi o maior nome do denominado “estilo galante”, que prima pela clareza e elegância da forma.

As óperas de Johann Christian seguem o cânone da opera seria italiana; já sua música orquestral apresenta algumas novidades importantes: a distinção entre a sinfonia e a abertura de ópera, que durante o barroco eram uma mesma coisa, e o uso da forma sonata, alicerce da revolução estilística feita pelo classicismo. Encontramos a forma sonata no primeiro movimento de algumas de suas sinfonias.

Por fim, não será descabido dizer que, pelas mãos dos filhos de Johann Sebastian, também ocorreu uma mudança significativa dentro da estrutura tradicional da família Bach e, por assim dizer, de toda a “sociologia do trabalho musical” do seu tempo. Assim como vários outros clãs da Turíngia (no nordeste da Alemanha), como os Wilcke, os Lämmerhirt e os Hoffmann, desde meados do século XVI os Bach foram músicos ou compositores de igrejas ou cortes. Os membros dos quatro clãs dificilmente saíam de sua região de origem e freqüentemente casavam entre eles, fato que só fortaleceu o seu espírito de “guilda” e a transmissão de um ofício que passava de geração em geração.

Já a vida dos dois filhos de Bach que estudamos aqui escapam desta tradição. Por um lado, Carl Philipp, que foi músico de corte e Kappellmeister, não vivia cercado por seus pares, mas na companhia de intelectuais e profissionais liberais; por outro, Johann Christian foi um dos primeiros músicos autônomos, sendo em alguns casos uma espécie de “prestador de serviços” e, em outros, um “empresário do entretenimento”. Romperam assim, tanto socialmente como do ponto de vista das “condições da produção”, com um hábito familiar de séculos. A família Bach continuou a existir, mas não como uma guilda musical; e ao mesmo tempo desapareceu também a tradição polifônica do norte da Alemanha.

 

Gabriel Navarro Colasso é bacharel em filosofia pela PUC-SP e coordenador assistente do Departamento de Humanidades do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS).

 

 

 


 

[1] Devemos entender por “vozes” não só o instrumento natural do homem, mas todos os instrumentos com timbres distintos em uma mesma peça musical.

 

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